Aos 25 anos, tribo de atuadores segue trabalhando sob o signo da contestação
Naira Hofmeister
O silêncio que reinou no teatro gaúcho nos anos difíceis de ditadura militar foi rompido em 31 de março de 1978, quando nasceu o Ói Nóis Aqui Traveiz, com a apresentação dos espetáculos “A Divina Proporção” e “A Felicidade Não Esperneia, Patati, Patatá”, textos de Júlio Zanotta, dirigidos por Paulo Flores, num teatro alugado em Porto Alegre.
Essa voz seria a marca de um novo pensar e fazer teatro, como diziam os textos enviados aos jornais da Capital: “Pedra nas veias para não fazer concessões ao esteticismo burguês nem aos pregões do teatro palavra. Pedras nas veias para ir um pouco mais adiante na cultura de resistência. Para ousar opor-se”.
O grupo já nasceu sob o signo da contestação, não só política, mas também estética, e principalmente da função do teatro. “Sempre nos norteamos por uma pergunta que consideramos essencial para qualquer artista: a de saber para que serve a arte que se está produzindo”, explica Tânia Farias, atuadora da Tribo há dez anos, uma das integrantes mais antigas.
Apesar da assinatura de um diretor, as duas peças já eram o embrião do que seria a principal marca do Ói Nóis: a criação coletiva. Todos os espetáculos que se seguiram tiveram como princípio maior a interação entre todos os integrantes do grupo, desde a criação dos textos até a direção dos atores, passando pela produção do espetáculo, construção do cenário, trilha sonora e figurino.
A idéia era inventar “uma nova forma de teatro, diferente do modelo burguês que se fazia na época, muito atrelado ao governo autoritário”, lembra Tânia. Esse engajamento ideológico aliado à postura contestatória serviu de base para que o grupo chegasse ao que chama de “Teatro de Vivência”, isto é, a interação dos atores com o público, que sente o espetáculo através do contato com os atuadores.
Para isso, os artistas tocam na platéia, trocam olhares com o público, que quase sempre é obrigado a se deslocar no espaço cênico. A ambientação das montagens do Ói Nóis também envolve trilha sonora ao vivo e aromas que mudam de acordo com a necessidade da cena. Nas palavras de Tânia, “além de falar o que estava engasgado com toda aquela repressão, havia uma grande preocupação com a maneira como iríamos falar”. Isso foi traduzido na forma de apresentação, que necessariamente rompia com o modelo vigente na época, o do tradicional palco italiano, onde se cria “a quarta parede, invisível entre o palco e o espectador”.
Mas a definição do tipo de teatro pretendido pelo grupo ainda gera discussão, não tem uma única resposta. Segundo os 20 componentes da Tribo, nunca foi alcançada uma fórmula definitiva. “Trabalhamos com a idéia de permanecer descontentes com aquilo que estamos fazendo. É preciso arriscar, não interessa se a crítica não vai achar bom, nem se o público não vai gostar. O importante é que temos vontade de experimentar aquilo naquele momento”, justifica Tânia.
“Nossa utopia é realizada a cada dia”
Localizado no bairro Navegantes, o grande QG da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz expõe ao vivo e a cores os ideais da turma. Num enorme salão negro, pode se observar uma intensa movimentação dos atuadores. Em um canto, alguém modela um boneco gigante, noutro, um grupo costura o figurino a partir de peças já utilizadas em espetáculos anteriores.
Tem também os “amigos da Terreira”, que saem a colar cartazes das apresentações do grupo pelos muros da cidade. A coletividade é vivida tão intensamente que chega a gerar mitos: “Algumas pessoas acham que a gente mora junto, que namoramos uns aos outros, mas isso faz parte do folclore”, brinca Tânia Farias, atuadora do grupo há uma década.
O fato é que, mesmo não morando no espaço da Terreira, o dinheiro para sustentar as apresentações gratuitas, as oficinas, os seminários anuais e outras atividades desenvolvidas pelo grupo é resultado do suor individual. “Aqui tem garçom, professor, funcionário público”, revela a integrante da trupe, Carla Moura.
Em 2005, a companhia foi reconhecida pelo governo, sendo escolhida pelo Projeto Petrobrás Cultural. Desde então, recebe patrocínio da estatal. A verba permitiu a ampliação dos projetos existentes e o surgimento de novos, como a primeira revista de teatro do Estado, a “Cavalo Louco”, lançada em abril.
“Há muito tempo tínhamos a vontade de publicar as discussões dos seminários para levar essa informação a todos os cantos do Brasil”, conta Tânia Farias. O lançamento do projeto “Ói Nóis Aqui na Memória” é outro fruto do prêmio. O trabalho resgata a história do grupo através de um livro e um DVD, intitulados “Aos Que Virão Depois de Nós – Kassandra In Process”, que exibe o legado dos atuadores.
“Utopia para o Ói Nóis é diferente do que é para as outras pessoas. De maneira geral, significa algo nunca realizável. Para nós, é o desejo mais profundo, que colocamos em prática todos os dias. Por isso que ela vem se concretizando. Nossa utopia é a de um mundo melhor, com pessoas mais humanas, solidárias, companheiras, e não de concorrentes. Abrimos a Terreira da Tribo há vinte e tantos anos, e isso é a concretização maior dessa utopia”, conta uma entusiasmada Tânia Farias.
Ói Nóis Aqui, ali e acolá
Tribo faz questão de popularizar o teatro com espetáculos de rua
Mesmo depois da implantação de um diálogo inovador na forma de apresentação do espetáculo, a Tribo não se deu por satisfeita. “Sentimos a necessidade de tomar as ruas, pois a maior parte do público não vai à sala de teatro, está excluído do ritual”, observa a atuadora Tânia Farias. A iniciativa foi fundamental para que o Ói Nóis atingisse seu principal objetivo: popularizar a arte.
Um terço das mais de trinta peças apresentadas ao longo dos 25 anos do grupo teve como cenário a rua. No início, as intervenções refletiam mobilizações políticas do momento, como a censura, a greve geral, as diretas e, mais recentemente, o descontentamento com a classe de políticos. Nas eleições municipais de 2004, por exemplo, os artistas fizeram um manifesto pelo voto nulo.
Integrar o teatro às ruas não foi tarefa fácil. Primeiro porque não há uma dramaturgia específica para o gênero, que, segundo Tânia, acabou também se constituindo através da atuação de grupos similares espalhados pelos Brasil.
“Se analisarmos a trajetória do teatro de rua do Ói Nóis, vamos encontrar alguns espetáculos sem texto algum, outros que utilizavam a linguagem do clown – que eram basicamente de música –, os que trabalhavam com bonecos, e até os que eram puro texto do Brecht”, enumera Tânia Farias. A repressão foi outro empecilho. Em determinadas ocasiões, houve até a prisão de alguns atuadores. “A polícia destruía os bonecos, o que impedia uma segunda exibição”.
Com o tempo, a necessidade de sistematizar o trabalho nas ruas levou à criação de espetáculos itinerantes, que iniciaram em 1988, através do projeto “Caminho para Teatro Popular”. O trabalho segue até hoje. Paralelamente, a partir dos anos 2000, a Terreira se transformou em Escola de Teatro Popular, desenvolvendo oficinas de teatro na periferia da cidade. “É uma verdadeira faculdade de formação, pois oferecemos disciplinas como história do pensamento político, trajetória do teatro brasileiro, além de aulas de interpretação corporal e vocal”, descreve Pedro De Camillis, que integra o grupo há três anos.
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