PONTAL DO ESTALEIRO (1) – Uma lei sob medida

O vereador Brasinha nem precisou subir à tribuna da Câmara para defender “seu” projeto. Enquanto os colegas debatiam, ele passeava entre as mesas, rindo e fazendo graça com os vereadores da Oposição.
Alceu Brasinha foi muitas vezes citado na imprensa como o “autor do projeto Pontal do Estaleiro”. Na verdade, ele pouco fez, além de ser o primeiro a colocar sua assinatura na lista dos 17 vereadores que em abril do ano passado pediram a alteração da Lei Complementar 470 do Plano Diretor de Porto Alegre. Ele reconhece a paternidade difusa: “Esse assunto já andava tramitando por aí há um ano e meio, tinha que resolver, então um grupo de vereadores assumiu”.
O projeto chegou à Câmara e andou com rapidez incomum. Passou por duas votações, em regime de urgência. Em menos de um ano se deu toda a discussão – as duas audiências públicas, as análises nas comissões e duas votações (a primeira foi vetada pelo prefeito). No dia 15 de março de 2009, foi a decisão final – 23 votos favoráveis, 10 contra.
Por enquanto, a mudança se restringe à Lei Complementar 470, que regula a ocupação no Pontal do Melo – uma gleba de 60 mil metros quadrados, num dos pontos mais valorizados de Porto Alegre, a meio caminho entre o centro e a Zona Sul. Foi aprovada sob medida para viabilizar o projeto “Pontal do Estaleiro” – um conjunto arquitetônico com quatro prédios residenciais e dois comerciais, com altura de 14 andares, o que seria proibido pela legislação anterior.
“É a ponta do iceberg”, diz o arquiteto Nestor Nadruz, sem medo do lugar comum. Ex-técnico da Prefeitura, aos 80 anos, ele foi ovacionado ao falar na audiência pública que antecedeu a votação do projeto. “Essa decisão vai servir de referência para mudar o regime em toda a orla”, prevê Nadruz.
Quarenta e dois oradores se revezaram com manifestações veementes perante um público que lotava as galerias e o plenário da Câmara Municipal, na segunda audiência pública para debater o assunto. Não faltaram ameaças, dedos em riste, denúncias, empurrões.

A “Ponta do Melo” com as ruínas do Estaleiro Só

Mas não se repetiu o tumulto ocorrido três meses antes, quando os vereadores aprovaram pela primeira vez o projeto, contrariando uma mobilização popular, que envolve o Instituto dos Arquitetos do Brasil, Associação dos Geógrafos, o Sindicato dos Engenheiros e outras duas dezenas de entidades comunitárias e ambientalistas*.
Naquele dia, vendo os empresários da construção civil orientando a votação, as pessoas que superlotavam o plenário da Câmara Municipal jogavam moedas e acenavam com cédulas de dinheiro, gritando aos vereadores: “Vendidos, vendidos”.
Foi tamanha a repercussão na opinião pública e na imprensa que o Ministério Público abriu investigação sobre suposta distribuição de propina a vereadores, arquivada um mês depois “por falta de provas”.
Maquete do “Pontal do Estaleiro” na versão original: quatro blocos de apartamentos, dois comerciais

Ante a reação, o prefeito José Fogaça vetou o projeto aprovado. Poucos dias depois, para surpresa geral, o prefeito mandou para a Câmara um texto exatamente igual ao que havia vetado, com um adendo – a proposta de um referendo popular.
Mal o projeto de Fogaça chegou à Câmara, o secretário de Gestão e Planejamento Estratégico, Clóvis Magalhães, se apressou em dizer que município não teria condições de arcar com o custo de um referendo, estimado em R$ 2 milhões. Além do custo, havia dificuldades operacionais pois referendo significa uma eleição municipal , com voto obrigatório, urna eletrônica em toda a cidade e controle do Tribunal Regional Eleitoral. Na audiência pública que retomou a discussão, ficou claro que a maioria dos vereadores, que aprovara o projeto, não queria o referendo.
Na segunda-feira, 15 de março, o projeto estava na pauta para votação, para surpresa de muitos, pois apesar da repercussão do assunto ele não mereceu mais que discretas notinhas nos principais jornais da capital. No site da Câmara, só apareceu na Agenda do Dia às onze e meia da manhã.
Não havia mais do que 50 pessoas no plenário da Câmara quando começaram os discursos, no início da tarde. Como a sessão era transmitida pela TV Câmara, muitos se inscreveram para falar, repetindo os mesmos argumentos, desviando para ataques partidários.
Entre o público, apenas um pequeno grupo em torno do presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil manifestava-se a favor com palmas ou vaias. Do outro lado, umas 40 pessoas se manifestavam contra o projeto, com vaias e palmas. Mesmo os líderes estavam desanimados, alguns se retiraram antes. Para a atenção dos fotógrafos, um único manifestante: vestido de morte, com um plástico preto, uma foice de papelão e um cartaz.
Na véspera Fogaça já havia declarado que o referendo era inviável e que deveria ser convertido “numa consulta popular, nos moldes das eleições para os conselhos tutelares”. Disse que umas 300 urnas na região de interesse direto no assunto, resolveriam o problema.
Não deu outra: na hora da votação, uma emenda do líder governo mudou o referendo para consulta popular e ainda introduziu uma salvaguarda – se a prefeitura não realizar a consulta em 120 dias, o projeto entra automaticamente em vigor.
Foi tão tranqüila a aprovação que os vereadores que defendem o projeto não se deram conta do que significava uma emenda apresentada pelo vereador Airto Ferronatto, do PSB, e aprovada por unanimidade, ampliando de 30 para 60 metros a faixa livre entre a margem do Guaíba e as construções. Ela reduz em 26% a área construtiva do projeto, segundo o empreendedor.
Esses dois pontos – consulta popular e emenda Ferronato – aparentemente secundários seriam responsáveis por uma reviravolta no processo.

0 comentário em “PONTAL DO ESTALEIRO (1) – Uma lei sob medida”

  1. Acho importante ouvir a opinião de representantes do Instituto dos Arquitetos do Brasil, da Associação dos Geógrafos e do Sindicato dos Engenheiros do RS para que a nossa mídia grande e retrógrada não paute as discussões. E gostaria que informassem em detalhes como se deu a venda daquela área que era pública

  2. As natérias do “Já” põem a nu o que temos sustentado: a área do “Estaleiro” é bem público doEstado (art.7,VI,da Const,Est.)e isso desde os anos 30. Seu aforamento foi ilegal e,com falencia da firma “Só” deveria ter revertido(o pleno dominio)ao Estado.
    A decisão do Prefeito,aprovando a lei da Câmara, aceita os 60 metros(emenda Ferronatto)e remete a uma “consulta popular”também inconstitucional. Mesmo que esta decidisse pelo “não”, a BMPar poderia construir no Pontal prédios comerciais,com isso, adonando-se de uma área de preservação. Cabe à comunidade se organizar e impugnar todo esse projeto lesivo,recorrendo a todas as formas de luta:não à privatização da orla; não à farsa da”consulta” dita popular!

  3. Senhores e Senhoras,
    Não sou porto-alegrense, nem gaúcho, não moro mais em Porto Alegre, mas tenho pelo município um carinho todo especial. Estive olhando a foto da maquete do projeto e também de como a área se encontra hoje. Algumas observações devem ser levadas em consideração: 1) Será que a altura dos edifícios impede a visão do Guaíba após a construção das edificações para quem reside acima do morro? Penso que não, as edificações terão apenas 14 andares. Outra pergunta. 2) Será que o projeto vai alterar o fluxo das águas no Guaíba? Acredito que não, pois não há pontas e reentrâncias capazes de gerar retenções de correntes líquidas. Uma última pergunta. 3) O projeto não permite melhorar o perfil de toda a orla? Penso que sim. Embora tenha o aspecto de uma “miamização urbana”, lembrando o paraíso latino dos EUA, ele não configura uma massa compacta. As “áreas verdes” ou espaços livres de todo o conjunto parece liberar a visão dos passantes na direção do Guaíba.
    Não conheço mais detalhes do projeto que pudessem melhor configurar uma opinião definitiva. Fico sem esclarecimentos se estamos diante de um condomínio fechado; se existe tratamento de esgoto específico para todo o conjunto; se há restrições de acesso a toda a população e tantas outras dúvidas. À distância é muito difícil opinar. E se me manifesto agora é porque tenho recebido muitas mensagens eletrônicas pedindo meu voto para o “não” e até um para o “sim” e não sei bem do que se trata.
    Quero lembrar aqui o Projeto do Arquiteto Doxiadis para a Orla da Baía de Guanabara, na década de 50 do Século XX. O projeto, após algum tropeço em uma curva mais acentuada da Marina da Glória (falha logo corrigida), acabou se transformando em cartão postal do Rio de Janeiro e um dos orgulhos dos cariocas, principalmente o Aterro do Flamengo. Penso que se forem anexados aos projetos algumas obrigações suplementares Porto Alegre e sua população poderiam aprovar o projeto e até dele se orgulhar.
    Mas anexar o quê? – perguntariam os mais afoitos e rápidos para detonar meus argumentos. Penso que a exigência da recuperação de área semelhante na orla, e sei que existem muitas, tanto ao norte como mesmo ao sul para serem retiradas da degradação. Esta poderia ser uma das exigências. Outra, talvez, a criação de um parque linear junto à orla, em área mais para baixo do Estaleiro Só, com espaços para preservação permanente e outros para o lazer dos moradores da região, a exemplo da existente na Praia de Ipanema.
    Mas tudo isto, cabe a vocês. Devo dizer por fim que estou com a Isabel Herreira que escreveu antes de mim, em 29 de Abril. Acho também importante ouvir a opinião do IAB, da Associação dos Geógrafos e do Sindicato dos Engenheiros do RS.
    Tenham um bom dia.
    Arq Antonio C. M. Miranda
    CREA 1286/D

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