A ligação do oceano Atlântico ao Pacífico, das trilhas indígenas aos trilhos chineses

A rota percorrida já pelos indígenas hà 500 anos será integrada por ferrovias e rodovias. Foto: Reprodução

Geraldo Hasse

Trinta anos depois da edição original do livro em que contou a saga do marinheiro português Aleixo Garcia, que há 500 anos liderou uma caravana de índios guarani do litoral de Santa Catarina aos Andes, a jornalista Rosana Bond acaba de lançar uma versão mais encorpada (250 páginas) da história da conexão bioceânica recolocada na agenda pelo Brasil e a China, os maiores países da América do Sul e da Ásia, que prometem ligar o Atlântico e o Pacífico por meio de uma sistema integrado de trilhos ferroviários e rodovias asfaltadas.

A escritora Rosana Bond, no lançamento de seu livro. Foto: Divulgação

A nova versão da obra foi publicada pela Insular, editora sediada na capital catarinense, onde reside a autora, que nasceu em 1954 em Curitiba. Rosana Bond trabalhou em vários veículos e regiões do Brasil, mas se dedicou especialmente a juntar fragmentos da misteriosa e ainda incompleta história de Aleixo Garcia encontrados em relatos esparsos de viajantes desde o início do século XVI até pesquisas recentes realizadas por estudiosos autodidatas e acadêmicos.

Nascido em 1485 ou 1490 na região do Alentejo, na península ibérica, Aleixo Garcia participou da expedição espanhola de Juan Díaz de Solís, que comandava um trio de caravelas quando foi abatido, assado e comido por nativos das margens do rio Paraná – ele procurava as minas de prata de Potosi, na Bolívia. Sem o chefe e alguns marinheiros também sacrificados, os três barcos voltavam para a Europa quando um dos cascos naufragou em águas do litoral de Santa Catarina, onde uma dezena de sobreviventes foi acolhida pelos índios guarani, aldeados na baixada do  rio Maciambu, que deságua no Atlântico (hoje, município de Palhoça, SC). Os marinheiros europeus ficaram vivendo entre os índios. Aleixo casou-se e teve um filho. Em 1523, oito anos depois do naufrágio, liderou a excursão que faria do seu nome uma espécie de lenda vaga, guardada na memória de indígenas sul-americanos e citada em narrativas portuguesas e espanholas.

Faltam detalhes, mas não foi uma simples aventura. Junto com Aleixo, viajaram quatro dos companheiros de naufrágio e vários índios mais ou menos familiarizados com o chamado Caminho de Peabiru, que configurava a Rota do Sol, do leste para o oeste. Segundo a lenda acolhida por Bond, os excursionistas teriam saído do litoral de SC com 400 pessoas, incluindo mulheres e crianças; no caminho, que atravessou o Paraná, percorreu o Paraguai e chegou a Cochabamba (então pertencente ao império inca, sediado em Cuzco), a caravana teria chegado a reunir duas mil pessoas, sem qualquer explicação sobre os motivos ou objetivos de tamanho deslocamento. Como os guarani acreditavam na terra sem males, o paraíso, é possível que tenham encarado a longa viagem para os Andes como a grande chance de encontrar a felicidade.

Calcula-se que percorriam até 30 km/dia. Faziam paradas em aldeias amigas (ou hostis) e se alimentavam de farinhas de mandioca, amendoim e milho, além de produtos da caça e pesca (pinhão no inverno). A trilha teria oito palmos de largura.

Na volta, carregado de peças de ouro e prata, Aleixo acampou no Paraguai, de onde planejava nova excursão ao altiplano com o objetivo provável de saquear os tesouros incas com a ajuda de companheiros que mandou chamar na aldeia do Maciambu – para convencê-los de que a missão valeria a pena, teria enviado amostras de ouro e prata.

Nessa etapa da história, paira um grande mistério: de repente, enquanto esperava a chegada do apoio pedido, Aleixo Garcia morreu… assassinado no curso de uma revolta de seus mais próximos seguidores. Aparentemente, sucumbiu à ambição por ouro e prata que naquele momento povoava os sonhos de reis e súditos europeus fascinados com a descoberta da América.

Quando morreu, Aleixo provavelmente já sabia que perdera a parada para os espanhóis liderados por Francisco Pizarro, que chegaram pelo Pacífico em 1532.

Se Pizarro entrou para a História como o exterminador do império inca, Aleixo Garcia mereceria ser visto como “o descobridor do império Inca”, argumenta Rosana Bond, afirmando que ele teria sido o primeiro europeu a viver entre os índios do Sul do Brasil.

Até aí, tudo bem, mas isso não basta para que seja visto como um herói à altura de grandes figuras do século XVI como Anchieta, Nóbrega, João Ramalho e outros. Na realidade, apesar da grande quantidade de citações recolhidas aqui e ali, a história de Aleixo Garcia tem muitos pontos obscuros. De qualquer forma, o livro de Bond é rico em detalhes geográficos e históricos sobre a trajetória do náufrago no continente sul-americano. Citando fontes antigas e recentes do Brasil e de outros países, focaliza sobretudo o caminho a partir de Santa Catarina, mas lembra que havia diversas outras trilhas para o oeste a partir de Paranaguá, Cananeia e outros pontos do litoral brasileiro. Havia também ramificações para o norte e o sul criadas ao longo do tempo por indígenas e usadas por pedestres, cavaleiros e tropeiros cujas rotas serviram à abertura de estradas de rodagem e ferrovias.

Quinhentos anos depois, o mapa logístico da América do Sul está prestes a ser enriquecido graças ao recente acordo do Brasil com a China. As obras rodoferroviárias previstas são fundamentais para o agronegócio brasileiro, que se modernizou nos últimos 50 anos, com a introdução do cultivo de soja no Brasil Central. A exportação do grão iniciada pelo porto de Rio Grande (redimensionado em 1971) abriu sucessivos polos de embarque em Itajaí, Paranaguá, Santos, Vitória, Ilhéus, Salvador, Recife, Cabedelo, São Luiz e Santarém. Em cada um desses portos, foram construídos corredores de exportação pelo oceano Atlântico. Agora vai se tentar embarcar pelo Pacífico. Não é uma ideia nova.

Desde a década de 1950 governantes, técnicos e empresários brasileiros fazem planos sobre a ligação bioceânica que permitiria economizar tempo de viagem e custo do frete no transporte marítimo entre a América e a Ásia. Anos atrás, uma caravana de camionetas pilotadas por brasileiros percorreu a rota de São Paulo aos portos de Arica e Iquique, no Chile. Os viajantes encontraram no caminho entraves burocráticos e discrepâncias nos preços dos serviços, mas não perderam a esperança, hoje convergindo para a construção de ferrovias. É um grande projeto que se tornou mais urgente desde que o presidente dos EUA, Donald Trump, passou a cobiçar a posse do Canal do Panamá.