Matheus Chaparini
Na década de 1940, um grupo de homens negros criou o que viria a ser a maior atração do carnaval de Porto Alegre durante décadas. Ao longo do tempo, as tribos indígenas tomaram maior importância chegando a principal atração da festa.
Com fantasias que imitavam tribos indígenas, os grupos desfilavam pelas ruas do centro. Esta manifestação é uma peculiaridade do carnaval de Porto Alegre, que têm parentes semelhantes em cidades como Salvador e João Pessoa.
Porto Alegre chegou a ter 14 tribos desfilando. Hoje, restam apenas duas: Guaianazes e Comanches. É comum haver rivalidade entre agremiações carnavalescas, mas este é um caso ainda mais emblemático.
Só há um adversário. Ganhando ou perdendo, a guerra é sempre com o mesmo grupo. Esta disputa que se repete ano a ano é um dos principais combustíveis que mantém vivo o carnaval de tribo em Porto Alegre.
Quando foram criadas as primeiras tribos, na década de 1940, os desfiles aconteciam na Rua da Praia – que na época fazia jus ao nome. Os blocos entravam pela Caldas Júnior, passavam pelo coreto oficial, que concentrava os jurados, na Praça da Alfândega e a dispersão era na rua General Câmara.
Hoje, as tribos saem no Porto Seco, junto aos desfiles das escolas de samba. Mas a diferença é visível, sob vários aspectos.
As tribos não cantam sambas enredo, cantam hinos, com temática indígenas.
Os instrumentos também se diferem, a bateria da Tribo Comanches, por exemplo, é formada por surdo, maracanã, repinique e agê. A harmonia tem dois cavacos e violões de seis e sete cordas.
O passo da dança é diferente e as personagens presentes nos desfiles são outras. Não há mestre sala, porta bandeira e rainha, mas cacique, pajé, deusa, feiticeira.
O ponto alto do desfile é a macumba, uma encenação teatral do tema do ano, que é feita quando a tribo passa pelos jurados.
Caetés e Iracemas, o início de tudo
“O carnaval de índio foi criado pelo Seu Hemetério, um negrão que era amigo do meu pai. Ele criou a primeira tribo de índio: Os Caetés, em 43”, explica Eugenio Alencar da Silva.
Aos 11 anos, Mestre Paraquedas, como Eugenio é conhecido, ajudou a fazer a primeira alegoria dos Caetés. “O tema era a primeira missa no Brasil. Então era uma oca e uma cruz, que ia deitada durante o desfile. Daí na hora a gente levantava a cruz com uma corda, o padre rezava a primeira missa, vinha o Pedro Alvares Cabral e dizia ‘não tem terra como essa, em que plantando tudo dá!’ e coisa tal…”
O primeiro desfile de uma tribo foi um sucesso. Entretanto, nem todo mundo podia desfilar: nos Caetés só saía homem.
Assim, no ano seguinte, surgiam as Iracemas. Uma tribo formada só por mulheres. Sem poder brincar o carnaval na tribo e se dedicando apenas às atividades de bastidores, como a de costureira, elas decidiram assumir todas as funções e criar uma agremiação.
“Tinha uma senhora chamada Dona Angelina. O marido dela, Seu Adão, trabalhava no Diário de Notícias e saía nos Caetés. Aí a Dona Angelina, a minha mãe, a Dona Constança se uniram e fizeram as Iracemas.”
Já no primeiro desfile, as Iracemas venceram dos Caetés.
Mais um ano, mais um carnaval, nova vitória da tribo da mulherada. “No segundo ano, elas vieram afu mesmo. Bom, deixaram os Caetés lá embaixo”, conta.
Com os dois resultados seguidos, as mulheres forjaram uma mudança na tribo dos Caetés, que deixou essa história de ser tribo só de homem.
Uma relação entre povos historicamente oprimidos
O discurso do senso comum basicamente define as tribos como um carnaval feito por negros que se vestem de índio.
A antropóloga Luiza Flores contesta esta abordagem. “Não posso simplesmente dizer: são negros, não são índios.”
Para a pesquisadora, o que tem de mais importante é pensar como esses carnavalescos estão se relacionando com o conceito de negro e com o conceito de índio.
Ainda que muitos integrantes não se digam indígenas, há uma relação identitária que é mais profunda que uma brincadeira de carnaval. Entra em questão o conceito de índio.
“Tem pessoas da tribo que tem descendência indígena, poderiam se declarar indígena, mas não fazem por ‘n’ motivos. Mas encontram nas tribos, um contato com essa historia indígena familiar apagada. E é um vínculo identitário que não necessariamente passa pelo sangue.”
O carnaval de tribos foi o assunto do mestrado da antropóloga, defendido em 2013, pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de janeiro), com o tema Os Comanches e o prenúncio da guerra: Um estudo etnográfico com uma tribo carnavalesca de Porto Alegre/RS.
“Ali tem uma relação entre dois povos historicamente oprimidos, que sempre se encontraram em um processo de resistência. O que fazem as tribos hoje é um processo de resistência”, conclui.