Por Carolina Maia de Aguiar, especial para o Jornal Já
Entre 23 e 27 de junho, milhares de programadores, defensores da cultura livre, nerds e curiosos circularam pelo Prédio 40 da PUC, onde ocorreu o 10 Fórum Internacional do Software Livre – FISL. Embora essa edição tenha parecido menor do que as anteriores, realizados na FIERGS, a organização do evento comemorou o recorde de público.
Os mais de 8 mil participantes inscritos incluíam expositores e visitantes, que passeavam pelos estandes em busca de informações, contatos, CDs de software e outros brindes. A programação do FISL também incluiu palestras de ativistas da liberdade na rede, como o sueco Peter Sunde, criador do site de compartilhamento de arquivos The Pirate Bay, e o norte-americano Richard Stallman, um dos fundadores do movimento software livre.
O conceito de liberdade
A principal diferença entre o modelo livre de software e o modelo proprietário está na ideologia de desenvolvimento e distribuição. Sistemas proprietários, como o Windows e muitos de seus programas, têm seu uso restrito: o usuário não adquire o programa, mas uma licença de utilização em um número limitado de computadores. Além disso, não é permitida nenhuma alteração no funcionamento do sistema.
Para ser considerado livre, um software precisa garantir quatro liberdades: o usuário deve poder usar, estudar, redistribuir e modificar o software. Para permitir o estudo, o acesso ao código-fonte (os processos que determinam o funcionamento do programa) também deve ser livre. Daí o outro nome pelo qual esse modelo de distribuição é conhecido: open source, ou “código aberto”.
A única restrição prevista está na forma de distribuição: uma vez livre, o programa ou seu código (e todos os trabalhos desenvolvidos a partir dele) não podem ser tornados proprietários. A explicação para isso remonta aos primórdios do movimento, nos anos 80.
O físico e programador Richard Stallman havia criado o sistema operacional aberto Unix, que foi utilizado como base para um projeto da operadora de telefonia norte-americana AT&T. Como a empresa não lhe permitiu acesso ao código desse novo sistema, Stallman partiu para o desenvolvimento de outro: o GNU, um dos componentes do sistema operacional popularmente conhecido como Linux.
Para garantir que todos os projetos que surgissem a partir de códigos livres fossem disponibilizados da mesma maneira, Stallman também criou a GPL, a Licença Pública Geral do GNU. Essa licença é a mais utilizada pelos programas livres.
A liberdade é política
Quando se fala sobre software livre em português, não há mal-entendidos: “livre” remonta diretamente à ideia de liberdade. Em inglês, no entanto, a palavra “free”, utilizada por Stallman e sua organização, a Free Software Foundation, pode significar tanto “livre” quanto “gratuito”. Para afastar a dúvida, o fundador do movimento recomenda: pense em free speech (liberdade de expressão), não em free beer (cerveja grátis).
A politização pode explicar a repercussão, entre os participantes, da relação de alguns políticos com o FISL. Yeda Crusius, por exemplo, não compareceu ao evento, mesmo tendo confirmado o compromisso em sua agenda oficial. A ausência da governadora no evento não foi o suficiente para impedir os protestos do público. O presidente da Procergs, representando o governo, recebeu as vaias em nome de Yeda. Em março desse ano, foi anunciada uma parceria entre o Estado e a Microsoft, para o desenvolvimento de um sistema operacional voltado para a educação. Na época, o coordenador do FISL, Marcelo Branco, disse que o contrato era vergonhoso.
Pela primeira vez, um presidente da República compareceu ao evento. A megaoperação de segurança da comitiva presidencial não foi bem vista pela maioria dos participantes, pois limitou o acesso aos estandes durante toda a tarde do dia 26. Além dos portadores de uma credencial fornecida pela Presidência, somente 300 pessoas puderam circular pela área restrita.
“O que me incomoda não é tanto a presença do Lula, mas a minha ausência lá dentro”, complementou Rafael Salvatori, desenvolvedor web, apontando para o seu estande. Henrique Pereira, estudante de sistemas de informação da Unifra, também descontente, tentava puxar um canto de protesto: “Lula, cadê você? Vai embora, pro FISL acontecer!”
Quando o presidente chegou, não se ouviu canto nenhum. O FISL é patrocinado majoritariamente pelo governo federal, e a organização do evento comemorou a visita. Em seu discurso, Lula defendeu a liberdade, declarando-se contrário a um dos projetos mais combatidos pelos presentes no Fórum: o projeto de lei de cibercrimes do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG).
A “Lei Azeredo”, como o projeto é chamado, prevê o armazenamento dos dados de navegação pelos provedores. Caso a lei seja aprovada, os internautas também terão que fornecer seus dados – nome completo, nome da mãe, número do RG – aos administradores de todas as redes de Internet que acessarem. Com isso, torna-se inviável a utilização de redes sem fio abertas, como as que existem em shoppings. Por esse e outros motivos, uma petição online contra o projeto já conta com mais de 140 mil assinaturas até o momento.
A liberdade também foi defendida de outras formas: paralelo à programação do evento, acontecia o Festival de Cultura Livre, que trouxe shows como o da banda Teatro Mágico para Porto Alegre. Os participantes também tiveram acesso a oficinas e workshops para aprender a utilizar melhor alguns programas de código aberto.
Dificuldades
Estatísticas apontam que cerca de 90% dos computadores pessoais utilizam o sistema operacional Windows, que é proprietário. E daí vem a maior dificuldade na migração para o GNU/Linux: as pessoas resistem a programas diferentes daqueles que já estão acostumadas a usar.
“A solução para isso é ensinar a usar o programa de maneira mais aberta”, defende Marcelo Branco, ativista do software livre e coordenador do FISL. “Em vez de ensinar o Word, as escolas deviam ensinar a usar um editor de texto; deviam ensinar planilhas eletrônicas em vez de Excel. Quando eu comecei a usar máquina de escrever, eu estudei datilografia, não ‘como escrever em uma máquina Olivetti’”, complementa.
Como é criado e distribuído de maneira livre, o sistema operacional Linux é disponibilizado em diferentes versões, que são criadas e mantidas pelas comunidades de usuários, sendo chamadas de distribuições. A compatibilidade de programas e a aparência de cada sistema, portanto, podem variar, mesmo tudo sendo “Linux”, e isso muitas vezes dificulta a utilização por usuários inexperientes.
Por que usar software livre
Uma das distribuições expostas no FISL procura tornar mais fácil a migração para o modelo livre. Para facilitar esse processo, o BRLix imita a aparência do Windows. Desde sua criação em 2003, mais de 28 milhões de downloads do sistema foram efetuados.
Embora os ativistas defendam a ideologia da liberdade, há empresas que optam pelo software livre por questões bem menos elevadas, como o preço. Em vez de investir na aquisição de licenças do Windows, a montadora de motores WEG preferiu contratar a BRLix para instalar Linux em todos os seus computadores.
Não é necessário abrir mão do Windows para utilizar software livre. Os Correios, por exemplo, continuam utilizando o sistema da Microsoft, optando somente por evitar a aquisição do pacote Office: a empresa já utiliza o BrOffice, uma versão open source, em quase metade de seus computadores. Na visita ao FISL, a ministra-chefe da Casa Civil Dilma Roussef, que acompanhava Lula, afirmou que o governo já economizou R$370 milhões ao utilizar software livre.
Outras empresas optam pelo modelo de código aberto por questões técnicas. É o caso do Banco do Brasil (BB), que utiliza software livre em seus servidores e está organizando a migração de todos os terminais de auto-atendimento para o Linux. “É uma solução técnica, não necessariamente ideológica”, garante o Gerente de Divisão da Área de Software Livre do BB, Ulisses Penna.
A opção por abrir o código permite desenvolvimento mais rápido do sistema, pois alguns usuários participam do processo. Por esse motivo, há empresas que preferem compartilhar a criação de seus produtos. É o caso do sistema operacional Solaris, utilizado em data centers. Para aumentar a base de usuários e acelerar seu desenvolvimento, a empresa Sun disponibilizou seu código para a comunidade, criando o OpenSolaris.
Colaboração e política
O trabalho colaborativo é muito importante para o desenvolvimento dos produtos livres. Os motivos que levam as pessoas a contribuir podem incluir tanto a intenção de melhorar os serviços utilizados quanto a busca de reconhecimento. Além do desenvolvimento de software, a colaboração torna possíveis iniciativas como a Wikipédia, a enciclopédia criada e mantida livre por uma comunidade de usuários.
Empresas como a Mozilla, que criou o Firefox, o navegador livre utilizado por 22% dos internautas, aproveitaram o FISL para incentivar a colaboração. Para ganhar uma camiseta, era necessário desenvolver novas funcionalidades para o programa. Quem não sabia programar, podia escrever um artigo ou traduzir arquivos da ajuda para outro idioma.
Nesse ambiente, é comum que as pessoas se aproximem, criando redes de colaboração. O norte-americano Ethan Crawford veio a Porto Alegre pela primeira vez em 2003, em um evento totalmente político: o Fórum Social Mundial. Nessa ocasião, fez os contatos que o trariam mais uma vez ao Brasil. No estado do Colorado, nos EUA, Ethan trabalha na Free Speech TV, uma emissora de TV independente. Por conta de sua experiência, foi convidado a participar como voluntário na edição de vídeos para a TV Software Livre, que fez a cobertura do festival.
Num dos últimos paineis do FISL, a liberdade na era digital foi discutida por integrantes da organização do evento, acadêmicos e ativistas. Em sua fala, a pesquisadora de Direito de Yale, Elizabeth Stark, enfatizou a importância da participação de cada internauta na vigilância dessa liberdade. Para ela, somente a visão política do código vai manter a liberdade na rede.
Opa! Richard Stallman não desenvolveu o Unix. Corrige isso aí.