O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador depois da Ditadura de 1964, criou e comandou, de outubro de 1970 a dezembro de 1973, o maior centro de repressão política no país, o DOI CODI, de São Paulo.
Nesses quatro anos, segundo sua mulher, Maria Joseíta, o Natal e o Ano Novo da família (ela, Ustra e a filha Patrícia de 3 anos) foram passados no quartel, junto com as mulheres ligadas à luta armada que estavam presas e, sistematicamente, torturadas.
A afirmação está numa carta que ela escreveu às filhas, Patrícia e Renata, em 1985, quando Ustra foi apontado publicamente como torturador pela atriz Bete Mendes, ex-militante da VAR-Palmares.
A intenção da carta é rebater “as calúnias jogadas sobre um homem bom” que lutou numa guerra contra terroristas.
O texto resume a tese que depois seria sustentada no livro “Rompendo o Silêncio”, que Ustra escreveu logo depois. “Estes terroristas obrigaram as Forças Armadas a se lançarem as ruas e aos campos, contra o inimigo desconhecido que se escondia na clandestinidade”.
“Houve a guerra e em uma guerra há mortos e feridos, mas os militares não a queriam nem iniciaram”.
Para demonstrar que havia um tratamento humanitário aos presos, descreve uma “pequena obra assistencial a algumas presas mais ou menos seis, uma inclusive grávida”. Ela levava a filha, com três anos. “Iamos quase todos os dias. Tu brincavas com algumas, enquanto eu, com outras, ensinava trabalhos manuais, como tricô, crochê e tapeçaria. Passeávamos ao sol, conversávamos (jamais sobre política), levava tortas para o lanche, feitas pela minha empregada. Enfim as acompanhávamos”.
Fizemos sapatinhos, casaquinhos, mantinhas para o bebê e com uma lista feita no DOI pelo `torturador` Ustra, compramos um presente para o bebê. Ele nasceu no Hospital das Clínicasem outubro de 1973 ou 1972, tendo o “centro de torturas” mandado flores à mãe e eu e tu, Patrícia, fomos visitá-los. Era um homenzinho lindo e forte”.
“Minhas filhas, os aniversários delas eram sempre comemorados com bolos e festinhas. Os Natais e Anos Novos jaimais passamos em casa durante os quatro anos que o pai de vocês comandou o DOI, sempre foram passados lá (o pai, eu e tu Patricia, Renata não era nascida) Tu, Patricia, às vezes a pedido das presas ficavas sozinha com elas. Daí o artigo “Brinquedo Macabro”, do jornalista Moacyr O. Filho, que diz que teu pai te deixava com as presas que acabavam de ser torturadas”.
Ustra morreu no dia 15 de outubro de 2015, aos 83 anos. Estava internado no Hospital Santa Helena em Brasilia, para tratamento de um câncer.
O coronel reformado fazia quimioterapia e estava com a imunidade baixa.
Nos período em que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na década de 1970, em São Paulo, 502 pessoas teriam sido torturadas e 50 no local.
Ustra sempre negou todas as acusações, apesar dos inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes. Em sua última entrevista ao jornal ZH, ele admitiu “excessos”, o que para o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke, foi uma “confissão de um contumaz torturador”.
Ustra: um corpo sem dignidade
Renan Quinalha
Advogado
OBITUÁRIO COM HURRAS, de Mario Benedetti
(…)
viva
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não chorar como de hábito
que chorem os que são como ele
e que engulam suas lágrimas
foi-se embora o monstro magnata
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
sem ficar mornos
sem acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
sem ficar frouxos
sem esquecer que este
é um morto de merda
Ustra morreu hoje. Com 83 anos, faleceu tranquilamente em um hospital, com tratamento médico adequado e na companhia de sua família. Em tudo o oposto do sofrimento atroz que impingiu às suas vítimas e seus familiares
Coronel da ditadura, Ustra comandou o principal centro clandestino de detenção e tortura brasileiro. No DOI-CODI de São Paulo, onde era conhecido como ‘major Tibiriçá’, pelas suas mãos sujas de sangue, entre 1970 e 1974, passaram ao menos 50 pessoas que foram mortas ou estão até hoje desaparecidas, além de mais de 500 pessoas torturadas barbaramente.
Sua família terá um corpo presente para velar e consumar o luto da sua perda. Não será um corpo torturado como o dos milhares de presos políticos, que passaram pelos cárceres ilegais da ditadura brasileira. Não será um corpo enforcado como o de Vladimir Herzog. Não será um corpo desfigurado como o de Eduardo Leite (Bacuri). Não será um corpo mutilado, como o de Luiz Eduardo da Rocha Merlino. Não será um corpo desaparecido, como o de Hirohaki Torigoe. Não será um corpo baleado, como o de Carlos Marighella. Não será um corpo sepultado como indigente ou com nome falso, como no caso de Luiz Eurico Tejera Lisboa. Não será um corpo jogado em uma vala comum, como o de Flávio Carvalho Molina. Não será um corpo enterrado e desenterrado diversas vezes para depois ser atirado no alto mar, como o de Rubens Paiva.
Os médicos que trataram do Ustra não faltarão com a verdade, ao contrário dos peritos e legistas que o auxiliaram a encobrir seus crimes na ditadura. Seu atestado de óbito não será forjado com versão falsa da causa mortis como “atropelamento”, como no caso de Alexandre Vannucchi Leme, “tentativa de fuga”, como no caso de Luiz Hirata, “tiroteio”, como no caso de Sonia Maria de Moraes Angel Jones, ou “suicídio”, como no caso de Manoel Fiel Filho.
Tampouco constará, neste documento, uma morte fictícia e não esclarecida como nos atestados emitidos conforme a Lei dos Desaparecidos Políticos (Lei 9.140 de 1995).
Mas seu corpo, que será enterrado ou cremado inteiro, com atestado de óbito verdadeiro, com todos os cuidados médicos e na companhia de seus familiares que dele poderão se despedir é um corpo sem dignidade. É o corpo de um torturador covarde. É o corpo de um violador dos direitos humanos. É o corpo de alguém que matou, torturou, desapareceu e ainda achava que agiu corretamente. Morre reivindicando seus atos em gozo da liberdade e da impunidade que os verdugos não merecem. É o corpo impune que atesta a falta de justiça da nossa democracia.
Ao menos ele foi um dos 377 torturadores reconhecidos oficialmente pela Comissão Nacional da Verdade e também foi declarado torturador pelo Judiciário paulista em histórica ação da família Teles.
Outros assassinos da ditadura ainda estão vivos. Cabe agora ao Judiciário parar de torturar a justiça e a verdade. Que a lembrança dos nomes daqueles e daquelas que tombaram resistindo à ditadura e que foram vítimas diretas da violência do Ustra não nos permita esquecer esse passado e nos motive a lutar ainda mais pela justiça.
Alceri Maria Gomes da Silva, Alex de Paula Xavier Pereira, Alexander José Ibsen Voerões, Alexandre Vannucchi Leme, Ana Maria Nacinovic Corrêa, Ângelo Arroyo, Antônio Benetazzo, Antônio Carlos Bicalho Lana, Antônio Sérgio de Mattos, Arnaldo Cardoso Rocha, Aylton Adalberto Mortati, Carlos Nicolau Danielli (Carlinhos), Dorival Ferreira, Edson Neves Quaresma, Eduardo Antônio da Fonseca, Emmanuel Bezerra dos Santos, Flávio Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira (Chico Dialético), Francisco Seiko Okama, Frederico Eduardo Mayr, Gelson Reicher, Gerardo Magela Fernandes Torres da Costa, Grenaldo de Jesus da Silva, Helber José Gomes Goulart, Hélcio Pereira Fortes, Hiroaki Torigoe, Iuri Xavier Pereira, João Batista Franco Drummond, João Carlos Cavalcanti Reis, Joaquim Alencar de Seixas, Joelson Crispim, José Ferreira de Almeida, José Idésio Brianezi, José Júlio de Araújo, José Maria Ferreira Araújo, José Maximino de Andrade Netto, José Milton Barbosa, José Roberto Arantes de Almeida, Lauriberto José Reyes, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, Luiz Eurico Tejera Lisboa, Luiz José da Cunha, Manoel Fiel Filho, Manoel Lisboa de Moura, Manuel José Nunes Mendes de Abreu, Marcos Nonato da Fonseca, Norberto Nehring, Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar, Raimundo Eduardo da Silva, Roberto Macarini, Ronaldo Mouth Queiroz, Rui Osvaldo Aguiar Pfützenreuter, Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones, Virgílio Gomes da Silva, Vladimir Herzog e Yoshitane Fujimori
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