Andres Vince
Domingo desses, caminhando pelo vasto deserto da programação da TV aberta, fui parar na TVCOM, o canal local da RBS, no Sul.
Há mais de uma década, não pousava por esse canal. Sinal ruim, exaustivas reprises, jeitão de laboratório, não me deixavam simpatizar com ele. Mas, confesso que me surpreendi, ao assistir uma excelente reportagem sobre os índios caingangues num programa chamado #PortoA.
Infelizmente, a reportagem era de encerramento, e, mais, não pude avaliar. Empolgado, nesse momento, deixei escapar a grande oportunidade de desligar a televisão e ficar com essa boa impressão: o jornalismo ainda vive. Está em coma profundo, respira por aparelhos, mas, ainda com atividade cerebral, mexe um dedinho do pé, de vez em quando.
Entra a chamada: a seguir, Bate-Bola. Pensei: programa desportivo, vou ver os gols do domingo e tal. No estúdio, ali presente, a nata do comentarismo esportivo do canal. Num ágil movimento reflexivo, tratei logo de levantar meu escudo.
Contemporizei: nada mais justo, afinal, domingo à noite é o horário nobre desse segmento. Eu só queria ver os gols do domingo.
Entra Pedro Ernesto Denardin, faz as honras da casa, faz o mercha habitual (todo mundo precisa comer), começam as (pseudo) análises e os (in)consequentes debates.
Já tinha perdido o interesse no que estavam falando, quando o Pedro Ernesto comenta que algum fulano ali presente não iria ganhar a camisa da loja patrocinadora X, porque alguém deixou o brinde no carro, e um larápio não deixou passar a oportunidade de incrementar seu guarda-roupa.
Como bom programa desportivo, levantada a bola, todos queriam chuta-la. Então, começaram as cenas de horror. Cada comentarista contou um caso de violência urbana, um mais cabeludo que o outro. O Guerrinha teve o requinte de dar uma dica: “ande sempre com pouca gasolina”. Então, contou que lhe roubaram o carro e como ele estava com pouca gasolina, o meliante largou seu carro logo adiante, pra trocar por outro, e que nessa troca, a vítima reagiu e… foi morta pelo bandido.
Baita dica, Guerrinha: “Preserve seu patrimônio, às custas da vida do próximo”. Com pouca gasolina, o bandido abandona teu carro e pega outro. Azar se o bandido matar o próximo, eu quero é o meu carro. Bonito.
Como a vaidade é um sentimento que acaba com a capacidade de raciocínio de uma pessoa, Pedro Ernesto, vendo o colega dominar a bola, olha diretamente pra câmera, olho no olho do telespectador, ensaia uma expressão dramática e, como quem está abrindo uma transmissão futebolística, tasca: “Meu senhor, minha senhora, você pode MORRER A QUALQUER MINUTO. Você pode sair na porta da sua casa e um bandido vir e lhe dar um tiro e você morre (…)”. Segue-se a isso um discurso mea culpa, afirmando que a maneira de falar é para ver se alguma coisa acontece. Por parte do poder público, obviamente.
Aqui já não se trata de ser ou não jornalismo ou algo que o valha. Do que se trata aqui é de o fato de uma concessão pública estar sendo usada pra disseminar o terror. Sim, isso é terrorismo puro. Exagero? Imagina se eu, pai, estou com um hipotético filho numa faixa de 7 a 10 anos, querendo ver os gols do domingo e entra uma pessoa e diz essas coisas. O que se passa na cabeça dessa criança? Logo mais, a criança vai pra cama e pensa o quê?
Pensem por um minuto com a cabeça da criança: “Poxa, tem um cara na TV dizendo que meu pai e minha mãe podem morrer a qualquer minuto”. Qual o impacto psicológico que isso pode causar? Alguém pode dimensionar? Arrisco dizer: um adulto com desejo de ter uma arma.
É uma irresponsabilidade total. Nem vou falar que o programa era pra ser desportivo, porque em dado momento estavam falando do valor prático e moral do uso das ceroulas! Fiquei imaginando em que momento iriam comentar sobre os glúteos de alguma nova estagiária da TV. Certamente durante o intervalo.
Aproveite o intervalo, confira se a porta está bem trancada e tire as crianças da sala.
Tirem as crianças da sala: "você pode morrer a qualquer minuto”
Escrito por
em
Adquira nossas publicações
texto asjjsa akskalsa

Deixe um comentário