Naira Hofmeister
Foi uma coletiva de imprensa muito concorrida. Jornalistas de diversos veículos entrevistaram a colega Åsne Seierstad, autora de best-sellers como O Livreiro de Cabul e 101 dias em Bagdá. A conversa aconteceu no anexo do Salão de Atos da UFRGS, antes de sua conferência no Fronteiras do Pensamento, e durou pouco mais de uma hora. A seguir, os principais momentos da entrevista:
No caso de O Livreiro de Cabul, a convivência com a família não atrapalha a análise do objeto da sua reportagem?
A convivência é o próprio livro, ele consiste nisso. Não importa se é um jornalista ou um escritor, um texto sempre será resultado de uma determinada experiência. Claro que o ideal, no sentido de objetividade, é que ficássemos invisíveis, ou que fossemos câmeras na parede, mas isso é impossível.
Por outro lado, a oportunidade de gastar tempo com um assunto específico me parece essencial. Porque uma pessoa pode fazer de conta por uma hora, duas. Pode fazer de conta até por uma semana. Mas com o tempo, o verdadeiro caráter acaba aparecendo.
Mas durante a minha permanência no Afeganistão, houve momentos em que eu me tornava invisível, pois estava de burca. Essa vestimenta me permitiu vivências que eu jamais teria como ocidental e principalmente como jornalista. Um exemplo disso foi uma vez que acompanhei uma jovem numa entrevista de emprego. Ela queria ser professora, e a acompanhei na escola, vestida como um afegã. Se eu fosse “como eu mesma”, certamente teriam me oferecido café, teriam sido muito gentis. Não foi o que aconteceu.
Também experimentei a sensação das mulheres que são obrigadas a viajar no bagageiro dos táxis, se houver um homem no banco. Se eu estivesse vestida como ocidental, certamente o táxi não teria parado ou o homem desembarcaria para me dar lugar.
Que mensagem você destinaria às pessoas dessa família afegã?
Minha estadia na casa deles foi resultado de coincidências. O personagem central, o
livreiro, falava muito bem inglês e tinha um certo traquejo social. Convidou-me para jantar em sua casa e descobri que ali havia um livro. Uma mensagem para a família inteira é algo difícil de pensar, pois era completamente desfuncional. Não havia uma unidade familiar, cada um possuía um projeto de vida diferente.
Eu ainda mantenho contato com algumas dessas pessoas, principalmente com Leila, que na época era uma moça e hoje leva uma vida de uma senhora afegã casada, absolutamente normal. Não é muito próspera, mas eu tento ajudá-la como posso.
Já com o livreiro… bem vocês devem saber. Nosso conflito dura quatro anos. Eu
acredito que sua raiva pelo livro é proveniente da diferença de expectativas quanto ao que deveria ser publicado ou o que é um livro. Eu sinceramente acreditava que ele iria ler o texto cuidadosamente e, após uma reflexão, entenderia minhas concepções. Mas ele tentou tirar o livro de circulação e inclusive propôs um encontro para que reescrevêssemos o livro.
Mas de fato ele nunca foi concreto ao dizer no que exatamente o livro está errado. Ainda assim, ele esteve na Noruega, jantamos juntos e conversamos sobre amenidades em um a ocasião. Mas imagino que ele não quer que esse conflito termine, pois muitas soluções foram propostas.
Por que ele não quer o fim da briga?
Falei sobre as nossas diferenças de expectativas: ele imaginava que seria representado no livro como um anjo afegão. Que o livro fosse um conto de fadas. Mesmo porque, essa era a literatura a que estava habituado: histórias heróicas de reis afegãos. Apesar de ser um homem da elite, proprietário de uma livraria, seu contato único era com a produção local. Ele não conhecia sequer os clássicos do século XVII e XIX.
Por exemplo, ele aprovou que suas mulheres contassem as próprias histórias. Mas não imaginava que elas fossem tão francas. Na verdade, o grande problema é que ele desejava ser um herói para o oeste, falando de democracia no Afeganistão e, ao mesmo tempo, um herói local, que adere aos valores tradicionais de controle e repressão social. E isso é impossível.
Muitas mulheres afegãs que vivem na Europa e leram o livro me agradeceram por tê-lo escrito. Mas falaram que tive uma abordagem muito superficial, que havia muitas outras coisas a falar. Que as coisas que relato, são de fato algo comum no país. De toda a forma, o personagem Livreiro de Cabul tem seus méritos. Era um homem interessado na difusão cultural. E também não era uma pessoa violenta.
Você leu livro que ele escreveu? O que achou?
É um livro muito pequeno, por isso li rapidamente. Tem letras grandes e bordas
largas e realmente pouco texto. Ele havia me adiantado o conteúdo durante um jantar em minha casa, na Noruega. Mas me chamou muito a atenção a maneira com que ele aborda a história. Ele narra que está sentado no hall de um hotel em Karachi e pela janela entram dois trolls, que são figuras mitológicas das montanhas da Noruega.
Esses personagens não têm um caráter definido, são bons e maus ao mesmo tempo. No livro eles são enviados pelo rei dos trolls para descobrir a verdade dos fatos. E dizem a ele que querem fazer-lhe perguntas, evidentemente aquelas que ele gostaria de responder. Sua promessa é provar que não sou culpada, mas que quando fui à sua casa, levei alguns trolls na minha mochila, que fizeram que eu escrevesse aquilo.
Mas ele me retrata como culpada. E ainda nega alguns detalhes, como o fato de seus
filhos não irem à escola. No seu livro, ele argumenta que as escolas estavam fechadas naquele ano, mas isso não é verdade, pois havia um sobrinho dele que
freqüentava aulas regularmente. Ainda assim, acho uma maneira democrática de
resolver os problemas. Eu escrevi meu livro e ele o dele. Se todos os conflitos do
mundo se solucionassem dessa maneira, seria excelente, não é?
Qual a cobertura jornalística mais difícil que você fez?
Difícil responder. Há muitas dificuldades quando se está numa guerra. Mas certamente uma das tarefas mais complicadas foi descobrir a verdade por trás das frases feitas com que os iraquianos respondiam as minhas perguntas sobre o regime de Saddam Hussein. Como o jornal para o qual eu trabalhava me exigia uma reportagem diária, era muito complexo.
Como é seu dia-a dia fora das guerras, seu trabalho?
Não trabalho quando não há conflitos…. (risos). De toda a maneira, sempre fui uma jornalista independente, free lancer a maior parte do tempo. Nunca tive a pretensão de me tornar uma repórter, meu interesse era ser pesquisadora. Por isso minhas reportagens são repletas de personagens e sentimentos. Durante um ano, trabalhei numa rede de televisão e fui uma jornalista medíocre.
Mas um dia, me enviaram para a guerra de Kosovo e então descobri que era o que eu gostaria de fazer: buscar histórias interessantes. Não por ser uma guerra, mas porque era um momento decisivo para a humanidade, algo que iria mudar o mundo. Me interesso pelos destinos das pessoas.
Como você vê a situação das mulheres atualmente, no mundo e no Brasil?
Na Noruega vivemos numa democracia ocidental e há uma família real que cumpre funções protocolares, como receber chefes de Estado. Há algum tempo, a princesa norueguesa concedeu uma entrevista para uma repórter sueca. E disse que na Noruega os homens e as mulheres são iguais, e inclusive recebiam o mesmo salário. Isso gerou muitos protestos, porque mesmo no meu país, as mulheres ainda recebem 80% do vencimento dos homens.
Não posso falar sobre a realidade brasileira, porque desconheço. Por exemplo, se uma família pode colocar apenas um dos filhos numa universidade, vai escolher o homem. De toda a maneira, a imagem que temos de vocês é um pouco clichê, ma sé positiva: mulheres que sambam e são lindas.
Os direitos humanos estão acima da cultura. Uma pancada não dói menos numa afegã, porque lá isso é mais comum do que no Brasil ou na Europa. Também não é porque sua origem é oriental que não tem o direito de estudar. Há muitas africanas exiladas na Noruega e suas famílias as mandam – quando atingem oito ou nove anos de idade – de “férias” para suas cidades natal, onde são submetidas à clitoridectomia, que é a mutilação do clitóris. Agora há uma lei que permite prender ou processar essas famílias, por exemplo.
A mídia não estaria auxiliando no fortalecimento dessa visão maniqueísta das culturas: o oriente é mau e atrasado e o ocidente é democrático e desenvolvido?
Não podemos impor uma solução nesses países, eles mesmos têm que querer mudar. Por isso, uma parte da renda de O Livreiro de Cabul está destinada a educar as meninas afegãs. Montei uma escola para meninas em Cabul, onde elas aprendem a ler e escrever. Está no terceiro ano de operação e lá estudam 600 meninas. Meu sonho é que um dia possam narrar suas próprias histórias.
O estigma é um problema, com certeza, em ambos os lados e certamente a mídia o reforça. Surpreendi-me quando fui ao Egito e fui muito bem recebida, muito bem tratada. Isso que sou razoavelmente bem informada. Mas também há revistas lá no Oriente que demonizam o Ocidente, por causa das drogas e da desintegração da família. É por isso que precisamos de livros, para aprofundarmos os assuntos.
Uma mulher no front
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