Todo se encontram na "lanchera"

Helen Lopes

O ambiente não tem nada de especial: mesas de mármore, cadeiras de madeira e o tradicional balcão de metal com bancos altos, de onde se pode escolher os salgados pelo aspecto. A ausência de janelas, de uns anos para cá, passou a ser menos angustiante graças aos gigantes ventiladores que borrifam gotículas de água no ambiente, tornando-o mais úmido. Cheiro de fritura tem sempre, porque além dos lanches – xis, bauru, pastel, coxinha e torrada – tem um bufê quente mantido durante 12 horas consecutivas.

Apesar disso, ou talvez justamente por essas razões, é na Lancheria do Parque que há 26 anos os mais variados públicos convivem em harmonia. Aposentados do Bom Fim e estudantes, porteiros e professores universitários, atletas da Redenção e até baladeiros, passam ali. O cara da banda de rock underground pode estar sentado ao lado do ator de novelas da Globo. Entre eles, centenas de anônimos moradores da região.

A lenda é que houve um tempo em que o bar não fechava nunca. Sobreviveu ao auge da esquina maldita, aos punks, às drogas, às freqüentes brigas e tiroteios. “Por isso tive que reduzir o horário de funcionamento e agora, fechamos às 2h da manhã”, revela o proprietário Ivo Salton.

Todos os dias, às seis horas da manhã, ele ergue as cortinas de ferro do nº 1086 da Osvaldo Aranha. Chega de camisa e calça social, mas logo retorna com o jaleco branco e o boné: uniforme inconfundível.

Ao lado da mulher Inês e do sobrinho Neomar, ele administra o negócio, ao qual dedicou quase metade da vida. “O que me deixa contente é o apoio dos clientes. São compreensivos e me ajudam quando preciso. É esse companheirismo que dá ânimo”, entusiasma-se o descendente de italianos de 56 anos.

Nas primeiras horas da manhã, o balcão é concorrido. São vigias, brigadianos, agentes da EPTC, enfermeiras e médicos do plantão do HPS. A maioria solitária quer apenas tomar um café, ler o jornal e sair rapidamente. “Venho todas as manhãs, peço um pretinho e um pastel para começar o dia”, diz um segurança, que sai ligeiro sem deixar o nome.

Aos 82 anos, Mota Turkinez e o amigo Abraão estão ali para jogar palitinho. Não marcam horário, mas no meio da manhã, todos os companheiros já apareceram. Entre uma partida e outra, tomam café e suco de laranja, falam de futebol, dos negócios e até de temas “impróprios para uma moça”.

Foi por causa de aposentados como o seu Mota, que o ator Zé Victor Castiel começou a freqüentar a Lancheria. “Passei aqui na frente um dia, vi eles jogando palitinho e me lembrei do meu pai”, conta.

Zé Victor morou muito tempo na rua Felipe Camarão, mas só depois de adulto descobriu a “lanchereca”, como ele chama. Gostou tanto que transformou o local em escritório: “Chegava às 13h, sentava numa mesa lá do fundo e dava expediente até às 19h. Fechava negócios, projetos. O Porto Verão Alegre nasceu aqui”.

O ator tem inúmeras histórias para contar da lanchereca. Conhece todos pelo os garçons pelo nome e esteve na festa de casamento de cinco deles. Numa ocasião, teve seu carro roubado em frente ao bar. Através de uma mobilização dos garçons e “malandros” que ficam na frente da Lancheria, umas semanas depois, ele recebeu um telefonema enquanto tomava um suco. “O carro estava na Francisco Ferrer, sem nada a menos e tinha um bilhete pedindo desculpas”.

Mesmo depois da fama e morando num bairro distante, ele garante que sempre arruma um tempo para rever os amigos. “É o elo de ligação com a vida comum, simples. Aqui eu sou eu mesmo, me sinto em casa”, revela.

É também a simplicidade e o ambiente caseiro que atrai até hoje o empresário Federico, de 38 anos. Sócio de um bar na Cidade Baixa, ele janta todos os dias no final da tarde, antes de ir para o trabalho. “Leio o jornal, como e vou embora. Nem paro pra conversar com ninguém”.

Rotina bem diferente de duas décadas atrás, quando aos 18 anos, passava na “lanchera” antes de ir no Ocidente. “Era o nosso ponto de encontro”, recorda.

Com o fim da boêmia na Osvaldo Aranha, a Lancheria perdeu parte do seu público noturno. Mas ainda é possível ver o Frank Jorge tomando uma “ceva” na mesa do fundo. E sempre tem alguém montando uma banda ou combinado uma manifestação.

A proibição do fumo também espantou um pouco os clientes da noite “Era necessário, não tínhamos ventilação adequada”, afirma seu Ivo.Alguns não se importam. Caso do professor universitário Eduardo. “Fumo na rua, antes de entrar ou quando vou embora”. A suspensão do cigarro trouxe um público novo para o horário: as crianças. Passava das 21h, quando o casal Ana e João entrou com a filha de colo Melissa. Enquanto aguardavam um lanche para levar, tomaram uma cerveja e brincaram com a criança. “Namorávamos aqui, hoje continuamos vindo, só que agora com companhia”, brinca a mãe.
Bufê permanente e suco: instituições da casa
Em qualquer momento, entre às 10h  e às 24h, é possível comer um prato de comida caseira pelo preço mais acessível da região. O bufê livre custa R$ 5,00 e os alimentos são repostos quase até a hora de fechar o bar. “Enquanto tem gente comendo, mantemos os pratos quentes”, observa seu Salton.

O suco natural também é outra marca da casa. A medida é o “liquidificador”, que custa entre dois reais e dois e setenta. “É o melhor custo beneficio da cidade”, garante um corredor do Ramiro Souto.

“Mamãocomlaranjasemgelo!”, grita o garçom do meio do salão. A orientação revela à todos os freqüentadores os pedidos individuais. “É uma maneira de agilizar”, esclarece Valmir Pederiva – o alemão Baldequi.

Ele é um dos garçons mais antigos da casa, começou um ano depois da inauguração. Assim como muitos colegas, veio da mesma cidade de seu Ivo, Encantado, no interior do Estado. “Nossas famílias eram vizinhas”.

Economia solidária
O garçom conhece quase todos os clientes pelo nome. “A conversa começa pela corneta do futebol, mas depois vem a amizade”, conta Baldequi, que hoje é um dos onze sócios de seu Ivo.

Através de pequenas cotas, o sistema associativo foi a maneira encontrada para fugir dos encargos e dar mais motivação aos funcionários. A opção desenvolve a imaginação dos freqüentadores e os mais assíduos têm teses sobre a lucratividade da Lancheria.

“São donos de todo esse prédio”, opina um homem sentado ao balcão. “Todos têm casa na praia ou moram em grandes apartamentos”, garante outro. “Pudera! São mais de três mil pães vendidos por dia”,  acredita um terceiro.

Reservado, seu Ivo não revela muito sobre o negócio. Com muito custo, conta que em média são vendidos mil pães por dia. “Suco não tem como contar”, desvia.

Essa reportagem é um dos destaques da edição 385 do jornal JÁ Bom Fim/Moinhos. A publicação é quinzenal e circula gratuitamente nos 10 bairros da área central de Porto Alegre.

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