O Pampa como metáfora do deserto árabe

“Gauchos e Beduínos”, ano 65

Bem disse Erico Verissimo: foi muito original e ousado o escritor Manoelito de Ornellas ao desenvolver seu famoso ensaio sobre as semelhanças entre os habitantes do pampa e dos desertos árabes. Tão logo caiu na praça de Porto Alegre, seu livro Gaúchos e Beduínos, editado em 1948 pela José Olympio, do Rio, levantou uma grande polvadeira no cenário cultural riograndense.
Seguiu-se um enorme silêncio, rompido em 1955 com uma segunda edição, desta vez bancada pela Editora da Livraria do Globo, na qual Verissimo era a figura de proa. O romancista de O Tempo e o Vento fez ressalvas à tese de Manoelito de Ornellas, mas apoiou a publicação do livro.
Quem mais se doeu com a ousadia do ensaísta “castelhanista” foram os defensores da vertente açoriana da origem riograndense, liderada por Moyses Vellinho, que não deixou por menos: no livro Capitania D’El Rei (Livraria do Globo, 1964), ele fez questão de destacar as diferenças entre os gaúchos platinos e os gaúchos do Rio Grande.
Ignorando a opinião de Ornellas, Vellinho viu nos gaúchos do Prata a rebeldia contra a arrogância e a prepotência dos castelhanos; nos riograndenses, o espírito acomodatício dos conquistadores lusobrasileiros, que receberam em sesmarias a paga pela defesa do terrritório lusitano na porção meridional da América do Sul, estabelecendo assim o que denominou “a função civilizadora da estância”.
Para minimizar o peso do nomadismo na formação do gaúcho brasileiro, Vellinho recorre a Lindolfo Collor. “Eles são nômades em relação aos habitantes dos núcleos urbanos, mas representam na gênese das populações meridionais o primeiro e decisivo elo de fixação social, de civilização no deserto”, escreveu Collor em seu livro sobre Garibaldi e a Guerra dos Farrapos.
Depois de publicar seu ensaio, Manoelito de Ornellas não teve mais sossego: foi criticado e por fim segregado nos meios intelectuais de Porto Alegre. Acabou buscando refúgio na ilha de Santa Catarina, onde lecionou por muitos anos. Não foi o primeiro gaúcho a migrar por se sentir desconfortável em sua terra. Poucos lhe foram solidários. “Manoelito era de Itaqui”, lembra o editor Carlos Jorge Appel, fundador da Editora Movimento, de Porto Alegre. Com seu lembrete, Appel quer dizer que Ornellas tinha outras raízes e sofreu influências da fronteira com a Argentina numa época em que Buenos Aires era uma das capitais do mundo, com metrô e tudo mais.
Ele próprio um migrante oriundo do interior catarinense, Appel reconhece que no porto de Itaqui (no médio rio Uruguai) do início do século XX era mais fácil receber jornais, livros e mercadorias de Buenos Aires e outras cidades argentinas do que de Porto Alegre. Nascido em 1903, Manoelito ficou na terra natal até os 18 anos, quando migrou para Cruz Alta, onde conviveu com o dono de farmácia Erico Verissimo. Acabou seguindo o destino da maioria dos literatos do interior gaúcho: foi para a capital trabalhar como jornalista e professor.
Bem ou mal, Manoelito atraiu boa parte da má vontade dos colegas de Porto Alegre ao aceitar, em 1938, trabalhar como funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de divulgação do Estado Novo que exerceu um papel censorial e repressor sobre o jornalismo e todas as manifestações do livre pensamento. Não foi por muito tempo e talvez tenha sido mais por necessidade do que por convicção, mas o homem de Itaqui carregou para sempre a imagem de amigo da ditadura varguista.
Essa pecha contaminou-lhe a carreira, impedindo que sua tese, tão original e inovadora, fosse absorvida e interpretada de forma isenta. Falecido em 1969 em Porto Alegre, ele deixou uma das frases mais instigantes da literatura gaúcha: “O galpão é uma tenda que se fixou”. Mais do que uma frase, uma tese, uma metáfora.
 

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Comentários

  1. Avatar de Elmar Bones
    Elmar Bones

    Atualíssimo!

  2. Avatar de Jonas Dornelles
    Jonas Dornelles

    A pesquisa meio romântica da obra Gaúchos e Beduínos, da busca pela “raça gaúcha”, me parece residir numa idéia de etnia racial herdada ainda do século XIX…
    Mas se lemos a obra sem preconceitos, vemos emergir um mundaréu de documentação e histórias que valem muito mais do que uma possível conclusão sobre origens genéticas de um povo… de fato é um livro essencial e importantíssimo pra se pensar o Rio Grande.
    Mas que elite gostaria de se dizer descendente e devedora de guaranis e árabes, quando poderia se dizer européia??

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