Francisco Ribeiro
De uma adaptação cinematográfica sempre se espera um bom relacionamento entre imagem e verbo, palavra, escrita. Ainda mais se tratando de uma autobiografia romanceada como é o caso de “Promessa ao amanhecer”, longa francês, 2017, e também título homônimo do livro de Roman Gary (1914-1980), um dos maiores autores franceses do século passado.
“Promessa ao Amanhecer” é um verdadeiro hino, sem ser piegas, ao amor maternal que, neste caso, transcende, inclusive, a morte.
De cara, na película dirigida por Eric Barbier, nota-se a folga no orçamento, mais de 20 milhões de euros, alto para os padrões europeus. Tal soma permitiu a produção reconstituir épocas, anos 20, 30 e 40 do século passado, cenários, figurinos, figurantes, objetos, e rodar em locações variadas.
Não faltou nada. São boas as reconstituições das cenas de guerra e interessantes, embora já comuns, as inserções de imagens do ator com outras, reais, de arquivos históricos, fazendo-o, inclusive, ser condecorado pelo general De Gaulle. E, fundamental, destaque para atuação da dupla formada por Charlotte Gainsbourg (Nina), perfeita como uma super ídiche mamma, e Pierre Niney (Romain, adulto).
Herói enquanto aviador na Segunda Guerra Mundial, diplomata, escritor, cineasta, Romain Gary teve uma vida atribulada e aventureira. Mas o que não se sabia até publicar o livro, em 1960, era que a sua carreira, em grande parte, respondia aos anseios, cumprimento, a realização dos sonhos idealizados por sua mãe. Isso começou nos tempos em que os dois ainda portavam o sobrenome Kacew, e Nina, já separada do marido, e Romain peregrinavam pela Rússia, Polônia, num período em que a miséria, salvo em raros momentos, estava sempre a espreita, pois os dois não eram apenas pobres, eram judeus.
Decidida a fazer do filho alguém com A maiúsculo, Nina não poupou sacrifícios para dar-lhe uma educação refinada – música, dança, equitação, tiro – e o desejo, sobretudo, depois de escolhida a profissão, de tornar-se um escrito célebre. E não só isso. Também embaixador, aviador, herói de guerra. A missão não era fácil, claro, mas Nina, atriz de segunda categoria quando era jovem em Moscou, sempre tinha uma carta na manga ou um coelho na cartola, pois, acima de tudo, sabia mentir, criar lendas, seja para vender chapéus na Polônia, seja para vender objetos de origem duvidosa em Nice, França..
Tão boa era a lábia como vendedora que lhe propuseram assumir a gerência. de um hotel, o que deu estabilidade a família até o início da Segunda Guerra, garantindo os estudos do filho em Paris.. Engajado na força aérea francesa, Romain, após a capitulação, juntou-se a resistência em Londres. Participou de várias missões sendo, a mais famosa, e até hoje colocada em dúvida, a de que orientou o piloto do seu avião, cego após ser atingido por estilhaços, a cumprir a missão (largar sua carga de bombas no alvo pré-determinado), voltar à base e aterrissar. Fato que lhe valeu uma condecoração de De Gaule.
Promessa ao amanhecer trata de um amor maternal imenso, incondicional, exacerbado ao ponto do ridículo, e também a sua outra face, seu lado sufocante, possessivo, castrador, devorador, louco. Maldição ou benção? Está claro que é preciso saber romper o cordão umbilical. Assim, se Promessa ao amanhecer é uma ode ao amor maternal e filial, e, se transborda de exageros, também mostra o lado épico, guerreiro de encarar a vida. Nina é uma verdadeira Mãe coragem, mesmo se o olhar brechtiano de distanciamento passe longe. Não há como não se envolver. Nina que prevendo sua morte escreve e envia 250 cartas a uma amiga na Suíça para que esta as reenvie, duas por semana, a Romain que assim só saberá da morte da mãe três anos depois desta ter falecido, ao voltar, condecorado, para casa.
O folclore baseado no amor da mãe judia, dimensão bíblica, que pode chegar às raias do absurdo em relação a sua prole, é cantado em prosa e verso desde os tempos de Abraão. Sobre o tema também não faltam piadas, vide Woody Allen, e, localmente, causos, como o relatado pelo nosso saudoso e imortal Moacyr Scliar, No bairro Bom Fim, principal enclave da comunidade judaica na capital gaúcha, corre o dito, lenda ou não, da ameaça da mãe em relação ao filho reticente em se alimentar:“se tu não comeres, eu me mato”. Scliar, certa vez, disse que a sua progenitora era mais sutil, recorrendo ao expediente de levá-lo a ver máquinas, extraordinárias para um menino, em funcionamento, para então, aproveitando-se do fato dele ficar boquiaberto, enfiar-lhe porções de comida goela abaixo.
Judeu askenazi como Scliar, Romain Kacew nasceu Vilnius, Lituânia, quando esta fazia parte do império russo, num período trágico e rico em acontecimentos, tais como a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. De Vilnius a Varsóvia, até, em fim, chegar a tão desejada França ao final dos loucos anos 1920, Romain e Nina sobreviveram como puderam as ameaças de miséria suprema e, mesmo, aniquilamento, pois a perseguição aos judeus antecede em muito ao holocausto nazista.
Promessa ao amanhecer também vai muito além de uma simples cinebiografia, fato que, tratando-se de Gary, sempre cabe uma investigação no que tem de verdadeiro ou de fábula. Mitômano, farsante genial que, caído no esquecimento como autor nos anos 1970, irá reinventar-se como Émile Ajar, pseudônimo (usaria outros), e ganhar o Goncourt de literatura pela segunda vez,. em 1975, com Toda a vida pela frente, título irônico para quem iria se suicidar cinco anos depois, assim como já o tinha feito, alguns meses antes, sua ex-mulher, a atriz Jean Seberg (Acossado, de Godard). Isso com certeza não fazia parte dos planos Nina.
Cosmopolita avant la letre (et pour cause), Gary, como todo o judeu errante, é um mestiço cultural e lingüístico, fruto de origens diversas. Na infância falou russo e polonês e, a partir dos 14 anos, principalmente francês, que seria a sua língua literária, embora também tenha escrito livros em inglês. Em 1935 tornou-se cidadão francês e, mais tarde, trocaria seu sobrenome de Kacew para Gary, que significa queime, em russo, forma imperativa.
Seu primeiro livro, Educação européia,1945, foi bem recebido pela crítica de esquerda que depois passou a ignorá-lo por suas posições independentes e contundentes em relação as ideologias, pois se odiava o nazismo e o fascismo, também desprezava o comunismo. O público, porém, nunca ficou indiferente, e seus livros vendem bem até hoje, e com justiça. Trata-se de um excelente escritor de obras como As raízes do céu, que lhe valeu o primeiro prêmio Goncourt em 1956, ou Chien blanc (Cão branco), 1970, um excelente panorama sobre o final dos anos 60, especialmente os Black panthers e as lutas raciais nos Estados Unidos.
Há uma outra versão de Promessa ao amanhecer feita por Jules Dassin, de 1970, disponível no Youtube. Barbier em sua adaptação optou, juntamente com a sua co-roteirista, Marie Eynard, por uma narrativa clássica, bem hollywoodiana. E se foi bastante respeitoso em relação às intenções originais do autor, não se trata, contudo, de uma mera ilustração audiovisual da obra.literária. Assista o filme e procure o livro. Veja e leia. Tudo no imperativo. Não dá pra ficar indiferente a Gary, muito menos a Nina.
Promessa ao amanhecer, o filme, uma ode a ídiche(e outras) mamma(s)
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