Geraldo Hasse, jornalista ghasse@th.com.br
A mosca azul de Frei Betto incomoda gregos e troianos, petistas e tucanos. Até agora a mídia brasileira quase não falou do novo livro de Frei Betto, no qual ele rememora sua passagem pelo governo Lula, nos anos 2003 e 2004. Lançado na primeira quinzena de março, já aparece na lista dos mais vendidos, mas permanece cercado por um estranho silêncio. Por que não analisam/ criticam/ resenham uma obra tão atual e engajada, que esmiuça a realidade contemporânea como nenhum outro autor brasileiro fez nos últimos anos? Pode ser birra ou má vontade, mas desde já não se pode negar: taí o livro mais contundente de um ano que mal começa e muito promete.
Em A Mosca Azul (Rocco, 310 páginas), Betto expõe seu desencanto com o rumo da nau petista. Logo no primeiro parágrafo ele põe o dedo na ferida, ao lamentar “a desdita de promessas esvoaçadas em mera retórica”. No final do capítulo 30, depois de tocar em várias feridas — à esquerda e à direita –, confessa: “De repente dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos para leste”. Resultado: caiu fora “em busca de si mesmo”. Pouco mais de um ano depois de pedir demissão e deixar o poder para “nunca mais”, ele apresenta o que poderíamos denominar “o reencontro consigo”. Temos na mão uma contribuição relevante para a organização do pensamento brasileiro.
Frei Betto escreve com tal clareza e sinceridade que é impossível não ler até o fim. Apesar de “ligado na missão”, ele não pede licença para ser criativo. Brincalhão às vezes, solta alguns trocadilhos de tirar o chapéu. Com “tudo que é sólido desmancha no bar”, ele atualiza para nossos tempos consumistas a célebre frase de Karl Marx sobre os períodos críticos em que ‘tudo que é sólido parece se desmanchar no ar’…
Há também confissões memoráveis. Ele diz que escrever é sua forma de driblar a própria loucura. Admite que algumas vezes tem vontade de chutar o balde e cair na contemplação dos mistérios da vida e da morte. Mas não desiste. Uma das coisas que o incentiva a se manter na luta é a memória do que passou na prisão, resistindo à tortura.
Ao contrário do que se poderia esperar, ele não picha o amigo Lula nem cospe no prato em que comeu (foi coordenador de mobilização social do programa Fome Zero). Fiel aos ideais que o levaram a optar pela vida religiosa e a militância política, surpreende tanto pela análise dos equívocos da esquerda quanto pela crítica das enganações da direita.
Diz o informe da Editora Rocco que A Mosca Azul é “uma revisão honesta da ascensão do PT ao poder vinculada à recente história da esquerda no Brasil e no mundo”. Na realidade, com uma narrativa na primeira pessoa, Frei Betto faz uma reavaliação de sua vida, toda ela consagrada a um projeto de redenção dos pobres e oprimidos. A Mosca Azul é talvez o mais autobiográfico dos livros de Frei Betto, uma das figuras mais fascinantes da história brasileira contemporânea, com mais de 50 livros publicados.
Mineiro de Belo Horizonte, nascido em 24 de agosto de 1944, ele fala bastante do pai, que morreu quatro meses antes da eleição de Lula, em 2002. Recorda o conservadorismo e o anticlericalismo paterno, expresso numa ameaça explícita, segundo a qual não toleraria ver “um filho de saias”, ou seja, que fosse maricas ou padre. Betto respeitou o pai à sua moda: sem ser sacerdote, assumiu a vida religiosa, como frade dominicano, desses que andam à paisana; sem deixar de ser homem, jamais se casou. No livro, sem maiores detalhes, confessa que na juventude frequentou a “zona” da prostituição de BH; insatisfeito, escolheu o claustro e fez do trabalho religioso uma missão.
Da militância cristã evoluiu para a participação política até ser preso e condenado a quatro anos de prisão por ajudar na luta armada contra a ditadura militar. Quando deixou a cadeia, foi aconselhado a ir embora para o exterior, mas exilou-se na região metropolitana de Vitória, onde morou por cinco anos. Aí conheceu, entre outros, o médico Vitor Buaiz, um dos fundadores do PT, ao lado de Lula. Eles estiveram juntos em João Monlevade, em janeiro de 1980, no encontro sindical em que pela primeira vez Lula falou em fundar um partido dos trabalhadores.
Eram todos “duros” e idealistas. Depois desse evento, alguns sindicalistas como Lula e Olívio Dutra foram descansar no apartamento dos pais de Betto em Belo Horizonte. Com vôo marcado para o amanhecer e sem dinheiro para o hotel, eles dormiram amontoados no chão da sala, pois não havia cama para todos.
Outro episódio dessa época foi o encontro (em 1979) em São Paulo com os socialistas Almino Affonso, Fernando Henrique Cardoso e Plínio de Arruda Sampaio. Convidado para entrar no partido que os três estavam dispostos a fundar, Betto ficou de pensar. Muito tempo depois, soube que a reunião – realizada no apartamento duplex de um jornalista — fora gravada pelos órgãos de segurança da ditadura agonizante.
Nessa viagem ao passado, Betto fala do ideal construído pela esquerda brasileira após o golpe militar de 1964, mergulha nas circunstâncias que geraram o efeito Lula e culminaram na eleição do líder sindical a Presidente da República em 2002. Comentando o carisma do atual presidente, não deixa barato: compara-o a Vargas e Prestes.
Adepto da teologia da libertação nascida em redutos pobres da América Latina, Betto faz uma reflexão profunda sobre o sonho petista de uma sociedade socialista, os novos paradigmas da esquerda após o fim da União Soviética e o ressurgimento do neoliberalismo, que desmantela um século de conquistas sociais dos trabalhadores.
O livro tem grandes sacadas. Por exemplo: “O PT é filho bastardo da desconfiguração da geopolítica internacional”, diz ele no capítulo 29, em que faz uma análise da crise do mundo moderno. Outra constatação dolorida: “O PT vestiu a camisa do governo e despiu a camiseta dos movimentos populares”.
Embora tenha escrito seu livro para explicar/justificar sua passagem pelo governo Lula no período 2003/2004, Betto foi muito além da promessa: acabou dando um verdadeiro cursinho (de história, filosofia, sociologia, política) em que apresenta uma série de raciocínios extremamente lúcidos sobre os rumos da esquerda, o papel do PT e o futuro do socialismo, seja isso lá o que for depois do colapso da maior parte dos governos comunistas fundados no século 20.
Mesmo decepcionado com a maior parte do governo Lula, reconhece que tem pela causa social a mesma preocupação de um pai pelo filho deficiente ou drogado: um amor incondicional, eivado de sofrimento. É o amor inspirado na lição de Cristo. Suas outras referências são Gandhi e Guevara, que se dedicaram à libertação dos oprimidos, cada um a seu modo.
Os oprimidos, os pobres são o alvo central de sua militância. Betto os coloca numa nova categoria – o pobretariado, abaixo do proletariado. Para entender essa nova classificação, é preciso viajar com o autor pelos meandros da sociedade de consumo, da publicidade, do neoliberalismo e da globalização.
São extremamente instrutivos os capítulos em que ele analisa, comenta e critica o comportamento dos ricos, da burguesia, dos intelectuais, da classe média e também dos pobres. Leitor dos clássicos gregos e estudioso de Maquiavel, Betto faz páginas brilhantes sobre o exercício do poder em geral e do poder no governo petista. Apesar de tudo, confia na possibilidade de que, num segundo mandato, Lula penda mais para a esquerda do que para a direita, resgatando mais um pouco das carências da maior parte da população.
No final, numa metáfora carregada de poesia, Betto afirma que “a viagem não foi em vão, pois são sinuosas as veredas da história e a turba jamais olvida a fonte do alvorecer”. Resta no ar um certo messianismo, mas esperar o quê de um pregador católico? Sem esperança ninguém vive.
Por essas e outras, A Mosca Azul é um livro de leitura obrigatória para quem pretende não apenas compreender a sinuca dos petistas, mas situar-se depois que o barco de Lula sumiu no nevoeiro neoliberal e tomar um rumo nesse mundo coberto de miséria, corrupção, violência e insegurança. Sem respostas prontas, Betto dá uma dica humanista-cristã para construir um mundo melhor: “O pólo de referência das esquerdas, em torno do qual precisam se unir, é somente um: o direito dos pobres”.
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