Luiz Cláudio Cunha
Especial para o Blog do Prévidi
Caro Prévidi,
Meu texto “A tesoura da RBS vai em frente”, publicado originalmente no Jornal JÁ e gentilmente reproduzido em teu blog em 13 de janeiro passado, mereceu três dias depois uma elegante contestação do jornalista Roberto Jardim, no trecho que citava o Diário Gaúcho, o braço em Porto Alegre da chamada ‘imprensa popular’ da RBS.
Ex-editor de Polícia tesourado na safra de cortes do Diário Gaúcho, Jardim contesta a informação de que a redação do DG encolheu na crise de 20 para 12 jornalistas (“o número inicial em 2000 era entre 35 a 40… hoje, numa conta pelo alto, devem trabalhar lá cerca de 25 jornalistas”, diz) e repudia como “preconceituosa” a classificação de “vulgar” que dei à linha editorial do jornal.
Peço licença, Prévidi, para fazer minhas observações. A saber:
1.Dependendo do momento, das circunstâncias e das fontes, os números da crise variam, mas a encrenca continua do mesmo tamanho. Minhas fontes diziam que a redação de 20 foi decapitada para 12 repórteres, 60% do total. Jardim corrige a informação, esclarecendo que a redução foi de 40 para 25 jornalistas, o que representa pouco mais de 62%. Ou seja, dá na mesma. Mudam os números absolutos, mas permanece a proporção assustadora.
2. Consultando rapidamente o site do jornal na internet (http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/pagina/quem-e-quem.html), com nomes, função e fotos, é possível contar hoje — por enquanto — uma redação de apenas 26 jornalistas, dos quais somente 10 na função de repórter. Lá estão identificados, por área, dois editores executivos e seus subordinados por editorias: Dia-a-Dia (2 editores, 4 repórteres), Variedades (2 editores, 1 repórter), Polícia (2 editores, 2 repórteres), Esportes (1 editor, um colunista, 1 repórter), Opinião (1 editorialista), DG On Line (2 repórteres) e Diagramação (2 editores, 2 diagramadores, 1 ilustrador).
3. Jardim diz que é “uma visão um tanto quanto preconceituosa’ minha avaliação como ‘vulgar’ do Diário Gaúcho, um jornal que, conforme meu texto, baseia sua linha editorial em “notas policiais, futebol, fofocas de TV e fotos na capa de mulheres com pouca roupa e muitas curvas”. Jardim lembra feitos marcantes do jornal na área que coordenou, a Editoria de Polícia, destacando, entre outros, que o DG foi o primeiro jornal do RS a alertar para os riscos do crack, além de denunciar o índice crescente de homicídios na Região Metropolitana de Porto Alegre.
4. Não desmereço o esforço dos bravos profissionais que suaram, com tanta dificuldade, para realizar um bom trabalho em suas áreas. Vivo em Brasília desde 1980, mas a distância não me impede de avaliar que esse não é um jornal que atraia minha leitura ou atenção. Há quem goste. Eu não gosto.
5. Fundado em abril de 2000, o Diário Gaúcho representa a rendição da RBS ao segmento lucrativo dos jornais populares que tentam capturar clientes, não necessariamente leitores, nas camadas menos exigentes da população de classe C, D e E, geralmente mais interessadas nos brindes de panelas, pratos, copos e kits de cozinha do que na qualidade da informação. O fast-food do DG é baseado em quatro editorias que resumem seu intragável cardápio calórico: Polícia, Esportes, Variedades e Esportes. Há quem goste. Eu não gosto.
6. Essa fórmula vencedora, embrulhada em selos diários que dão direito aos brindes, não é uma invenção da RBS. Ela prolifera nos grandes centros do país, como recurso de caixa das grandes empresas para driblar a queda de vendas de seus jornais tradicionais. São diários ditos ‘populares’, que seduzem seu público mais pelo brilho das bugigangas de cozinha do que pelo conteúdo de jornalismo de entretenimento que oferecem. Eles miram consumidores, não leitores. Não traduzem uma esperta manobra para ampliar o público que consome informação, mas refletem uma rendição às demandas mais rasteiras de quem busca utilitários domésticos casualmente embrulhados em páginas de rasteiro jornalismo. Todos nivelados pela grife que os identifica na triste mesmice: uma primeira página feia, visualmente pobre, cheia de fotos ruins e letras garrafais, manchada com cores berrantes e manchetes aberrantes.
7. No início do milênio, o campeão de tiragem do país, a Folha de S.Paulo, se orgulhava de ser ‘o terceiro maior jornal do Ocidente’, vendendo um milhão de exemplares aos domingos. Hoje não chega a 300 mil exemplares. O maior jornal do Brasil, com 302 mil exemplares, agora é o primo mineiro do DG gaúcho, o SuperNotícia, de Belo Horizonte, com a mesma fórmula vencedora e vendedora de jornalismo vulgar, embalado pelo preço baixo (75 centavos) e muita polícia, futebol, fofoca de astros globais e fotos de moças hiper desinibidas em biquínis super acanhados. O Agora São Paulo, jornal popular do Grupo Frias, vende 110 mil exemplares, um terço de seu primo rico, a Folha de S.Paulo. O quinto maior diário do Brasil, o Extra, com tiragem de 225 mil exemplares, é o lado popular do Grupo Globo, oferecendo o mesmo cesto hipnótico de futebol, polícia, TV e selos para troca de brindes.
8. Mais do que uma discussão acadêmica sobre o perfil dessa imprensa ‘popular’, falam mais alto os resultados sonantes da estratégia marqueteira. Tanto que o Diário Gaúcho cresce só com a venda em bancas, superando o primo rico da casa, a Zero Hora, que se segura principalmente nas assinaturas. O DG, acusa o IVC (Instituto Verificador de Circulação) de setembro passado, agora é o maior jornal do Rio Grande do Sul: vendeu naquele mês 185 mil exemplares diários, contra 170 mil da ZH. Como se vê, há muitos que gostam. Eu não gosto.
9. A política de resultados poderia justificar este duvidoso exemplo de jornalismo, que não satisfaz um paladar mais apurado. Os números provam que, cada vez mais, há quem goste. Eu não gosto. O sucesso de vendas não exime o DG e seus congêneres ‘populares’ de serem exemplos de um jornalismo vulgar, que traduz exatamente o que penso sobre este tipo de imprensa que mira os sentimentos mais primitivos de um leitor que se move não pela reflexão, mas pela reação instintiva ao que é grotesco, bizarro, espalhafatoso — ou simplesmente ‘mundo-cão’.
10. É uma expressão inventada na TV pelo apresentador Jacinto Figueira Júnior (1927-2005), criador na TV Globo em 1966 do programa ‘O Homem do Sapato Branco’, que trazia para o estúdio, ao vivo, brigas constrangedoras de casais e casos repulsivos de polícia. Jacinto morreu, mas o estilo sobreviveu e prospera hoje nas grandes redes de TV, graças ao ibope persistente de apresentadores furiosos e mesmerizados como Ratinho (SBT), José Luiz Datena e Luiz Bacci (BAND), Marcelo Rezende (Record) e outros menos notórios, mas que proliferam aos gritos em todas as manhãs e tardes nas telinhas truculentas do País. Traduzem, ecoam, berram sempre uma visão policial e teratológica da realidade, não a preocupação social de uma segurança pública falida e desarvorada pelas balas perdidas da incompetência e da violência. Há quem goste. Eu não gosto.
11. Este ‘mundo-cão’, que ajuda a manter a audiência na TV, foi adotado pela mídia impressa na chamada ‘imprensa popular’ que procura leitores/consumidores a qualquer (baixo) custo e apelando para qualquer (ordinário) recurso. Ninguém deve se sentir ofendido pelos adjetivos que identificam esse jornalismo ‘mundo-cão’ pelo que ele é de fato: vulgar, banal, pueril, pífio, grosseiro, vil, sensacionalista. Essa imprensa não define o caráter dos nobres profissionais que ali exercem seu ofício com dignidade, mas revela a essência da ótica empresarial que se preocupa mais com a receita e o lucro, e menos com a excelência da informação e a qualidade do produto jornalístico.
12. Roberto Jardim, o ex-editor do Diário Gaúcho, defende o miolo do jornal e do projeto, atribuindo sua má imagem apenas à primeira página: “Só a capa, que é feita para vender, não traduz o bom jornalismo que os profissionais que passaram e ainda estão por lá fizeram e fazem”. Pois eu não gosto do produto final, já a partir da capa, que traduz o tipo de jornalismo tacanho dessa dita imprensa ‘popular’. O DG de Porto Alegre tem um irmão siamês em Florianópolis, o Hora de Santa Catarina, nascido em 2006. Seus 30 mil exemplares, com preço de capa de 1 real, são vendidos nas bancas dos 15 municípios da região metropolitana da capital. Além do preço baixo e dos inevitáveis brindes de cozinha, o Hora centra fogo no cardápio que supostamente atende à dieta restrita de seu público de renda magra: notícias de crimes, aventuras amorosas de artistas e famosos, os lances do futebol regional e as fotos de praxe de mulheres com muita saúde e pouca roupa. É mais do mesmo, com a mesma fragilidade, a mesma banalidade, a mesma mediocridade. E há, como eu, quem não goste.
13. Fabiano Golgo, editor-executivo do Hora de Santa Catarina entre 2012 e 2013, também não gosta. Ele leu aqui no Blog do Prévidi a contestação de seu ex-colega do DG ao meu texto sobre as vulgaridades do jornal gaúcho. E decidiu rebater as observações de Jardim, confirmando minha opinião e agregando seu importante testemunho sobre o que viu e viveu em Florianópolis, num texto publicado neste blog em 20 de janeiro passado. Produtor dos programas dos consagrados Flávio Alcaraz Gomes e Mendes Ribeiro na rádio e TV Guaíba na década de 1980, Golgo viajou em 1991 para os Estados Unidos, onde fez estágios na CNN, MTV e The New York Times. Mudou-se para a Europa, atuou como correspondente do Jornal do Brasil no Leste Europeu e, a partir de 2000, foi editor, apresentador e comentarista de revistas, rádios e emissoras de TV na República Tcheca. Dirigiu dois semanários de atualidades em Praga, o Redhot e o Mlada Fronta Plus, antes de assumir em 2005 o Metro, versão local do jornal sueco gratuito que se tornou o diário mais lido da capital tcheca. Voltou ao Brasil em 2012 para assumir o posto de editor-executivo do Hora de Santa Catarina.
14. Pelo que contou aqui no Blog do Prévidi, Golgo teve um amargo regresso. “Sempre fui hostilizado por não querer entender que o jornal é vendido em virtude dos cupons para retirada de panelas e outros produtos de péssima qualidade, trazidos da China por uma empresa terceirizada, e não pelo conteúdo, se não levarmos em consideração o horóscopo e o futebol”, escreveu. “Eu tentei mostrar que nossos editores – todos formados em Jornalismo – poderiam facilmente escrever seus próprios textos sobre os fatos do mundo, nas minguadas páginas do jornal que não eram ocupadas por conselhos sexuais, fotos de bebês, avisos entre namorados e fotos de buracos que a prefeitura de Florianópolis deveria consertar. Mas a engessada RBS não gosta de ondas, a não ser que sejam promovidas pelo sétimo andar da [avenida] Érico Veríssimo [sede da RBS em Porto Alegre], por um clubinho fechado de pessoas sem contato com a realidade de seus leitores”.
5. Golgo respondeu diretamente a Jardim: “Quanto à contestação do colega que foi demitido pelo Diário Gaúcho, eu fui orientado de forma diferente, recebendo a ordem de basear o jornal no esporte, nas amenidades, e não na relevância de seu conteúdo”. Golgo entra de sola na copa e cozinha do jornal: “A verdade era que o título só vendia mesmo por causa das panelas. Quando cheguei à firma, descobri que os chefinhos da parte catarinense vinham escondendo dos chefetes — tipo Marcelo Rech [diretor executivo de Jornalismo da RBS], da central mantenedora e decisória, gaúcha — o problema das tais panelas. A empresa distribuidora, que encomendava o produto da China, não entregou número suficiente de produtos e os leitores portadores de cartelas preenchidas com os colecionados cupons, que saem na capa do jornal, simplesmente não estavam podendo retirar seus sonhados utensílios de cozinha. E o atraso já se referia a três produtos. Há meses, as quatro moças do atendimento ao cliente não davam conta do número de ligações com reclamações diárias. Descobri que toda a redação vinha sendo obrigada, a contragosto, a também atender esses raivosos leitores, já que as telefonistas não conseguiam atender a todos. Chegavam a ser 180 ligações por dia”, revelou.
16. Golgo, assim como Jardim, faz pesadas restrições à primeira página e sua arma de sedução em massa — as fotos de garotas pretensamente sensuais. “As moçoilas que são obrigatórias na capa e na página central, inevitavelmente de biquíni e com silicone, me davam muito trabalho, pois, apesar de ter sido Editor-Chefe da Playboy tcheca, em 2002, era muito difícil cumprir a ordem do meu superior de escrever nos balões textos ‘safadinhos e picantes’ sobre as senhoritas, e de criar mais dois, com o mesmo tom, para a parte interna. Portanto, a vulgaridade é, sim, elemento de venda do jornal. Eu mesmo, sabendo disso, implantei a chamada quase diária na capa da coluna de sexo, com frases apelativas, tipo ‘Por trás sempre dói? Esposa conta como aprendeu sexo anal com o amigo do marido’…”, confessa o ex-editor do Hora de Santa Catarina.
17. Em agosto passado, quando o fio aguçado do consultor Cláudio Mãos de Tesoura Galeazzi escancarou a dura política de ‘reestruturação’ financeira da RBS em crise, ceifando 130 empregos de uma só vez, a empresa tomou uma discreta decisão para economizar ainda mais à custa dos eleitores menos atentos. Um núcleo de cinco pessoas foi criado na sede da empresa, em Porto Alegre, para fazer o que muitos fazem, no recesso do lar ou na rotina do trabalho: apelar para as teclas do Ctrl+C e Ctrl+V, o prosaico Copiar e Colar. Páginas inteiras, das editorias de Mundo ou de TV, eram simplesmente copiadas do jornal principal para o jornal secundário. Isso acontecia da Zero Hora para o Diário Gaúcho e do Diário Catarinense para o Hora de Santa Catarina, economizando gente e recursos às custas da boa fé do leitor, que inocentemente imaginava estar consumindo material exclusivo. Sempre criativa, a RBS deu um nome em código para esta equipe que copia e cola páginas de um jornal para o outro: ‘Projeto LEGO’, o celebrado jogo de encaixe de peças que permite inúmeras combinações e imagens. A lúdica solução da RBS com o ‘Projeto LEGO’ define bem o momento empresarial que vive, encaixando páginas mais baratas em jornais ajustados às combinações mais rentáveis, certos de que os leitores de jornais distintos em Porto Alegre e em Florianópolis não vão perceber o truque. Mas, há sempre alguém que percebe. E que acaba avisando o atento Blog do Prévidi.
18. O ex-editor-executivo do Hora de Santa Catarina, Fabiano Golgo, escancarou a prática no texto que enviou para este blog, contando: “Logo de início, contestei o modelo preguiçoso e inadequado ao público-alvo do jornal, onde praticamente todos os textos do Hora eram versões encurtadas de textos originais do Diário Catarinense ou do Diário Gaúcho. Meu mais notório confronto foi em relação ao desrespeito ao leitor catarinense pela prática de se imprimir uma cópia da página central, de fofocas, do Diário Gaúcho, um dia mais tarde, no Hora de Santa Catarina. Isso em plena era virtual, onde — ao invés de ver a chefe da seção de ‘Entretenimento’ lendo em papel, no próprio DG, feito no dia anterior, aquilo que ela colocaria na página mais concorrida do seu diário, no dia seguinte –, poderia menos preguiçosamente receber os textos via sistema interno de comunicação, e oferecer ao leitor um produto mais fresco. Praticamente dois dias de velhice das notinhas sobre idiotices — tipo o que a Bruna Marquezine disse sobre o Neymar — era algo que nunca pude aceitar e não me contive em ser insistente, em quase todas as reuniões de pauta”.
19. Golgo foi impiedoso na descrição que faz das performances do diretor-presidente da RBS, Eduardo Sirotsky Melzer, o popular Duda, nas reuniões internas do grupo: “Quando eu vi o Duda em um palco, dando uma de apresentador, durante um aniversário da empresa, com milhares de funcionários na plateia do Ginásio Tesourinha [em Porto Alegre] — todos com camisetas idênticas da RBS, e a Redação catarinense toda sendo obrigada a colocar os fones de ouvido e assistir a transmissão do evento em seus computadores e pelos televisores espalhados pelas paredes —, me pareceu uma cena com aqueles líderes comunistas, tipo o romeno Nicolae Ceausescu ou o general polonês Wojciech Jaruzelski, em frente aos seus Politburos, todos com o mesmo uniforme. Ou aquela propaganda do ‘Bonita camisa, Fernandinho!’… A versão Sílvio Santos do Duda foi comédia trash. Com carisma zero e problemas técnicos constantes, só não foi pior que suas reuniões, direto da Redação da Zero Hora, com todo o grupo, para responder às perguntas dos funcionários. Nunca vi uma pergunta sequer que não fosse sobre salários ou benefícios. O interesse pelo Jornalismo com J maiúsculo ou ideias sobre adaptação ao novo panorama midiático não faz parte do DNA da firma. A RBS leva os funcionários a fazer apenas o que são obrigados, recolhendo seus minguados salários no final do mês e rezando para sobreviver aos potenciais cortes anuais”, condena Golgo.
20. Os cortes, agora, são mais frequentes. São mensais, para diluir o impacto do ajuste implacável que tesoura empregos e salários. O Sindicato dos Jornalistas tem informações, não confirmadas ainda, de um acordo entre a RBS e a Delegacia Regional do Trabalho para que as traumáticas demissões em massa sejam parceladas em doses homeopáticas, reduzidas, semanais. Na primeira planilha de 2015, a de janeiro, o Sindicato gaúcho registra cinco demissões da RBS entre as 17 anotadas no mês. E avisa que outras quatro demissões já estão agendadas pela RBS para fevereiro, na previsão feita em 30 de janeiro – e que sempre pode piorar.
21. A RBS tenta enganar a crise do jornalismo com a solução mais rasteira e medíocre: demitindo jornalistas. De forma massiva ou em doses pequenas para disfarçar o estrago, a dura tesourada nos custos imposta à RBS pelo Método Galeazzi acaba turvando a visão de profissionais experientes, cada vez mais confusos e sacrificados pela crise de qualidade que compromete, a cada dia, o jornalismo praticado pela empresa dos Sirotsky em suas diferentes plataformas. Para quem duvida, basta acompanhar a crônica de horrores que o Blog do Prévidi registra todo santo dia, anotando erros, descuidos, deslizes, derrapadas nas informações e trombadas no vernáculo dos sites, blog, colunas, editorias e manchetes produzidas pela RBS nos jornais, rádios e TVs do grupo. É uma safra inacreditável de mancadas, muitas delas cômicas, que refletem amadorismo, pressa e inexperiência. São filhos diretos da política de cortes e ajustes que sacrificam os empregos, a experiência e a qualidade de redações e equipes adolescentes subjugadas pela rigidez contábil e tacanha de executivos de resultados, sem quaisquer compromisso com o jornalismo.
22. Os diretores e funcionários mais graduados do clã Sirotsky ainda tentam justificar tais equívocos, defendendo o acerto de projetos indigentes como os dos jornais ditos ‘populares’, que se explicam justamente pela pobreza – editorial, material, visual e ética. Um dos executivos da RBS chegou a comparar, para mim, os dois jornais da casa em Porto Alegre: “O Diário Gaúcho é e sempre foi um jornal melhor resolvido com o seu leitor do que a Zero Hora em relação ao dela. É um outro mundo, que a gente não entende e não vive. Por isso temos que ter cuidado com as análises sobre sua suposta vulgaridade…” Esta frase coloca uma questão intrigante. Se o jornalismo dito ‘popular’ da RBS “é um outro mundo, que a gente não entende”, como se ousa fazer um jornal para um mundo que estes jornalistas não entendem e não vivem? Quem concedeu a empresários “deste mundo” a franquia para esta irresponsável aventura interplanetária que invade mundos estranhos com jornais de baixa qualidade produzidos por alienígenas que não entendem e não vivem o mundo de seus ignotos leitores? Essa é a grande, a obscena vulgaridade dessa impiedosa jogada empresarial que cava e escava leitores nos grotões da periferia, à custa de panelas chinesas de segunda e do mundo-cão de terceira categoria.
23. A RBS conseguiu, afinal, cair no fundo do poço da vulgaridade, virando ré de um inédito inquérito civil instaurado contra ela, no dia 27 de janeiro passado, pela Procuradoria Regional do Trabalho da 4ª Região do Ministério Público do Trabalho, que abrange o Rio Grande do Sul. O processo de número quilométrico, 0000177-85.2011.5.04.0019, oriundo da 19ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, com oito volumes e exatas 1.511 folhas, evidentemente não foi revelado ao povo gaúcho pelo mais importante jornal do Estado, a Zero Hora. A notícia foi um ‘furo’ deste bravo Blog do Prévidi, que noticiou este fato espantoso no dia seguinte à decisão da Procuradoria do Trabalho, já na quarta-feira, 28 de janeiro. Ali está escrito que a RBS responde, nos termos da legislação trabalhista, pelo item 03.01.06 do código, que trata expressamente do ‘Desvirtuamento de Pessoa Jurídica’, truque que os sindicatos costumam denunciar como ‘precarização do trabalho’. Na denúncia da Procuradoria do Trabalho, está escrito que a RBS virou ré por “desvirtuamento da relação de emprego pela determinação de criação de pessoa jurídica por trabalhadora cujas atividades eram prestadas de forma habitual e com subordinação, estando vinculadas às necessidades essenciais da tomadora do serviço”.
24. O maior constrangimento público e legal vivido pela RBS em sua história não é produto de uma desavença com nenhum jornalista importante ou conhecido. O pivô do processo é uma discreta senhora de 52 anos, com apenas 221 amigos na sua página do Facebook, natural de Porto Alegre, que nem passou por uma redação nem pelo ofício de jornalista. Sonyara Thiele, identificada no processo como a ‘reclamante principal’, é formada em química pela PUC de Porto Alegre, onde ingressou em 1988. Trabalhando no Banrisul, especializou-se em informática e em programação de computador.
25. Em 1998, conta Sonyara, ela foi chamada pela RBS para trabalhar no sistema de computação que administrava a entrega e a distribuição pelo Estado das edições de Zero Hora. “Eu nem era contratada, nem tinha carteira, nem salário. Eu ganhava por hora trabalhada. Mas tinha chefe, tinha horário de trabalho e viajava muito. Cheguei a ser mandada para Santa Catarina, para implantar o mesmo sistema no Diário Catarinense e no A Notícia, o jornal da RBS em Joinville. Até que um dia, em 1999, me pediram que eu abrisse uma empresa. Criei então a Thiele Informática. Apesar disso, me contrataram como pessoa física, reduzindo pela metade o que eu ganhava. Alguém do departamento jurídico me disse que eu representava um passivo trabalhista muito grande”, lembrou Sonyara ao telefone, nesta terça-feira.
26. A situação de Sonyara virou um inferno em meados de dezembro de 2010, quando ela testemunhou na Justiça do Trabalho em favor de uma colega de serviço. Seu emprego sobreviveu apenas algumas horas. “Fui demitida dois dias depois. ‘Você não ficaria aqui nem que fosse a melhor funcionária de todas. Você não vestiu a camiseta da RBS, ao testemunhar contra a empresa’, reclamaram. Eu fiquei muito abalada, foi a primeira e única demissão da minha vida”. Em fevereiro de 2011, Sonyara entrou na Justiça contra a RBS, reclamando seus direitos trabalhistas, vínculo empregatício, salários perdidos, férias, 13º salário, além de indenização por danos morais pela retaliação ao seu testemunho na Justiça.
27. Sonyara, hoje à frente de uma loja de artesanato em tecidos na avenida Juca Batista — a ‘Maria Antônia Patchwork e Bonecos’ —, ministra ali cursos de bordados, cartonagem, bonecos, tricô e crochê. Entretida no mundo sereno e entretecido dos artesãos, Sonyara ficou surpresa com o desfecho retumbante de um processo trabalhista que capengava há anos na Justiça. Ela foi alertada pelo marido sobre o nome e sobrenome da procuradora do Trabalho que ele nunca viu: uma certa Paula Rousseff Araújo, filha de um ex-guerrilheiro e advogado, Carlos Araújo, e de uma ex-guerrilheira e atual presidente da República, Dilma Rousseff. Mentes mais criativas da cúpula dos Sirotsky viram na ação inesperada da procuradora Paula uma atravessada retaliação contra a RBS pela suposta linha de oposição e crítica de Zero Hora ao governo de sua mãe. Um Sirotsky mais esperto poderia imaginar, também, que é apenas a ação natural de uma diligente procuradora do Trabalho, chamada Rousseff, que cumpre sua obrigação funcional independente de ser ou não filha da presidente da República.
28. O processo em que a RBS é ré em inquérito civil aberto pelo Ministério Público do Trabalho revela que há na empresa dos Sirotsty quem goste do “desvirtuamento da relação de emprego”. A procuradora Paula Rousseff não gosta.
cunha.luizclaudio@gmail.com
Categoria: Geral
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Uma vulgar impressão sobre a imprensa "popular" da RBS
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Eduardo Cunha: o que a mídia escondeu
Luiz Nassif
Para garantir a eleição de Cunha Cunha à presidência do Congresso, os jornalões e as emissoras de TV e rádio esconderam de seus espectadores as seguintes informações:
No STF (Supremo Tribunal Federal), pelo menos vinte e dois processos têm Eduardo Campos como parte.
Dentre esses processos, há três inquéritos (2123, 2984 e 3056) para apurar possíveis crimes cometidos por Cunha quando presidente da Companhia de Habitação do Estado do Rio de Janeiro (CEHAB-RJ) entre 1999 e 2000.
Cunha tornou-se sócio do deputado Federal Francisco Silva (PRN), da bancada evangélica na rádio Melodia. Juntos foram acusados de participação no escândalo das notas fiscais falsas para sonegação de ICMS por parte da Refinaria de Manguinhos.
O inquérito 2984 apura uso de documentos falsificados, inseridos em processo do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, para conseguir o arquivamento de inquérito aberto contra Cunha. O ex-subprocurador-geral Elio Gitelman Fischberg, que participou da falsificação, perdeu o cargo e foi condenado 3 anos e 11 meses de prisão.
O STF autorizou abertura de processo contra Cunha, que corre em segredo de Justiça.
O primeiro inquérito contra Cunha ocorreu no bojo das ações contra PC Farias. Cunha era o braço de PC na Telerj.
Em 2000, um ano antes de assumir mandato como deputado estadual pelo Rio de Janeiro, Cunha teve seu nome envolvido problemas com o fisco. A Receita Federal detectou incompatibilidade entre a movimentação financeira do deputado e o montante declarado ao Imposto de Renda.
Foi acusado de ligações com o doleiro Lúcio Funaro, investigado pela CPI dos Correios. Segundo reportagem da revista Época, Funaro pagava o aluguel do deputado em um luxuoso flat em Brasília.
No mesmo ano, época em que ocupava o cargo de vice-presidente da CPI do Apagão Aéreo, Cunha foi acusado pela deputada estadual Cidinha Campos (PDT-RJ) de realizar operações com o traficante colombiano Juan Carlos Ramírez Abadía. Em discurso na Assembleia do Rio, a parlamentar acusou o deputado federal de vender uma casa em Angra dos Reis por US$ 800 mil e, pouco tempo depois, comprar de volta por US$ 700 mil.
Em 2011, Cunha foi alvo de investigações da Controladoria-Geral da União (CGU), que apontou que Furnas, estatal do setor elétrico, cobriu prejuízos causados pela participação da Companhia Energética Serra da Carioca II (empresa ligada a Cunha) na sociedade montada para construir a Usina Hidrelétrica da Serra do Facão, em Goiás. Na época, Furnas tinha vários quadros da direção da empresa em mãos de pessoas ligadas ao próprio Eduardo Cunha. Os prejuízos da estatal ultrapassaram os R$ 100 milhões. -
O exemplo que vem de cima
O poder aquisitivo do salário mínimo representa menos de 25% do necessário a uma família
Os políticos e juizes que se outorgaram aumentos de salários nessa virada de ano/troca de governos ofenderam brutalmente a cidadania no momento em que tanto se fala em apertar cintos e conter despesas. Eles não se deram reajustes para cobrir a inflação, como acontece com o salário mínimo; deram-se aumentos muito acima da taxa inflacionária. Em suma, falta de vergonha na cara.
Vamos falar sérío: a medida mais democrática a tomar no Brasil é cumprir o artigo constitucional que determina que o salário mínimo dos trabalhadores seja suficiente para atender às suas necessidades vitais e as de sua família quanto a educação, saúde, alimentação, habitação, transporte, vestuário e lazer ao longo de um mês.
É claro que os atuais R$ 788 não são suficientes. O Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mantém uma tabela atualizada sobre o valor do “mínimo necessário”. Em dezembro, era de R$ 2 975,55. A correção para janeiro deve elevar o valor para pouco acima de R$ 3 mil.
Lembremos que o teto do Judiciário acaba de ser fixado em R$ 33 mil e uns quebrados. A isso se acrescenta o auxílio-moradia de R$ 4,3 mil. E outras mordomias como diária de viagem acima de R$ 1 mil.
Não é preciso ser nenhum gênio da aritmética para concluir que algumas categorias do funcionalismo estão fazendo uma farra com dinheiro público – isso, num país que ainda está sendo construído e possui enorme carências a suprir. O salário mínimo vigente é 42 vezes menor do que o teto dos magistrados, o qual serve como referência para outros cargos na União e nos Estados (e até em alguns municípios).
Só há uma palavra para definir tamanha desigualdade: descalabro. Por cima e por baixo.
Até parece que não evoluímos. A época de maior poder aquisitivo do salário mínimo foi em janeiro de 1958. Desde então a Constituição vem sendo descumprida – e não só nesse item referente aos direitos sociais dos brasileiros.
Leia-se o Capítulo XX da Constituição, que trata dos direitos sociais. Diz o Artigo 6º- São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, a assistência aos desamparados.
Na sequência, diz o Artigo 7º- São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa
II – seguro-desemprego em caso de desemprego involuntário
III – fundo de garantia do tempo de serviço
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo
V – piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho
VI – irredutibilidade do salário… (seguem outros 28 itens pertencentes ao Artigo 7, entre eles o direito à aposentadoria, férias remuneradas, aviso prévio, repouso semanal remunerado, seguro contra acidentes de trabalho, creche para os filhos, salário-família, participação nos lucros etc).
Não é preciso estender-se mais para concluir o quanto deve o Brasil aos trabalhadores situados na base da pirâmide social.
Quem melhor do que deputados, governadores, juízes e ministros seria capaz de compreender a necessidade de fazer justiça por meio da elevação do salário mínimo e dos direitos a ele vinculados?
No entanto, são os próprios governantes – eleitos pelo voto ou escolhidos por concurso – os primeiros a desdenhar das necessidades dos mais pobres ao avançar sobre os recursos do erário com a síndrome do “meu pirão primeiro”.
Se os governantes tivessem senso ético e vergonha na cara, fariam um pacto no sentido de só aumentar os próprios rendimentos depois que o salário mínimo alcançasse o valor do DIEESE.
No mínimo.
LEMBRETE DE OCASIÃO
O dinheiro fala mais alto. O salário mínimo apenas cochicha.
Millor Fernandes -
Maior crise, a da informação
Em 2001, um cálculo do Tribunal de Contas da União estimou em 45 bilhões o prejuízo pelo “apagão de FHC”.
O ex-ministro Delfim Netto chegou a detalhar a conta e constatou que cada brasileiro, além dos transtornos que teve, pagou 320 reais .pela imprevidência do governo.
O susto levou à construção de grandes hidrelétricas e a um grande programa de investimentos em usinas térmicas a gás, biomassa, carvão, óleo, eólicas.
Essas providências deram dez anos de situação confortável em termos de energia no país. Tanto que se apregoou: apagão nunca mais.
Dez anos depois, o governo foi surpreendido por uma estiagem que esvaziou os reservatórios e levou os primeiros sinais da crise às populações do Sul/Sudeste.
Desde 2012 a situação no verão é crítica. O abastecimento tem sido garantido pelo funcionamento das térmicas, operando no limite, com altissimo custo.
Principalmente no Rio Grande do Sul, ponta do sistema nacional, que depende das hidrelétricas da Bacia do Iguaçu, no Paraná.
Em seu balanço de 2012, a usina de Barra Grande (da Baesa) registrou vazões abaixo da média histórica do Rio Pelotas de fevereiro até dezembro. Registraram-se os níveis mais baixos em 82 anos nos meses de abril e maio.
Em fevereiro de 2013, o sistema elétrico brasileiro entrou em pânico com o baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas, e o ministério da Energia colocou todas as térmicas em prontidão.
Até a usina térmica de Uruguaiana, que é privada, desativada há cinco anos por falta de combustível, foi reativada às pressas.
Um acordo binacional teve que ser firmado para que o gás comprado pela Petrobrás em Trinidad Tobago e transportado em navio em estado líquido pudesse ser regaseificado em território argentino, no terminal de Bahia Blanca e bombeado pelo gasoduto argentino até Uruguaiana.
O custo dessa energia de emergência é alto. Dez vezes mais do que a energia mais barata, de origem hidráulica.
Também entraram em ação, a altíssimo custo financeiro e ambiental, velhas térmicas a carvão, que já deviam estar desativadas. Uma delas tem 60 anos.
E assim tem sido nos três ultimos verões. Mas os brasileiros que se informam pelas corporações de mídia acham que a crise da energia começou agora.
Assim como a crise da água em São Paulo, Rio e Minas.
Sim, foram publicadas notícias e artigos, pontuais, que sumiram na poeira do instantaneísmo que assola as redações. Nada perto da importância que deveriam merecer.
Quero dizer: a imprevidência dos governos, qualquer deles, tem muito a ver com o jornalismo que se pratica nas grandes corporações midiáticas, sedentas por manchetes e sensacionalismo, para mover sua máquina de vendas.
Equipes reduzidas, carga de trabalho alta, instantaneidade, superficialidade.
Nesse ambiente, o mandamento clássico do jornalismo – “informar o que acontece” – vai sendo cada vez mais substituído pelo bordão do Chacrinha: “Vim para confundir, não para explicar”.
Com a população mal informada, puderam os políticos e os governos ir evitando providências que gerariam desgaste (racionamento, por exemplo) mas que seriam importantes, para que não se chegasse ao ponto em que chegamos, de calamidade nacional.
Agora, só resta aguardar que o professor Delfim Netto faça o cálculo para saber quanto vai nos custar o “apagão de 2015”. -
Zero Hora manda um recado para Sartori
O editorial da Zero Hora desta quarta-feira, 21, tem um recado claro para o governador Ivo Sartori.
Segundo o jornal, o que o Rio Grande do Sul precisa é de um “choque de comunicação e transparência” para que a população saiba o que está sendo feito.
“O cidadão, diz o editorial, precisa ser informado com clareza dos números para entender a sua parte no sacrifício, que é de todos”.
Como não há indício de que o governo esteja escondendo os números da crise, nem as medidas de contenção, aliás amplamente divulgadas pela própria ZH, o que se pode deduzir é que o editorial está se referindo à divulgação oficial através de campanhas publicitárias.
O governo do Estado gasta algo em torno de 150 milhões por ano em publicidade, dos quais pelo menos 60% vão para os veículos da RBS.
Cortar horas extras dos brigadianos em serviço, adiar a contratação de policiais, cortar programas culturais, congelar salários… tudo isso pode ser aceito em nome do ajuste.
Agora, cortar as gordas verbas de publicidade oficial…aí a coisa muda de figura.
O último que tentou isso foi Olívio Dutra, que saiu do governo esgualepado por uma campanha implacável. -
"Não posso me queixar da vida que levei"
O repórter Renan Antunes de Oliveira entrevistou Marco Archer em 2005, numa prisão na Indonésia. O texto original foi publicado no jornal JÁ na época. Abaixo um relato atualizado no dia de sua morte em janeiro de 2015:
O carioca Marco Archer Cardoso Moreira viveu 17 anos em Ipanema, 25 traficando drogas pelo mundo e 11 em cadeias da Indonésia, até morrer fuzilado, aos 53, neste sábado (17), por sentença da Justiça deste país muçulmano.
Durante quatro dias de entrevista em Tangerang, em 2005, ele se abriu para mim: “Sou traficante, traficante e traficante, só traficante”.
Demonstrou até uma ponta de orgulho: “Nunca tive um emprego diferente na vida”. Contou que tomou “todo tipo de droga que existe”.
Naquela hora estava desafiante, parecia acreditar que conseguiria reverter a sentença de morte.
Marco sabia as regras do país quando foi preso no aeroporto da capital Jakarta, em 2003, com 13,4 quilos de cocaína escondidos dentro dos tubos de sua asa delta.
Ele morou na ilha indonésia de Bali por 15 anos, falava bem a língua bahasa e sentiu que a parada seria dura.
Tanto sabia que fugiu do flagrante. Mas acabou recapturado 15 dias depois, quando tentava escapar para o Timor do Leste.
Foi processado, condenado, se disse arrependido. Pediu clemência através de Lula, Dilma, Anistia Internacional e até do papa Francisco, sem sucesso. O fuzilamento como punição para crimes é apoiado por quase 70% do povo de lá.
Na mídia brasileira, Marco foi alternadamente apresentado como “um garoto carioca” (apesar dos 42 anos no momento da prisão), ou “instrutor de asa delta”, neste caso um hobby transformado na profissão que ele nunca exerceu.
Para Rodrigo Muxfeldt Gularte, 42, o outro brasileiro condenado por tráfico, que espera fuzilamento para fevereiro, companheiro de cela dele em Tangerang, “Marco teve uma vida que merece ser filmada”.
Rodrigo até ofereceu um roteiro sobre o amigo à cineasta curitibana Laurinha Dalcanale, exaltando: “Ele fez coisas extraordinárias, incríveis.”
O repórter pediu um exemplo: “Viajou pelo mundo todo, teve um monte de mulheres, foi nos lugares mais finos, comeu nos melhores restaurantes, tudo só no glamour, nunca usou uma arma, o cara é demais.”
Para amigos em liberdade que trabalharam para soltá-lo, o que aconteceu teria sido “apenas um erro” do qual ele estaria arrependido.
Na versão mais nobre, seria a tentativa desesperada de obter dinheiro para pagar uma conta de hospital pendurada em Cingapura – Marco estaria preocupado em não deixar o nome sujo naquele país.
A conta derivou de uma longa temporada no hospital depois de um acidente de asa delta. Ter sobrevivido deu a ele, segundo os amigos, um incrível sentimento de invulnerabilidade.
Ele jamais se livrou das sequelas. Cheio de pinos nas pernas, andava com dificuldade, o que não o impediu de fugir espetacularmente no aeroporto quando os policiais descobriram cocaína em sua asa delta.
Arriscou tudo ali. Um alerta de bomba reforçara a vigilância no aeroporto. Ele chegou a pensar em largar no aeroporto a cocaína que transportava e ir embora, mas decidiu correr o risco.
Com sua ficha corrida, a campanha pela sua liberdade nunca decolou das redes sociais.
A mãe dele, dona Carolina, conseguiu o apoio inicial de Fernando Gabeira, na Câmara Federal, com voto contra de Jair Bolsonaro.
O Itamaraty e a presidência se mexeram cada vez que alguma câmera de TV foi ligada, mesmo sabendo da inutilidade do esforço.
Mesmo aparentemente confiante, ele deixava transparecer que tudo seria inútil, porque falava sempre no passado, em tom resignado: “Não posso me queixar da vida que levei”.
Marco me contou que começou no tráfico ainda na adolescência, diretamente com os cartéis colombianos, levando coca de Medellín para o Rio de Janeiro.
Adulto, era um dos capos de Bali, onde conquistou fama de um sujeito carismático e bem humorado.
A paradisíaca Bali é um dos principais mercados de cocaína do mundo graças a turistas ocidentais ricos que vão lá em busca de uma vida hedonista: praias deslumbrantes, droga fácil, farta — e cara.
O quilo da coca nos países produtores, como Peru e Bolívia, custa 1 000 dólares. No Brasil, cerca de 5 000.
Em Bali, a mesma coca é negociada a preços que variam entre 20 000 e 90 000 dólares, dependendo da oferta. Numa temporada de escassez, por conta da prisão de vários traficantes, o quilo chegou a 300 000 dólares.
Por ser um dos destinos prediletos de surfistas e praticantes de asa delta, e pela possibilidade de lucros fabulosos, Bali atrai traficantes como Marco.
Eles se passam por pessoas em busca de grandes ondas, e costumam carregar o contrabando no interior das pranchas de surf e das asas deltas.
Archer foi pego assim. Tinha à mão, sempre que desembarcava nos aeroportos, um álbum de fotos que o mostrava voando, o que de fato fazia.
O homem preso por narcotráfico passou a maior parte da entrevista comigo chapado. O consumo de drogas em Tangerang era uma banalidade.
Pirado, Marco fazia planos mirabolantes – como encomendar de um amigo carioca uma nova asa, para quando saísse da cadeia.
Nos momentos de consciência, mostrava que estava focado na grande batalha: “Vou fazer de tudo para sair vivo desta”.
Marco era um traficante tarimbado: “Nunca fiz nada na vida, exceto viver do tráfico.” Gabava-se de não ter servido ao Exército, nem pagar imposto de renda. Nunca teve talão de cheques e ironizava da única vez numa urna: “Minha mãe me pediu para votar no Fernando Collor”.
A cocaína que ele levava na asa tinha sido comprada em Iquitos, no Peru, por 8 mil dólares o quilo, bancada por um traficante norte-americano, com quem dividiria os lucros se a operação tivesse dado certo: a cotação da época da mercadoria em Bali era de 3,5 milhões de dólares.
Marco me contou, às gargalhadas, sua “épica jornada” com a asa cheia de drogas pelos rios da Amazônia, misturado com inocentes turistas americanos. “Nenhum suspeitou”. Enfim chegou a Manaus, de onde embarcou para Jakarta: “Sair do Brasil foi moleza, nossa fiscalização era uma piada”.
Na chegada, com certeza ele viu no aeroporto indonésio um enorme cartaz avisando: “Hukuman berta bagi pembana narkotik’’, a política nacional de punir severamente o narcotráfico.
“Ora, em todo lugar do mundo existem leis para serem quebradas”, me disse, mostrando sua peculiar maneira de ver as coisas: “Se eu fosse respeitar leis nunca teria vivido o que vivi”.
Ele desafiou o repórter: “Você não faria a mesma coisa pelos 3,5 milhões de dólares”?
Para ele, o dinheiro valia o risco: “A venda em Bali iria me deixar bem de vida para sempre” – na ocasião, ele não falou em contas hospitalares penduradas.
Marco parecia exagerar no número de vezes que cruzou fronteiras pelo mundo como mula de drogas: “Fiz mais de mil gols”. Com o dinheiro fácil manteve apartamentos em Bali, Hawai e Holanda, sempre abertos aos amigos: “Nunca me perguntaram de onde vinha o dinheiro pras nossas baladas”.
Marco guardava na cadeia uma pasta preta com fotos de lindas mulheres, carrões e dos apartamentos luxuosos, que seriam aqueles onde ele supostamente teria vivido no auge da carreira de traficante.
Num de seus giros pelo mundo ele fez um cursinho de chef na Suíça, o que foi de utilidade em Tangerang. Às vezes, cozinhava para o comandante da cadeia, em troca de regalias.
Eu o vi servindo salmão, arroz à piemontesa e leite achocolatado com castanhas para sobremesa. O fornecedor dos alimentos era Dênis, um ex-preso tornado amigão, que trazia os suprimentos fresquinhos do supermercado Hypermart.
Marco queria contar como era esta vida “fantástica” e se preparou para botar um diário na internet. Queria contratar um videomaker para acompanhar seus dias.
Negociava exclusividade na cobertura jornalística, queria escrever um livro com sua experiência – o que mais tarde aconteceu, pela pena de um jornalista de São Paulo. Um amigo prepara um documentário em vídeo para eternizá-lo.
Foi um dos personagens de destaque de um bestseller da jornalista australiana Kathryn Bonella sobre a vida glamurosa dos traficantes em Bali — orgias, modelos ávidas por festas e drogas depois de sessões de fotos, mansões cinematográficas.
Diplomatas se mexeram nos bastidores para tentar comprar uma saída honrosa para Marco. Usaram desde a ajuda brasileira às vítimas do tsunami até oferta de incremento no comércio, sem sucesso. Os indonésios fecharam o balcão de negócios.
O assessor internacional de Dilma, Marco Aurélio Garcia, disse que o fuzilamento deixa “uma sombra” nas relações bilaterais, mas na lateral deles o pessoal não tá nem aí.
A mãe dele, dona Carolina, funcionária pública estadual no Rio, se empenhou enquanto deu para livrar o ‘garotão’ da enrascada, até morrer de câncer, em 2010.
As visitas dela em Tangerang eram uma festa para o staff da prisão, pra quem dava dinheiro e presentes, na tentativa de aliviar a barra para o filhão.
Com este empurrão da mamãe Marco reinou em Tangerang, nos primeiros anos – até ser transferido para outras cadeias, à espera da execução.
Eu o vi sendo atendido por presos pobres que lhe serviam de garçons, pedicures, faxineiros. Sua cela tinha TV, vídeo, som, ventilador, bonsais e, melhor ainda, portas abertas para um jardim onde ele mantinha peixes num laguinho. Quando ia lá, dona Carola dormia na cama do filho.
Marco bebia cerveja geladinha fornecida por chefões locais que estavam noutro pavilhão. Namorava uma bonita presa conhecida por Dragão de Komodo. Como ela vinha da ala feminina, os dois usavam a sala do comandante para se encontrar.A malandragem carioca ajudou enquanto ele teve dinheiro. Ele fazia sua parte esbanjando bom humor. Por todos os relatos de diplomatas, familiares e jornalistas que o viram na cadeia de tempos em tempos, Marco, apelidado Curumim em Ipanema, sempre se mostrou para cima. E mantinha a forma malhando muito.Para ele, a balada era permanente. Nos últimos anos teve várias mordomias, como celular e até acesso à internet, onde postou algumas cenas.
Um clip dele circulou nos últimos dias – sempre sereno, dizendo-se arrependido, pedindo a segunda chance: “Acho que não mereço ser fuzilado”.
Marco chegou ao último dia de vida com boa aparência, pelo menos conforme as imagens exibidas no Jornal Hoje, da Globo. Mas tinha perdido quase todos os dentes em sua temporada na prisão, como relatou a jornalista e escritora australiana. No Facebook, ela disse guardar boas recordações de Archer, e criticou a “barbárie” do fuzilamento.
Numa gravação por telefone, ele ainda dava conselhos aos mais jovens, avisando que drogas só podem levar à morte ou à prisão.
Sua voz estava firme, parecia esperar um milagre, mesmo faltando apenas 120 minutos pra enfrentar o pelotão de fuzilamento – a se confirmar, deixou esta vida com o bom humor intacto, resignado.
Sabe-se que ele pediu uma garrafa de uísque Chivas Regal na última refeição e que uma tia teria lhe levado um pote de doce-de-leite.
O arrependimento manifestado nas últimas horas pode ser o reflexo de 11 anos encarcerado. Afinal, as pessoas mudam. Ou pode ter sido encenação. Só ele poderia responder.
Para mim, o homem só disse que estava arrependido de uma única coisa: de ter embalado mal a droga, permitindo a descoberta pela polícia no aeroporto.
“Tava tudo pronto pra ser a viagem da minha vida”, começou, ao relatar seu infortúnio.
Foi assim: no desembarque em Jakarta, meteu o equipamento no raio x. A asa dele tinha cinco tubos, três de alumínio e dois de carbono. Este é mais rijo e impermeável aos raios: “Meu mundo caiu por causa de um guardinha desgraçado”, reclamou.
“O cara perguntou ‘por que a foto do tubo saía preta’? Eu respondi que era da natureza do carbono. Aí ele puxou um canivete, bateu no alumínio, fez tim tim, bateu no carbono, fez tom tom”.
O som revelou que o tubo estava carregado, encerrando a bem-sucedida carreira de 25 anos no narcotráfico.
Marco ainda conseguiu dar um drible nos guardas. Enquanto eles buscavam as ferramentas, ele se esgueirou para fora do aeroporto, pegou um prosaico táxi e sumiu. Depois de 15 dias pulando de ilha em ilha no arquipélago indonésio passou sua última noite num barraco de pescador, em Lombok, a poucas braçadas de mar da liberdade.
Acordou cercado por vários policiais, de armas apontadas. Suplicou em bahasa que tivessem misericórdia dele.
No sábado, enfrentou pela última vez a mesma polícia, mas desta vez o pessoal estava cumprindo ordens de atirar para matar.
Foi o fim do Curumim. -
Sargento Alberi atraiu companheiros para a morte
O depoimento de um agente do Centro de Informações do Exército, confirma uma antiga suspeita dos grupos que combateram a ditadura de 1964:
O sargento Alberi Vieira dos Santos, que participou dos projetos guerrilheiros de Leonel Brizola, depois de preso, tornou-se “cachorro”, isto é, passou a trabalhar para a repressão política, infiltrado entre os grupos que tentavam sustentar a luta armada contra o regime militar.
O depoimento de Otávio Rainolfo da Silva foi dado em junho de 2013 à Comissão da Verdade do Paraná, mas só agora foi divulgado pela Folha de S. Paulo.
Ele descreveu a emboscada, da qual participou, para a qual Alberi atraiu seis guerrilheiros da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária),em 1974, no Parque Nacional do Iguaçu, no município de Medianeira (PR), no episódio conhecido como o “Massacre de Medianeira”.
José Lavecchia, Joel de Carvalho, Danilo Carvalho, Vitor Carlos Ramos e o argentino Ernesto Ruggia estavam refugiados na Argentina e foram convencidos por Alberi a voltar para o Brasil, onde um novo foco guerrilheiro estava em preparo.
Foram metralhados no meio da mata, quando se encaminhavam para um suposto acampamento clandestino onde se preparava a guerrilha.
O sexto homem seria o ex-sargento Onofre Pinto, um dos comandantes da VPR, que estava escondido em outro local, esperando para se juntar ao grupo.
Foi morto dias depois e teve os dedos cortados e a arcada dentária destruída para evitar o reconhecimento do cadáver.
Os seis corpos nunca foram encontrados. A morte de Onofre até agora era um mistério e muitos acreditavam que ele estaria vivo, em algum país na Europa.
Alberi foi o braço direito do coronel Jefferson Cardim Osório, que chefiou a primeira tentativa armada de resistir ao golpe militar, a chamada Guerrilha de Três Passos.
Entraram pela fronteira uruguaia em 1965, à frente de 23 homens precariamente armados, deslocando-se num caminhão velho. Foram presos a caminho de Foz do Iguaçu e barbaramente torturados.
Depois disso, Alberi passou a trabalhar para a repressão, sob o comando do coronel Paulo Malhães, ex chefe do Doi Codi no Rio.
A ordem nos órgãos de segurança era não deixar vivo nenhum dos ex-guerrilheiros libertados e exilados mediante o sequestro de diplomatas estrangeiros.
Alberi passou então a atraí-los para a morte, como fez também outra figura tristemente conhecida, o Cabo Anselmo.
Alberi foi assassinado em 1979, em Cascavel. O crime não foi esclarecido. -
Defesa tenta último recurso para evitar fuzilamento
Os advogados de Rodrigo Muxfeld Duarte estão pedindo a internação dele como doente mental (esquizofrênico), para evitar que ele seja executado na Indonésia.
Ele será submetido a exames nesta semana, para avaliação de seu verdadeiro estado.
Preso em 2004 por tráfico de drogas, Duarte está no corredor da morte, com execução prevista para fevereiro. No país, os doentes mentais não podem ser condenados à morte.
Rodrigo tem 42 anos e já tentou suicidar-se na prisão. Tem um comportamento estranho nos últimos anos e se recusa até a receber a mãe que tentou visitá-lo.
Outro brasileiro, Marco Archer Moreira, de 53 anos, preso pelo mesmo motivo em 2005, já foi executado na madrugada do último domingo. -
Lula pediu clemência aos condenados. Não foi atendido
No dia 21 de março de 2005, o então presidente Lula intercedeu junto ao presidente da Indonésia em favor de Marco Archer Moreira, um dos dois brasileiros condenados à morte naquele país. O pedido de Lula não foi atendido.
Quatro dias antes, Moreira tivera seu último recurso negado pela Suprema Corte do país. Ele pedira a conversão da pena de morte em prisão perpétua, o que foi negado. . -
Jornal JÁ esteve na cela dos condenados à morte na Indonésia
O repórter Renan Antunes de Oliveira foi o único jornalista brasileiro a entrar na cadeia em Jacarta onde estão os dois brasileiros condenados à morte na Indonésia por tráfico de cocaína..
“Ainda não caiu a ficha do paranaense Rodrigo Muxfel Gulart, 32 anos, nem a do carioca Archer Cardoso Moreira, de 43 anos”, assinalou o repórter na matéria publicada pelo jornal JÁ em abril der 2005.
Leia a reportagem Na Balada da Morte
