Os brasileiros que estão mudando o budismo

A sala, ainda iluminada pelo sol da tarde, está lotada. Umas sessenta pessoas, sentadas em cadeiras, almofadas, no chão e até na escada.
O homem fala sem microfone mas a voz pausada alcança todo o ambiente    em silêncio.
O homem que fala é o professor, filósofo, músico, poeta   e ecologista Celso Marques, hoje o monge zen Seikaku, criador do Instituto Zen Maitreya e do Zendô Diamante (Kongô Zendô), um dos três centros budistas de Porto Alegre.
Naquele domingo, 8 de abril, dia do Nascimento de Buda, o Instituto comemorava seu primeiro ano de atividades. Ao fim de uma tarde de práticas budistas, Celso Marques,  está abrindo o painel para debater: “O budismo que queremos”.
Outros dois monges budistas ladeiam o mediador: o lama Padma Samten e o monge zen Dengaku.
Padma Samten lidera o CEBB, Centro de Estudos Budistas Bodisatva,  a  maior rede de comunidades budistas do país, coordenando mais de 40 centros de prática no Brasil e no exterior. O monge Dengaku é o líder do  Via Zen, centro  urbano de Porto Alegre  e do Vila Zen, mosteiro zen localizado em Viamão, do Via Zen de Zurique, na Suiça e outros locais de prática zen, inclusive no Uruguai.
“Eramos uma meia dúzia de de gatos pingados”, lembra Celso Marques, recordando o ano de 1968, quando mudou-se de Porto Alegre para São Paulo e juntou-se a um grupo de brasileiros que se iniciavam no zen-budismo, sob orientação dos monges Tokuda Igarashi, Ricardo Mário Gonçalves e o Superior (Sookan) Riohan Shingu no Templo Bushinji, no bairro japonês da Liberdade.
Minoria no meio de uma numerosa comunidade japonesa, aos poucos, eles foram percebendo que naquela época as prioridades no templo budista de São Paulo estavam mais voltadas para a atender as demandas espirituais da colônia japonesa e a preservação dos valores culturais do Japão.
“A prioridade não era o zazen,  mas cerimônias fúnebres, casamentos e a Escolinha Mahayana,  onde o monge Tokuda dava aula, para as crianças aprenderem a língua e os costumes japoneses”.
Naquela época o Templo Busshinji iniciava sua  abertura para brasileiros que acompanhavam o grande interesse ocidental pelo zen. Descontente com esta situação o monge Tokuda saiu do Busshinji, indo morar em Campos do Jordão. De volta para Porto Alegre em 1972, Celso Marques integrou-se no grupo de estudantes de karatê da escola Wadô Kai do sensei Takeo Suzuki. O monge Tokuda periodicamente vinha a Porto Alegre orientar a prática do zazen do grupo.
Este grupo se reuniu, semanalmente, durante 24 anos, para meditar e estudar o budismo na residência de Celso Marques, dando origem ao pujante movimento budista do zen e do budismo tibetano no Sul do Brasil.  Celso Marques diz que se surpreende hoje quando  vê o movimento budista que se desenvolveu a partir daquele grupo de “gatos pingados”. É, segundo ele, um budismo novo que está surgindo no Brasil e que desperta admiração internacional. “Até o Japão agora está interessado no budismo que se pratica no Brasil”, diz. Há poucos dias ele deu entrevista a uma equipe  de cineastas japoneses que está fazendo um documentário sobre o budismo no Brasil. “Eles ficaram  impressionados com a expansão do budismo que de Porto Alegre migrou para Santa Catarina e Paraná, todo o Sul.
Inclusive o núcleo fundador deste movimento, o Bushinji, em São Paulo, ampliou suas prioridades, acolhendo praticantes budistas brasileiros.  “Em dezembro de 2017 participei do retiro da Iluminação de Buda no Busshinji  e me senti em casa, sem aquela distância que  antes existia”.
ENTREVISTA COM CELSO MARQUES, MONGE SEIKAKU

Celso Marques: “Diante da crise civilizatória e ecológica, qual é a contribuição que o budismo pode trazer ?” /Felipe Burger Marques/Divulgação

Existe um budismo brasileiro?
Sim, há um budismo brasileiro que começou através de  discípulos do monge Tokuda, patriarca do zen brasileiro e meu primeiro mestre japonês.
O que ele tem de novo?
É um budismo que está se estruturando sem obedecer certas formas, vinculadas à cultura japonesa. Também temos nossas formas culturais. Nós sempre nos colocamos como brasileiros,  por um lado vinculados à cultura européia e por outro tributários de um multiculturalismo das culturas africana, indígenas, e de outras culturas.  O budismo é um paradigma para se pensar isso, para nos situarmos diante desta riqueza multicultural.
Um budismo que olha a realidade brasileira…
Tínhamos um budismo, digamos, informal, sem instituições, hoje está se institucionalizando e tem que dizer para a coletividade brasileira a que vem. Por exemplo: diante da crise civilizatória e ecológica planetária  contemporânea e brasileira, qual é a contribuição que o budismo pode trazer ?
Qual é a contribuição?
Essa é uma questão que se abre, é o que estamos começando a discutir. O monge Tokuda, o introdutor do Zen budismo no Brasil falava sempre da hesitação do Buda. Buda teve a iluminação aos 35 anos, precisava comunicar aquilo. Mas tratava-se do desafio de como comunicar essa experiência indizível. Mas como comunicar algo que é incomunicável ? O cânon pali diz que a hesitação do Buda durou sete dias e que depois ele se levantou do lugar onde se iluminou e deu início ao seu magistério de 45 anos. Mas há eruditos nas escrituras que afirmam que Buda levou muitos anos na busca dos meios de expressão para formatar o seu ensinamento.
O que Buda comunica?
A visão do Buda é um lugar,  esse lugar não tem conteúdo e não tem engano, é o ponto de partida, de onde se pode ver o não construído na origem do construído. Essa realidade é inalcançável pelo logos, discursivo e cheio de palavras. Para chegar à realidade tem que entrar numa dimensão de silêncio. Mas como transmitir essa experiência com palavras, com uma linguagem que é a negação do silêncio.
O que é o budismo para Celso Marques?
O budismo considera que a realidade é indescritível.  A única maneira de se tocar o real é pela vivência da prática meditativa, quando se chega à experiência abolitiva do sentido. Fora desta experiência sempre se terá uma versão deformada do real que leva a mente ao equívoco. A experiência abolitiva do sentido é a única ponte para o acesso à realidade última.  Ali não há linguagem, não há ego, não há discurso. Só o vazio silencioso, que é a origem e o fim de  tudo. Fora dali tudo é construção da mente. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, um dos maioreres humanistas do século XX, considerava o budismo a mais radical crítica do sentido que a humanidade a sua história.  .
Como foi a ida para São Paulo?.
Foi em meados de 1968. Me mudei para lá motivado pelo budismo, li primeiras coisas e imediatamente me interessei…o que impressionou no zen é o  desafio de compreender o próprio zen.  E é entrar num universo que coloca em questão tudo o que a gente pensa e acredita…
Nessa época, o mais comum num jovem inquieto era abraçar o marxismo…
Sim, eu morava numa república na rua Vila Nova, a meia quadra da Maria Antonia, onde ficava a Faculdade de Filosofia da USP e o Mackenzie, os dois pólos da agitação estudantil de 1968. Fui testemunha ocular da história. Nosso grupo, com exceção de um paulista, era todo gaúcho, de esquerda. Eu saia para  fazer o zazen (meditação), isso era considerado o máximo da alienação tinha que estar me justificando…os caras falando em luta armada e eu meditando…
Zen bundismo, falavam.
É, intelectuais como Leando Konder e Eduardo Coutinho chamavam o zen de zé- bundismo…
Qual era a justiticativa diante dessa crítica?
Pra mim foi verdadeira bússola foi o Lévi-Strauss, quando ele disse que não existe contradição entre o marxismo e o budismo… Ambos fazem a mesma coisa em níveis diferentes. Depois, quando conheci José Lutzenberger em 1972 e me envolvi com a ecologia vi que o marxismo era insuficiente.
 
UM LOCAL DE MEDITAÇÃO
O Instituto Maitreya, na Riachuelo 301, no Centro Histórico de Porto Alegre, é um centro de estudos budistas, meditação zen e o cultivo de artes.
Ikebana de Eleara Manfredi para a inauguração do Instituto / Isadora Manfredi Marques/Divulgação

Mantém também uma programação regular de atividades como oficinas de artes contemplativas, tais como a ,ikebana, cerimonia do chá, poesia, caligrafia, filosofia budista, e ocidental… e ecologia.
A biblioteca reúne 8 mil títulos /Isadora Manfredi Marques/ Divulgação

Organiza grupos de estudos e dispõe de uma biblioteca com mais de oito mil obras sobre budismo, orientalismo, ecologia, antropologiaindiana,tibe, psicologia, filosofia, literatura ocidental, latinoamericana,japonesa, chinesa e tibetana.
NÚCLEOS BUDISTAS
Não há um levantamento ou estatística, mas é um consenso de que Porto Alegre tem o segundo maior contingente de budistas do Brasil, depois de São Paulo. Seriam dois mil praticantes budistas na capital gaúcha.
Há também núcleos em Viamao, São Leopoldo, sem falar no templo de Três Coroas, que é o maior do Brasil. Lá é a sede do Centro de Estudos Budistas (CEB) coordena mais de trinta templos sob a orientação do monge Padma Santem. Padma Santem era Alfredo Aveline professor de Física na Universidade Federal há 40 anos, quando se integrou ao grupo budista que se reunia semanalmente na casa de Celso Marques. Seus cursos pela internet envolvem duas mil pessoas.
Em Viamão, sob a orientação do monge Deikaku tem a Via Zen, na localidade de Aguás Claras, onde tem um mosteiro que é um dos maiores núcleos do budismo em Porto Alegre. Promove retiros com mais de 100 participantes. “É o grupo mais forte de zen que tem aqui”.
 

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