Revogação de lei não ‘desbloqueia’ imóveis no Petrópolis

Em 27 de novembro, a Câmara de Vereadores revogou, por 24 votos a 3, a lei que regrava o Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Município. Mas engana-se quem pensa que o veto irá clarear o cenário do listamento de imóveis, principalmente no Bairro Petrópolis, onde o processo está travado desde o começo de 2014.

A Procuradoria-Geral Adjunta de Urbanismo, Domínio Público e Meio Ambiente informou ao JÁ que “os imóveis tombados e inventariados não podem ser demolidos sem a devida licença do município e que a Lei Complementar 601/2008, revogada pelos vereadores, consiste em uma legislação procedimental. Ainda que tenha sido revogada a lei, o interesse da preservação permanece, uma vez que está expresso na Constituição Federal de 1988 e no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre”. Em tese, para a PGM, a listagem no Petrópolis permanece.

A proposta de revogação aguarda homologação do prefeito Nelson Marchezan Júnior. Ele ainda não anunciou se pretende sancionar ou não o veto. A direção da Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) aguarda o posicionamento de Marchezan para se manifestar.

350 imóveis permanecem bloqueados

Além de casas, prédios também estão na lista para preservação / Arquivo Epahc

Foram inicialmente listados 559 imóveis em Petrópolis, sem a concordância inicial dos seus donos, o que gerou o início do problema. Após a lista inicial já houve mais três revisões. Atualmente 354 casas e pequenos prédios, considerados com valor histórico, permanecem “bloqueados”.

Por trás da disputa entre preservacionista x moradores que defendem o direito a propriedade privada, está o alto valor do bairro no mercado imobiliário.

Dados do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon-RS) comprovam – Petrópolis é o bairro com maior volume de empreendimentos de Porto Alegre.

Alguns casarões já estão abandonados / Ricardo Stricher / JÁ

Em 2015, foram lançados 41 empreendimentos representando 11,55% do volume total na cidade. Em 2016, o número subiu, 43 lançamentos, ou 13,4% do total. O valor do metro quadrado no bairro jamais saiu dos dez maiores da Capital gaúcha, acima dos R$ 7 mil.

Moradores do bairro estão divididos

Uma parte dos moradores do bairro Petrópolis concorda com a preservação do patrimônio arquitetônico. Outra, lamenta a desvalorização dos seus imóveis, enquanto os terrenos no entorno ficariam muito mais valorizados.

“Para manter o imóvel, refazer uma pintura, os proprietários têm que pedir autorização da prefeitura. Fomos transformados em zeladores de nossas casas,” argumenta Fernando Molinos Pires Filho, professor aposentado e presidente da Associação de Moradores do Bairro Petrópolis Atingidos pelo Inventário da Prefeitura (Amai), que mora no Petrópolis há 25 anos.

Márcio Divino e Fernando Molinos, da Amai, querem que a prefeitura desbloqueie o bairro / JÁ

O grupo surgiu após as primeiras notificações recebidas em 2014, e luta politicamente para ‘barrar a intervenção da prefeitura na propriedade privada e no bairro’. “Não são 350 imóveis, tijolos, como fazem parecer os tecnocratas do Epahc. São famílias, vidas atingidas”, diz o advogado Márcio do Amor Divino, integrante da Amai.

Já Clivia Morato, proprietária de uma das casas na lista do inventário na Rua Dario Pederneiras, tem visão diferente. “Temos interesse em manter a história do Bairro, manter sua paisagem. Petrópolis já foi bem destruído. E esse inventário atinge menos de 400 casas, apenas 4% das moradias”, fala a integrante do Proteja Petrópolis, que conta com apoiadores do inventário.

Enxurrada de ações para desbloquear imóveis pode ocorrer

O imbróglio legislativo no inventário surgiu após moradores do Petrópolis contestarem judicialmente a lei 601. E tanto a Amai quanto o Proteja concordam que a lei possui erros desde a sua criação. A matéria foi proposta pela vereadora Sofia Cavedon, em 2008.

Aprovada, a lei jamais foi regulamentada. Desde então, a Epahc já inventariou oito bairros. Quando chegou no Petrópolis o processo travou.

De acordo com a Constituição, quem dispões de autorização pra elaborar as regras para um inventário é o Executivo municipal. Como a lei foi criada na Câmara, é inconstitucional. Há uma dúzia de ações na Justiça nesse sentido. Ainda, ao contrário da Lei para o tombamento, a do inventário não prevê nenhum ressarcimento ao proprietário que tenha sua casa listada.

Escombros de um dos imóveis na rua Farias Santos / JÁ

Em julho passado, uma construtora conseguiu liminar para retirar dois imóveis da lista. E mesmo sem autorização para demolição, nos terrenos da rua Farias Santos 220 e 234, só restaram os escombros e espigões irão fazer parte da paisagem futuramente. A construtora que ganhou a liminar ainda entrou com ação indenizatória contra o município para cobrir o prejuízo com o atraso do empreendimento.

A Prefeitura também entrou na Justiça e pede indenização à construtora que demoliu os imóveis. Não há decisão ainda sobre o assunto.

Leis aprovadas na Câmara ferem Constituição

Com a pressão da Amai e a falta de critérios claros do Epahc para elaboração da lista, vereadores ainda propuseram outras duas leis complementares. Uma de autoria de Idenir Cecchin, lei 743 de 2014, que anulava a lista do inventário em Petrópolis.

E outra, do vereador Mauro Pinheiro, a lei 804 de 2016, que prevê o reestudo completo do inventário da Capital e estabelece indenizações aos proprietários que tiverem endereços inventariados.

Como as novas leis complementares caem no mesmo erro da original, foram todas feitas na Câmara e não partiram do Executivo, estão sob judice. “Na prática, as leis são uma tentativa de barrar o inventário – são legislações que não visam a preservação da cultura e história”, argumenta o advogado Álvaro Jôffre, integrante do Proteja Petrópolis

Uma barbeiragem do MP no Tribunal de Justiça cria uma nova complicação. Ao pedir a anulação da 804, o MP citou a lei 601, mas não apontou que essa também é inconstitucional. O pleno do TJ/RS não acolheu o pedido de impugnação, e a lei 804, em teoria, está em vigor. O MP pode ainda recorrer.

Como a norma 804 veio para alterar a lei que agora pode ser revogada, há novos argumentos para uma enxurrada de ações que visem desbloquear imóveis listados.

Para o advogado Daniel Nichele – “todo o processo foi mal construído pela Prefeitura. Só o executivo, com ação decisiva para resolver isso”. Ele liberou as duas casas já demolidas em julho e lembra. “As casas foram adquiridas em 2013, com investimento superior a R$ 3 milhões”. Ainda de acordo com Nichele, que é conselheiro do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, com a lei revogada, as ações já existentes caem, mas outras surgirão. “Não havendo legislação, há formas de contestar a inclusão na lista. Vou conversar com clientes meus. Mas há possibilidade de liberarmos mais imóveis”, avisa.

O advogado da Amai, Márcio Divino, diz que só na última semana vários moradores o procuraram para saber se os imóveis estavam ‘livres’. A Amai tem a posição de aguardar novos desdobramentos. “Nunca entramos e não pretendemos entrar na Justiça, avisamos que a questão só se define com um posicionamento do Executivo. A Epahc tem que mostrar as regras e esclarecer, com as contrapartidas aos moradores. Mas há brechas pra ações – é um risco que o proprietário assume”, coloca.

Álvaro Jôffre concorda com a revogação da lei de 2008, por ela ter “vício de iniciativa”, e vai além, para ele, a 804 também deve perder valor – “se ela alterava a lei revogada, perde-se o sentido”. Ele acrescenta que – “essa revogação não acaba com o inventário. Há previsão legal na Constituição Federal e no plano diretor da cidade para isso. E as outras legislações criadas na Câmara também caem, já que modificavam uma lei inconstitucional”.

A atual proposta de revogação, da lei de 2008 , foi feita pelo vereador Dr. Thiago Duarte, e assinada ainda por Reginaldo Pujol, Mauro Pinheiro, Valter Nagelstein, Felipe Camozzato e Idenir Cecchim. “Queremos destravar o bairro, o poder público não pode intervir no direito privado”, argumenta o vereador Thiago Duarte.

Paim perguntou a Amai: “O que vocês querem  para acabar com o problema?”

Em agosto, numa reunião na Câmara de Vereadores, a arquiteta Ronice Borges, diretora da Epahc, anunciou a criação de uma comissão entre três secretarias (da Cultura, Desenvolvimento Econômico, Meio Ambiente e Sustentabilidade) e o gabinete do vice-prefeito para discutir o problema. É a tentativa da atual gestão para destravar a listagem.

Mas, após o anúncio, pouco foi feito. Oficialmente, as secretarias estão em processo de nomeação dos integrantes do GT que irá discutir as medidas a serem tomadas. Recentemente, Fernando Molinos e Márcio Divino se encontraram com o vice-prefeito, Gustavo Paim, e o diálogo foi inusitado. Paim foi direto – “o que vocês da Amai querem fazer pra acabar com o problema?”. Divino argumentou ao vice-prefeito que não caberia a Amai dizer o que fazer, mas sim, o Executivo. “Não podemos dizer isso, o Executivo tem que tomar essa posição”, falei. Paim ficou de analisar com cuidado, mas não apontou os rumos a serem tomados pela prefeitura.

“Estamos há quatro anos nessa luta, não queremos propor leis, quem somos nós, apenas lutamos pelos nossos direitos. A prefeitura não toma posição firme”, analisa Divino.

O contato com a gestão Marchezan começou ainda com o secretário adjunto de Cultura Eduardo Wolf. “Ele nos garantiu que não aceita intervenção pública no privado”, lembra Molinos. Mas Wolf saiu do cargo em julho, deixando uma dica a Amai. “Quando conseguirem chegar ao Marchezan aproveitem, é quase impossível ir até ele, até para quem trabalha na prefeitura – Ele nos falou isso”, lembra Molinos.

Fortunati – “não serei lembrado como o prefeito que liberou Petrópolis à especulação imobiliária”

Os conflitos entre a Amai e a Epahc vem desde a primeira lista, ainda em 2014. Os moradores alegam que receberam notificações no começo de 2014, época de férias, e que muitos souberam que seus imóveis estavam listado quando o prazo de 30 dias para pedir impugnação já tinha vencido. “É sempre assim, as listas aparecem na época de férias”, argumenta Molinos.

Organizada, a Amai juntou abaixo-assinado com 1500 assinaturas e conseguiu apoio na Câmara, que propôs as normas 743/14 e 804/16. Houve até visitas ao bairro de técnicos da prefeitura, vereadores e o então vice-prefeito, Sebastião Melo, em 2015, o que acabou por revogar a primeira lista. Logo após a visita, o prefeito José Fortunati declarou a membros da Amai – “não serei lembrado como o prefeito que liberou Petrópolis à especulação imobiliária” e colocou o bairro em estudo. As listas sucederam-se. Na quarta versão, há 354 imóveis bloqueados.

Há casas que já entraram e saíram do inventário. Na esquina da Borges do Canto com a Protásio Alves havia uma, que saiu de uma das listas; o proprietário derrubou e hoje é um estacionamento. Na última lista a ‘casa’ voltou ao inventário. “Não há regra alguma”, lamenta Molinos.

“É preciso diálogo, a legislação federal exige participação da sociedade na definição dessas políticas. Não é o que ocorre, O Tombamento exige indenização, inventário não, jogam a preservação para o colo dos moradores – é cômodo para a prefeitura. Não somos contra o patrimônio cultural, mas quero que me mostrem 20 casas no Petrópolis de real interesse cultural. Desafio – e mais de 300 então, um absurdo”, completa o professor aposentado.

“A revogação da lei é uma vitória dos moradores. Mas é preciso peito de Marchezan. Ele chamou o legislativo de cagão, mas não pode se esconder, depende de uma ação do Executivo”, finaliza Márcio Divino, 50 anos, nascido e criado no bairro.

A favor do inventário, Álvaro Jôffre diz que não confia nos vereadores e que não vê necessidade do Executivo propor alguma nova lei. “Ao chegar na Câmara, nossos vereadores vão novamente deturpa-la. É preciso que o Executivo siga com o inventário. Há legislação estadual e federal suficiente. Basta ‘tocar o barco’.”,

Em 2014, grupo organizou manifesto a favor do inventário / Arquivo JÁ

O Inventário não retira o direito de propriedade de um bem; apenas impede que ele venha a ser destruído ou descaracterizado. Há dois tipos de imóveis que entram na lista, os considerados de estruturação, que devem ser preservados, sem modificação de fachada, e outros de compatibilização, que têm relevância pela composição do entorno, não podendo sofrer alterações que descaracterizem a ambiência do bairro.

Antes do inventário, agora parado, haviam somente 11 bens relacionados como de interesse cultural no Petrópolis:

– Caixa Dágua da Praça Mafalda Veríssimo, tombada em 2008 a pedido dos moradores.

– Oito casas na avenida Felipe de Oliveira, entre elas a casa do escritor Érico Veríssimo.

– Restaurante Barranco, antiga sede de uma chácara.

– Casa Estrela, na rua Camerino, 34.

Abaixo mais exemplo de imóveis listadas para entrar no Inventário.

Fotos Ricardo Stricher / JÁ

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