ELMAR BONES
Juiz de Fora, 31 de março de 1964, uma e meia da madrugada. O general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário.
Há quase uma semana, Mourão se considera pronto para um golpe, mas desconfia que o estão traindo.
Esperava um manifesto do governador de Minas, que seria a senha para colocar as tropas na rua.
Em vez de mandar o texto antes, para ele, o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado!
“Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou depois. “Meu peito doía de rachar. Tive que pôr uma pílula de trinitrina embaixo da língua”
Mourão Filho, general de três estrelas, comandante da 4ª Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro, estava mesmo descontrolado naquela noite.
-“Idiotas. O Chefe Militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a história… E o Guedes, um falastrão vaidoso que aceitou o papel triste… Fizeram isto, bancando os heróis, porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo. Irresponsáveis! Arriscando uma revolução tão bem planejada num momento de vaidade!”
Depois da explosão, acalma-se: “Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho. Não faz mal…”
Em seu plano original, Mourão previa sair de Juiz de Fora, no início da noite, com 2.300 homens. Cobriria os 200 quilômetros até o Rio de Janeiro em cinco ou seis horas.
Antes de clarear o dia, tomaria de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde estaria ainda dormindo o presidente João Goulart. Depois começava a caçar os comunistas.
Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado por artimanhas do governador Magalhães Pinto que, mineiramente, temia “se envolver numa aventura”.
Agora está decidido: “Vou partir para a luta às cinco da manhã… Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil”.
Depois se acalma novamente: “E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro.”
em acrílico sobre papel
Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a única telefonista de plantão na central de Juiz da Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”.
Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou.
No primeiro telefonema, tentou alcançar o tenente coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG, “o telefone estava enguiçado”. Tocou, então, para o major Curcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que lhe haviam dado no quartel pelo uso constante do cachimbo.
Em seguida, convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos dois apareceu). A seguir, ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha, golpista de primeira hora: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor Goulart.
O próximo foi o deputado Armando Falcão, para que avisasse Carlos Lacerda, governador da Guanabara, o mais notório inimigo do presidente.
Falcão, assustado, ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar de uma outra conspiração e que evitara sempre se envolver com Mourão.
Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários. Kruel ainda era amigo de João Goulart.
Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antonio Carlos Muricy, outro conspirador sem comando.
Muricy diz que fora chamado a Minas por Mourão, “que está rebelado”. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”.
Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua rajada de chamadas, fez questão de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”. E não esconde o “orgulho pela originalidade”: “Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”.
Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu hóspede e cúmplice, o desembargador Antonio Neder, “que dormia como um santo”. Gritou: “Acabo de revoltar a 4ª Divisão de Infantaria e a 4ª Região Militar”. O amigo, “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”.
Mourão desdenha : “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou certo, pode crer”. Na verdade, não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel.
Entrou no banheiro, fez a barba e leu alguns salmos da Bíblia, como fazia todos os dias. “Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!”
Abriu o chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois).
A notícia de um golpe militar se espalhava rapidamente pelo país, mas o comandante do levante ainda não saíra de casa.
“A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”, registra Elio Gaspari.
Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco saiu de seu apartamento, em Ipanema. Foi para o Ministério da Guerra, no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar. De lá ainda insistiu com o general Luiz Guedes, comandante da 4ª Divisão de Infantaria em Belo Horizonte, e o governador Magalhães Pinto para que detivessem Mourão. “Senão voltarem agora serão esmagados”.
Guedes, em suas memórias, tentou associar-se à ousadia de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho.
Mourão registra, desde o primeiro encontro entre ambos, a frase que Guedes repetia: “Quem levantar a cabeça primeiro, leva pau”.
O governador Magalhães Pinto, a quem Guedes seguia, desenvolvia um plano que permitisse recuos. Sua intenção era declarar Minas Gerais em “estado de beligerância”, contra o governo federal.
Esperava obter o reconhecimento dos Estados Unidos e, então, forçar João Goulart a renunciar. Seria instalado um mandato tampão até as eleições de 1965 , quando ele, Magalhães, seria o candidato imbatível – o libertador que afastara o perigo comunista.
O manifesto que lançou no dia 30 de março, escrito pelo mineiríssimo Milton Campos, defendia reformas de base e era tão cauteloso que o deputado federal Wilson Modesto, do PTB de Minas, leu a íntegra por telefone para Jango e o presidente respondeu: “Diga a Magalhães que está muito bom estou de acordo com ele”.
As ações do general Guedes, àquelas alturas, se limitavam à Prontidão da Polícia Militar, força estadual, e a consultas ao cônsul dos Estados Unidos em Belo Horizonte, para saber se os americanos estavam dispostos a ajudar com “blindados, armamentos leves e pesados, munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações…”. Para “mais tarde”, precisaria de “equipamento para 50 mil homens”.
***
Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do 10º Regimento de Infantaria, coronel Clóvis Calvão, não apoiava o levante. Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel.
Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargento de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa.
Nada disso influiu no apetite do general. À uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta. Nessa hora, já se movimentavam forças para atacá-lo a meio caminho do Rio.
“Na avenida Brasil, principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões. Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm… Noutra, em 22 carros, ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o 1º Batalhão de Caçadores” (Gaspari).
“Tinham-se passado oito horas desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari)
Fardado, de capacete, Mourão, auto-intitulado Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias, foi fotografado no meio da tarde, no QG da 4ª DI. Mas aos jornalistas ainda negava que estivesse rebelado.
O general Antonio Carlos Muricy, que Mourão chamou para chefiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio, só foi chegar à Juiz de Fora às 18 horas.
Ao inspecionar as forças de que dispunha, Muricy comprovou que mais da metade eram recrutas mal preparados e a munição dava para poucas horas.
***
“Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”, dizia um informe da embaixada americana.
A maioria dos 60 generais em atividade naquele momento, achava que Mourão não conseguiria tirar os soldados do quartel. Lacerda lhe disse isso diretamente. O general Murici, que ele convidou para comandar a vanguarda de suas forças em direção ao Rio, disse-lhe: “Você está louco? Acha que pode fazer uma operação dessas com soldados meninos com um mês de treinamento!”
Quando ele chegou a Minas, em setembro de 1963 para assumir o comando da 4ª.Região Militar, o governador Magalhães Pinto declarou depois da primeira conversa que tiveram, comentou: “Este general que veio comandar a Região ou é agente provocador do governo ou é louco, quer fazer uma revolução logo!” O general Costa e Silva a quem procurou várias vezes, sempre esquivou-se. “Não temos nada”. Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.
***
O embaixador americano soube da rebelião por volta do meio dia do dia 31 de março. Imediatamente avisou Dean Rusk, chefe do Departamento de Estado. Ele não tinha Mourão em boa conta, mas ponderou: “(…) pode ser a última boa oportunidade para apoiar uma ação contra Goulart”.
A segunda vitória de Mourão aconteceu já na madrugada do dia primeiro de abril, quando o Regimento Sampaio, a mais bem treinada e equipada força militar do Rio, que saiu para atacá-lo. Ao alcançar a dianteira das tropas rebeladas, em vez de atirar, os oficiais simplesmente aderiram ao golpe. Os calejados “tarimbeiros” do Regimento Sampaio abraçaram os “soldadinhos meninos” de Mourão. “Eles passaram-se quando tudo parecia indicar nossa derrota”, anotou o general em seu diário.
Pouco depois, quando se deslocava para assumir a vanguarda das tropas que se dirigiam ao Rio soube pelo rádio do carro que não havia mais resistência. O golpe vencera e o general Costa e Silva havia assumido o Comando Supremo da Revolução, por ser o general mais velho em atividade. Não lhe restou mais que ir ao QG e apresentar-se ao novo comandante. Costa e Silva dormia e atendeu-o de cuecas. Ele quis reclamar, Costa colocou a mão em seu ombro: “Mourão foi tudo resolvido na base da hierarquia ( …) Não se preocupe velho, isso vai dar certo”. E recomendou-lhe ficar mais uns dias no Rio antes de regressar com as tropas. “Achei razoável , de vez que Costa e Silva não contava com quase nada, não dispunha de tropa. Minha obrigação era ficar e garanti-lo”. Ele já era carta fora do baralho.
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Revolução Redentora de 1964!
Porém, resultou em um Regime Militar brando!
Nas ditaduras comunistas, apoiadas pelos que hoje aí estão, por muito menos fuzilaram os opositores!
E depois do “camarada” Brasil, ame-o ou deixe-o, deixaram voltar!
Vão consertar o estrago?