“Jornais de bairro constroem cidadania”

Falando na Associação Riograndense de Imprensa, a secretária Vera Spolidoro promete descentralizar verbas do Palácio Piratini

A secretária estadual Vera Spolidoro afirmou neste sábado (11/6) em reunião na sede da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), em Porto Alegre, que considera os jornais de bairro parte da cadeia produtiva da mídia – excessivamente concentrada em poucos grandes grupos. “A descentralização é norteadora do nosso trabalho”, disse ela, apontando a pedagoga Claudia Cardoso, diretora de políticas públicas da Secretaria da Comunicação, como “o canal” de interlocução com blogs, sites, jornais de bairro e de segmentos sociais.
Em sua fala numa reunião geral de dirigentes e trabalhadores em jornais de bairro (há 22 desses veículos em atividade em Porto Alegre), a secretária condenou a insensibilidade das agências de propaganda diante da realidade da comunicação social nos bastidores da sociedade. “Os jornais de bairro são formadores de cidadania”, disse ela. Uma das hipóteses de trabalho em sua secretaria é que a companhia estadual de artes gráficas (Corag) passe a imprimir jornais de bairro por valores abaixo dos preços correntes no mercado.
Flavio Dutra, coordenador de comunicação social da Prefeitura de Porto Alegre, relatou que a partir de abril foi definida a veiculação de uma coluna paga nos jornais de bairro da capital. A coluna contém informações sobre a atuação da prefeitura em cada bairro. Como contrapartida a essa veiculação, ainda incipiente, Dutra está exigindo que os jornais comprovem a tiragem, inicialmente por meio de declarações das gráficas prestadoras do serviço de impressão.
Durante a reunião, presenciada por meia centena de pessoas, foram apresentados três “cases” de jornais de bairro. Gustavo Cruz Silveira, do Jornalecão, criado há 24 anos no Guarujá, contou que o veículo foi fundado por duas crianças de 11 anos – ele e o amigo Christian Borges – para arrecadar fundos para seu time de futebol. Erico Vieira, fundador do Bem Estar, contou que seu jornal nasceu de uma busca pessoal por melhor qualidade de vida.
De 44 jornais para apenas 13
O último a falar, Elmar Bones, do JÁ Bom Fim, que circula há 23 anos, lembrou que esta é a segunda tentativa de organizar os jornais de bairro, que possuem uma associação fundada em 1998. “Chegamos a ter 44 jornais em circulação nos 83 bairros da capital”, disse ele, lembrando que houve uma mudança em meados da década passada, quando “esse mercado foi devastado pela atuação predatória” da RBS, que lançou uma série de cadernos de bairros. Em conseqüência, os jornais de bairro caíram para 13.
Com a posterior suspensão dos cadernos da Zero Hora, os veículos das bases comunitárias estão voltando, mas todos reclamam o reconhecimento como mídia por parte dos órgãos públicos e agências de propaganda.
Disposta a amparar a retomada da imprensa enraizada nos quarteirões, a ARI inaugurou no sétimo andar de sua sede, na Av. Borges de Medeiros 915, uma sala para facilitar o intercâmbio dos jornais de bairro. A sala ficou sob a responsabilidade da professora Beatriz Dornelles, da PUC, que estuda os jornais comunitários e foi a primeira presidente da Associação dos Jornais de Bairro de Porto Alegre.
Segundo Paulo Tomazini, diretor do Jornal Floresta e atual presidente da associação, o primeiro jornal de bairro da capital gaúcha foi criado em 1954 em Ipanema. O fenômeno da mídia comunitária está difundido em todo o Brasil. Tanto que por iniciativa de um parlamentar carioca tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que determina a aplicação em jornais de bairro e de segmentos sociais 10% das verbas públicas de propaganda.

Teleférico sinaliza salto turístico em Osório

A prefeitura de Osório comprou um terreno de 35 mil metros quadrados junto ao quartel da Brigada Militar, na margem direita de quem trafega no sentido norte da BR-101.
Ali será construída a estação de embarque do teleférico ligando a cidade ao topo do Morro Borússia, obra que terá início em meados de 2011, caso o projeto obtenha licença ambiental da Fepam – no mesmo terreno, no extremo norte da cidade, está prevista também a construção de um hotel 4 estrelas com centro de convenções.
A outra ponta do teleférico, no alto do morro, ficará em antigo reduto de colonização alemã consagrado nas últimas décadas ao turismo ecológico. Além de cachoeiras e trilhas, aqui há mirantes, rampas de vôo livre, pousadas e restaurantes.
Por uma estimativa feita em 2004, quando a Fepam negou licença ambiental a uma via dupla de transporte em cabos de aço com 900 metros de extensão, o custo de implantação do teleférico de Osório seria de R$ 4,1 milhões.
Reformulado para 1300 metros, o novo projeto pode ter seu custo aumentado para até R$ 6 milhões, estima o contador Jorge Ramos, secretário do Desenvolvimento e Turismo de Osório.
Para poder atravessar a BR-101, o teleférico precisa ser aprovado também pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).
No ponto de travessia, está prevista a construção de uma proteção semelhante a uma passarela de pedestres, sobre a qual deslizarão as cabines com capacidade para levar de quatro a seis pessoas.
Essa viagem sobre a mata atlântica custará entre R$ 10 e R$ 15 por pessoa. O teleférico poderá transportar 200 pessoas por hora.
Assim que sair o licenciamento ambiental, a obra será licitada pela prefeitura. Se a iniciativa privada não se apresentar, o próprio município vai construir e operar o mecanismo até que o negócio se consolide.
“O teleférico é estratégico para o incremento dos serviços de turismo de Osório”, diz o prefeito Romildo Bolzan Jr., a dois anos do término de um mandato de oito anos, durante os quais a economia municipal deu um salto graças às obras de duplicação da BR-101 e da construção dos 75 aerogeradores da Ventos do Sul Energia, tocada por capitais espanhóis e alemães.
Foi com os recursos da compensação ambiental do parque eólico de Osório a partir de 2005 que a prefeitura começou a investir em favor do turismo ecológico no ponto mais alto da Serra Geral, a 90 quilômetros de Porto Alegre, de Torres e de Gramado.
O primeiro passo foi asfaltar o ziguezague de quatro quilômetros que leva da BR-101 ao topo do Borússia. O segundo melhoramento foi a iluminação da estrada, visível de qualquer ponto do litoral norte. Outra obra foi um mirante com vários patamares de observação. Bela vista.
Do Morro Borússia, 360 metros acima do mar, avista-se toda a planície litorânea, com seu cordão de lagoas, capões, sítios, lavouras, pastagens, rebanhos e aerogeradores.
Nos dias claros, são visíveis as silhuetas das cidades de Tramandaí, Imbé, Xangri-Lá e Capão da Canoa, ex-distritos de Osório.
A mancha urbana de Torres só se enxerga nos dias muito transparentes, quando o vento predominante (o nordeste) não está espalhando na paisagem os vapores do Atlântico.
ÁGUA, TERRA E AR
O projeto do teleférico ferve na imaginação osoriense há mais de dez anos. Agora que há recursos concretos e demanda aparente para concretizá-lo, ele está amarrado a outros projetos (de turismo e urbanização) dependentes da implantação de um novo sistema de saneamento básico da cidade, no qual estão sendo investidos mais de R$ 23 milhões.
Com a despoluição das duas lagoas mais próximas do centro da cidade, a prefeitura prevê integrar o lazer náutico ao teleférico, que tem mais duas fases previstas para execução até 2020.
A primeira é uma extensão da linha da primeira estação até o ponto mais elevado do morro. A outra, uma linha horizontal sobre a Lagoa do Marcelino, ligando a estação da margem da BR-101 ao antigo Porto Lacustre, berço da história de Osório desativado há 50 anos, quando as rodovias tomaram conta do transporte de cargas e passageiros. “Se o plano vingar, o teleférico será o maior do Brasil, com quase cinco quilômetros”, diz o secretário Ramos.
Antes usadas como vias de navegação, as águas osorienses foram paulatinamente poluídas por esgotos domésticos, a ponto de se tornarem impróprias até para o lazer náutico, esporte ainda pouco praticado nessa região dominada por grandes corpos lacustres.
Só no município de Osório há 23 lagoas. Em todas se pesca alguma coisa. Em algumas, extrai-se areia fina intercambiada com a areia grossa do rio Guaíba.
Para despoluir suas duas lagoas mais próximas (Marcelino, com 10 hectares de lâmina d’água, e Peixoto, com 100 hectares), Osório está implantando uma rede geral de coleta de esgotos, a serem encaminhados a uma estação de tratamento sanitário junto à Lagoa dos Barros (10 mil hectares).
Situada a oeste da cidade, a Lagoa dos Barros é tão grande que alcança o vizinho município de Santo Antonio da Patrulha, do qual se desmembrou Osório há 153 anos.
BRIGA NA JUSTIÇA
A notícia da ETE de Osório não foi bem recebida pelos patrulhenses, que têm até um balneário em suas margens. O conflito de interesses sobre os usos das águas da Lagoa dos Barros foi parar na Justiça, onde se encontra até hoje. Num primeiro entrevero em primeira instância, Osório levou a melhor, mas Santo Antonio da Patrulha recorreu.
Mesmo com o processo prometendo arrastar-se indefinidamente como uma briga de família na Justiça, a ETE de Osório está pronta ao custo de R$ 6 milhões. Linda obra pintada de lilás. Aqui o prefeito premedita instalar também, no futuro – “em parceria com a UERGS, eu espero” –, uma instituição de ensino e pesquisa voltada para energias alternativas, como a geração eólica, a exploração solar e o que mais for compatível com os recursos naturais da região, rica em águas ferruginosas, areias finas, terras férteis e ventos fortes.
Uma idéia ventilada recentemente é buscar a autosuficiência energética para custear, pelo menos, o pagamento da conta municipal de eletricidade, R$ 140 mil mensais. Por coincidência, é mais ou menos esse o valor produzido mensalmente por cada um dos aerogeradores plantados em Osório pela Ventos do Sul Energia.
Investimento municipal com aporte federal e gestão estadual, o saneamento básico de Osório vai devagar não apenas porque obras subterrâneas são lerdas por natureza, mas porque uma das empresas ganhadoras da empreitada ignorava que boa parte da cidade foi construída sobre brejos arenosos.
“A empreiteira da rede alega que é preciso esperar pela compactação natural das ruas esburacadas antes de recolocar o calçamento de pedras e asfaltar novamente os trechos abertos para a colocação dos canos”, contou um funcionário da Corsan. Por esse e outros detalhes, admite-se que um atraso crônico compromete o início das operações de bombeamento dos esgotos, prometido para março de 2011. “E não adianta atropelar as obras agora, porque encanamento de esgoto não pode ser feito às pressas”, diz a fonte (limpa) da Corsan.
O sistema de coleta de esgotos de Osório compreende quatro estações elevatórias e uma central de bombeamento, situada no antigo bairro Porto Lacustre, que vai mandar todo o material coletado para a ETE a mais de cinco quilômetros, junto à Lagoa dos Barros, cujas águas descem para a Lagoa dos Patos.
O nome do Porto Lacustre remete à navegação existente até 50 anos atrás na pequena Lagoa do Marcelino, que se comunica por um canal natural com a Lagoa do Peixoto, também unida por outro canal à Lagoa da Pinguela, cujas águas se comunicam com a Lagoa dos Quadros, que pode chegar ao mar via lagoa e canal de Tramandaí, a única saída marítima leste das águas rasas do nordeste gaúcho.
Esse grande cordão de lagoas esteve ligado à Lagoa dos Patos durante 40 anos por uma ferrovia de 54 quilômetros inaugurada em 1921 por Antonio Borges de Medeiros e desmanchada por ordem do governador Leonel Brizola em 1960, quando as cargas e os passageiros já se haviam bandeado para o transporte rodoviário.
Como parte de um projeto de recuperação da memória econômica de Osório, a prefeitura construiu em 2007 uma réplica da antiga estação ferroviária urbana, no centro da cidade. Nela funciona hoje um pequeno museu de baixa freqüência popular.
MARINAS
A segunda etapa desse projeto memorialístico, que visa também a revitalização turística municipal, é a construção de marinas nas lagoas do Marcelino e do Peixoto. Tanto numa como noutra, as obras compreendem trapiches simples, nada além de réplicas dos portos lacustres de outrora, mas ambos cercados de atrativos terrestres como passarelas, quiosques, arborização.
Embora baratas, são obras que só serão realizadas após o deslanche do sistema de saneamento básico. Com as duas lagoas limpas, sem mau cheiro, acredita-se que possa renascer aqui a navegação, não de cargas, mas de passeio, voltada para o lazer.
Na Lagoa do Peixoto, cujas margens são parcialmente ocupadas por condomínios residenciais e sítios de lazer, recentemente beneficiados com o asfaltamento da antiga estrada de terra, já está em construção um restaurante e um conjunto de quiosques para atender a veranistas que ao mar preferem a proximidade da água doce.
Ali está prevista a construção de um ponto de apoio náutico para esportistas da região.
No final de novembro de 2010, esse ponto turístico foi mostrado pelo prefeito de Osório a um grupo de investidores interessados no desenvolvimento de uma marina no litoral norte. “Levei os visitantes a outros pontos aqui nas águas de Osório”, diz Bolzan, “mas no final do dia concluí que eles encontrariam terreno mais favorável em Capão da Canoa, onde estão surgindo condomínios de gente possivelmente interessada em navegar em águas interiores”.
A última marina a ficar pronta em Osório será a da Lagoa do Marcelino, praticamente engolfada pela expansão do núcleo urbano da cidade, com seus 30 mil habitantes.
Vinte anos atrás, na primeira gestão de Romildo Bolzan Jr., a Marcelino foi escolhida para a construção de uma ETE capaz de tratar 30% dos esgotos da cidade. Ou, seja, a pequena estação a céu aberto construída no final da rua Barão do Triunfo, no bairro Caiu do Céu, recebia os despejos de todo o centro da cidade. Após o tratamento, os efluentes eram jogados na lagoa.
Com o tempo, a ETE caiu no descuido e a cidade cresceu. Há cinco anos, em vez de recuperar a pequena ETE e implantar soluções semelhantes em outras áreas expandidas da cidade, a prefeitura optou pelo megasistema único de saneamento centralizado na ETE da Lagoa dos Barros.
Desde que o novo sistema funcione, a Lagoa do Marcelino vai deixar de receber esgoto e suas margens se tornarão um bom lugar para caminhadas, como projetou a prefeitura.
Por extensão, o mesmo acontecerá com a anexa Lagoa do Peixoto, cujas águas fétidas foram abandonadas pelos praticantes de wind surf. Os pioneiros desse esporte mudaram-se para a Lagoa dos Barros, onde há duas escolas de wind e kite surf.

Um seqüestro disputa o Açorianos

Geraldo Hasse, especial para o JÁ
Está completando um ano de boa carreira comercial e grande sucesso de crítica o livro de Luiz Cláudio Cunha sobre o fracassado sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Diaz praticado em novembro de 1978 em Porto Alegre por militares uruguaios e policiais brasileiros mancomunados num lance clandestino, da Operação Condor, conchavo terrorista das ditaduras do Cone Sul.
Lançado na Feira do Livro de Porto Alegre em novembro de 2008, O Sequestro dos Uruguaios vendeu 2524 exemplares até 1 de dezembro de 2009, segundo Ivan Pinheiro Machado, sócio-diretor da L&PM, a maior editora do Sul, que nos últimos anos se especializou na edição e venda de livros de bolso (pocket books).
“Pessoalmente achei que venderia mais, até pela grande qualidade do livro”, afirma Pinheiro Machado, “mas estes assuntos do tempo da ditadura estão cada vez mais distantes dos jovens de hoje, mesmo porque são fatos ocorridos há 30 anos”. Segundo Pinheiro Machado, o mercado brasileiro não segue o padrão dos EUA e da Europa, onde os prêmios alavancam as vendas de livros.
Denso e brilhante, o livro ganhou dois prêmios (Herzog e Jabuti) e é finalista de mais um – o Açorianos, com premiação prevista para esta segunda, 14 de dezembro. Apesar do inegável sucesso de critica, O Sequestro não se manteve nas vitrines das livrarias, disputadas por mais de dois mil títulos novos a cada mês. De qualquer forma, a marcha das vendas indica que o livro poderá ter em 2010 uma terceira edição de dois mil exemplares. É bastante para um livrão de 460 páginas sobre um assunto pesado, mas pouco para a qualidade da obra.
Segundo livro de Cunha em 40 anos de jornalismo – ele começou em 1969 como repórter da Folha de Londrina e publicou em 1985 Assim Morreu Tancredo, baseado no testemunho do jornalista Antonio Britto –, O Sequestro poderia ser um relato enfadonho nas mãos de outro redator. Nas unhas de Cunha, virou quase um romance. Como um carcará do jornalismo, ele pega-e-mostra algumas das cobras mais venenosas das ditaduras militares sulamericanas. Com informações precisas e metáforas preciosas, mergulha nos porões e “oficinas” dos países onde trabalharam os artífices do terror paramilitar.
Se tivesse ficado apenas no caso que testemunhou em Porto Alegre como repórter da revista Veja, em 1978, já seria um bom serviço, mas ele vai muito além do caso Lilian Celiberti.
Rico em detalhes sobre os métodos de interrogatório policial-militar, aponta quem estava por trás, como mentor e instrutor da tortura de prisioneiros. O pau-de-arara pode ser um invento brasileiro, mas a maquininha de choque elétrico tinha o patrocínio dos americanos da CIA.
Além de dissecar a lógica militar que determinou a montagem do monstruoso esquema de extermínio de adversários e dissidentes políticos, o livro desvenda os mecanismos políticos por trás das operações policiais-militares contra inimigos dos regimes ditatoriais sulamericanos.
Também apresenta e descreve os principais agentes desse processo. Uma das personagens centrais é Carlos Alberto Brilhante Ustra, unanimemente apontado como um mestre da tortura na Rua Tutóia em São Paulo.
Em Porto Alegre destacou-se o delegado Pedro Seelig, peça-chave no sequestro de Lilian e Universindo. Constam dos textos os nomes de diversos operadores dos serviços condenados pela Convenção Internacional dos Direitos Humanos.
Além dos atores centrais, o livro expõe o comportamento de coadjuvantes civis como os governadores gaúchos Synval Guazelli e Amaral de Souza, a quem o patrão da imprensa Breno Caldas (Correio do Povo) atribuía uma deficiência de um palmo e meio na estatura física e moral.
Não há como negar: Cunha aproveita a oportunidade para retocar o perfil de algumas autoridades que no passado posaram como democratas e, no fundo, eram capachos dos ditadores de plantão.
Quem diria que o simpático Guazelli foi o autor secreto da Lei Falcão, o sistema de propaganda eleitoral criado pelo general-presidente Geisel?
Tempos sombrios
Nesse ajuste de contas, o jornalista vinga também a imprensa humilhada por anos de arrogância e mentira. Predominam os perfis de alguns dos maiores canalhas da moderna história política do continente, mas aparecem também alguns mocinhos como o advogado Omar Ferri e o ativista civil Jair Krischke.
Com mais de 1 milhão de caracteres (o que daria uns seis pocket books), O Sequestro tira de letra o risco de ser prolixo. Não há trechos obscuros. Tampouco excessos ou lacunas. É claro e denso como deveriam ser todos os textos jornalísticos. Não lhe faltam frieza, distanciamento ou imparcialidade mas, sem dúvida, é um livro tocado de ponta a ponta pela paixão de narrar com precisão.
Além de objetividade, sua maior qualidade é a contextualização histórica. Graças à qualidade da matéria-prima e aos bons temperos usados, muitos trechos configuram ricas crônicas dos (maus) costumes daqueles tempos sombrios.
A maior parte focaliza acontecimentos ocorridos no Brasil, mas o autor reuniu tanto material que compôs um painel das safadezas antidemocráticas praticadas também no Uruguai, na Argentina e no Chile.
O relato do sequestro em si termina na página 338, mas Cunha acrescenta dois anexos terríveis. No primeiro, que daria um substancioso pocket book, ele enche 40 páginas sobre o Uruguai antes e depois da ditadura. No outro, o leitor tem um extra de 70 páginas sobre as raízes, motivações e práticas da Operação Condor, que alguns jornalistas e historiadores ainda acreditam que não existiu. Cunha demonstra que o bicho não só voou como pegou muita gente.
Foi liderada pelo coronel chileno Manuel Contreras, chefe da DINA (o serviço secreto da ditadura de Pinochet), que se articulava informalmente com os serviços secretos dos países vizinhos – o Brasil ajudava, mas tomando cuidado para não sujar as mãos com o sangue das milhares de vítimas de tantas operações. Extraoficialmente, porém, havia muitos brasileiros envolvidos na sujeira até o pescoço.
Assim, a pretexto de recontar uma história da qual foi protagonista involuntário trinta anos antes, o jornalista nascido em 1951 em Caxias do Sul faz um balanço das maldades praticadas por militares e civis à sombras das ditaduras de direita que assombraram a América Latina por vários anos na segunda metade do século XX.
Seu livro é uma referência, um documento básico que merece ocupar um lugar de honra nas estantes de professores, estudantes, donas de casa e pais de família, engajados politicamente ou não. Um livro que não pode faltar nas bibliotecas universitárias e de escolas secundárias, nos sindicatos e nas sacristias, nas repartições públicas e militares.
Em especial, não pode faltar nas estantes das escolas de jornalismo e nas redações em geral. Perfeita lição de jornalismo, história e literatura, O Sequestro tem conteúdo e dá gosto ler.
Paradoxalmente, é um livro corajoso que começa com uma confissão de medo. Cunha e o fotógrafo JB Scalco tremiam dentro do carro depois de serem calçados a pistola no apartamento de Lilian Celiberti, na rua Botafogo, em Porto Alegre, onde tudo começou, numa tarde chuvisquenta de novembro de 1978.
Parece distante no tempo – foi de fato no fim da ditadura militar –, mas em termos históricos esses 30 anos decorridos de lá para cá são um pequeno fragmento na marcha da civilização.
Uma edição espanhola está sendo negociada com uma editora de Buenos Aires. Em seguida virá a edição em inglês. Vertido em outras línguas, é provável que o livro ganhe mais alguns prêmios, abrindo caminho para uma versão cinematográfica dessa história de espionagem e terror, que expõe pela primeira vez detalhes ignorados por diversos livros sobre as ditaduras conectadas antes do Mercosul.
Se vier o filme, ele bem que poderia começar com uma cena ocorrida numa tarde de novembro de 2008 na Feira do Livro do Porto Alegre. A fila de autógrafos do livro O Sequestro dos Uruguaios fazia a volta na lateral do prédio do Memorial do Rio Grande do Sul.
De repente, destoando do clima de desconcentração do ambiente (ali se festejava mais uma vez o fim da ditadura militar), uma senhora colocou gravemente diante do autor Luiz Cláudio Cunha um exemplar em que se destacava, numa folheta de cartolina, o nome da pessoa a quem devia ser feita a dedicatória: In Memorian de Didi Pedalada.
Cunha se levantou para ficar à altura da futura leitora.
– Por que o senhor escreveu isso? – perguntou a mulher.
– Quem é a senhora? – quis saber o jornalista.
– Eu sou a viúva do Didi Pedalada…
– Escrevi para mostrar que esse e outros episódios do tempo do Didi Pedalada foram praticados com a cobertura de muitos governantes.
– Mas tinha que colocar no livro o nosso endereço?
– Não me diga que a senhora mora no mesmo lugar?!
– Sim, aquela casa era a única coisa que tínhamos.
Tenso mas aliviado ao ver que se tratava mais de um desabafo do que de uma cobrança, Cunha sentou-se e escreveu a dedicatória possível aos descendentes do ex-jogador de futebol Didi Pedalada, um dos participantes do sequestro de Lilian Celiberti em novembro de 1978, em Porto Alegre. Na frase, lembrou que muitos agentes da história não sabiam o que estavam fazendo, apenas cumpriam ordens.
Enxugando as lágrimas, a viúva pegou o livro e retirou-se. A fila voltou a andar.

Brasil ignora perigos de agrotóxicos proibidos na Europa por mortandade de abelhas

Mariano Senna da Costa | Ambiente JÁ
Colaborou Carlos Matsubara
A guerra não declarada entre apicultores e gigantes dos agrotóxicos na Europa teve mais um round semana passada. Na quinta-feira (18/09), o Ministério da Saúde da Itália suspendeu a licença de quatro substâncias (Clotianidina, Imidaclopride, Tiametoxam e Fipronil) presentes em inseticidas para plantações de milho, colza e girassol. Elas são apontadas pela Federação Italiana de Apicultura como responsáveis pela morte em massa de abelhas verificada no início do ano.
As três primeiras pertencem ao mesmo grupo químico. O dos neonicotinóides, originados da molécula de nicotina. Foram desenvolvidos na década de 70 e considerados uma revolução, pois são biodegradáveis e menos tóxicos que outros para indicações similares. Entre agricultores, se apresentam mais notoriamente como os inseticidas “Poncho”, “Gaucho” e “Adante”.
Já Fipronil é o princípio ativo de uma vasta gama de pesticidas usados contra formigas, cupins, pulgas e até baratas. Comercialmente é encontrado com o nome “Regent”, “Termidor”, “MaxForce”, ou “Frontline”, entre outros.
Os quatro têm grande importância para três dos maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo, BASF (Fipronil), Syngenta (Tametoxam) e Bayer (Clotianidina e Imidaclopride). As empresas não informam o faturamento por produto, mas sabe-se que só o Gaucho, feito à base de Imidacloripride, é vendido em 120 países, rendendo 600 milhões de Euros/ano para a Bayer CropScience, braço agroquímico da holding. Mas o aspecto econômico parece não fazer parte do conjunto de fatos, contradições e omissões que justificaram a decisão das autoridades italianas.
Incidentes
Não se trata de novidade. Em maio, o Poncho, também da Bayer CropScience, mas tendo Clotianidina como princípio ativo, provocou o colapso de mais de 11 mil colméias em pelo menos dois estados no Sul da Alemanha, sendo “suspenso” imediatamente pelo governo. A fabricante bota a culpa nos agricultores, alegando “erro na aplicação”.
Por ser um inseticida de “ação lenta”, a Clotianidina tem um efeito nefasto sobre as comunidades de insetos. As abelhas, por exemplo, não morrem de imediato ao entrarem em contato com a substância. Os indivíduos intoxicados conseguem, na maioria das vezes, retornar à colméia. Assim contaminam todo o grupo, causando o colapso das comunidades.
Mesmo assim, pressionado pelo agrobusiness, e sob ameaça de perda da safra, o governo alemão reautorizou, em agosto, o inseticida para a lavoura de colza. “Colocaremos avisos no produto com instruções claras para aplicação. Ao mesmo tempo faremos experimentos técnicos para garantir a segurança e efetividade do produto”, declara Dr. Hermann-Josef Baaken, “cabeça” de política corporativa e relações com a mídia (Head of Corporate Policy & Media Relations) da Bayer CropScience. Com esse argumento a empresa espera reautorizar o uso do Poncho para plantações de milho alemãs ainda no mês de outubro.
Dr. Baaken não nega que as abelhas tenham morrido por entrar em contato com o produto, mas insiste na tese do “incidente”. “Na cultura de milho o Poncho é indicado para tratamento de sementes, sem contato direto com o meio ambiente, como em pulverizações. É a primeira vez que isso acontece”, garante. O Poncho passou a ser usado no ano passado pelos subsidiados plantadores de milho, que há décadas não fazem rotação de culturas.
No início de setembro a Bayer CropScience lançou um comunicado oficial reafirmando a segurança da Clotianidina. “Todos os estudos de laboratório e em ambientes fechados confirmam claramente que a Clotianidina é segura para abelhas e pássaros quando usada para o tratamento de sementes”, traz o comunicado.
O texto ainda explica que no incidente na Alemanha “as sementes foram tratadas incorretamente”, permitindo que “partículas de poeira contendo o ingrediente ativo chegassem ao ambiente”. Além disso, o problema “apenas aconteceu porque o tempo extremamente seco, os ventos fortes e o tipo de equipamento utilizado pelos agricultores possibilitaram a contaminação”.
Contradições
O press release da Bayer esquece de mencionar que a Clotianidina não é usada apenas para tratamento de sementes. No Brasil, por exemplo, ela é a base do Zellus SC, um inseticida da Sumitomo Chemical, que compartilha a patente do princípio ativo com a Bayer. Indicado para combater o pulgão-do-algodoeiro, ele é pulverizado nas folhas dessa cultura. E o Zellus SC não é exceção. Segundo o Sistema de Agrotóxicos Fitossanitários (Agrofit) do Ministério da Agricultura há outros com a mesma forma de aplicação em diferentes plantações.
Numa perspectiva mais abrangente, o fato é que acidentes, ou erros, com as quatro substâncias acontecem há muito mais tempo. Mesmo nos países com os melhores sistemas de controle sanitário do mundo. No início de 2004, o Gaucho, irmão mais velho do Poncho, e o Regent (Fipronil) da BASF foram proibidos na França acusados de causar uma queda de 60% na produção de mel. Os dois continuam proibidos lá, mas parece que quase ninguém lembra disso.
Em nível mundial, há anos estudos demonstram que há redução na população de abelhas em todo o mundo, e os poucos cientistas debruçados sobre o problema afirmam que ele está associado à agricultura industrial, especificamente ao uso intensivo de agrotóxicos.
Segurança ambiental
A “Coalizão contra os Perigos da Bayer” (CBG), uma rede de ativistas que há 30 anos monitora os “acidentes” envolvendo a empresa, está entre as que não esquecem, e não deixam esquecer. “O fenômeno também está acontecendo nos Estados Unidos, onde a Bayer luta para manter no mercado um dos seus principais produtos”, afirma Philipp Mimkes, da CBG na Alemanha.
Ele se indigna ao ser confrontado com a explicação da companhia para o problema, como que obrigado a dizer o óbvio: inseticidas matam insetos. “Você sempre tem resíduos de agrotóxicos nas áreas em que eles foram usados. Para esse grupo específico, há estudos mostrando que após quatro ou cinco anos eles ainda estão presentes. Não há como garantir a segurança ambiental do uso desses venenos”, completa Mimkes.
A CBG, inclusive, está processando o presidente da Bayer AG, Werner Wenning, por abuso do poder econômico e negligência. “Para liberar esses agrotóxicos a empresa apresentou estudos atribuindo baixa toxidade para abelhas, e mesmo depois de comprovado o contrário, continua utilizando seu poder para evitar sua proibição”, acusa o advogado da ONG, Harro Schultze. A Bayer AG é um gigante químico e farmacêutico mundial. Possui 106 mil funcionários nos cinco continentes, e com um capital de 42 bilhões de Euros.
Após a morte das abelhas em áreas próximas a plantações de milho, o Instituto Julius-Kühn, uma espécie de Embrapa da Alemanha, analisou as evidências e confirmou que a causa da morte das abelhas foi a Clotianidina encontrada no Poncho.
Desinformação
No Brasil, onde a Bayer CropScience é líder no mercado de inseticidas (44%), a mortandade de abelhas intriga mais pelo silêncio do que pelo barulho causado. “Não há motivos para alarmar os produtores brasileiros, pois o que ocorreu na Alemanha não está relacionado ao produto e sim a uma série de fatores”, responde a coordenação de comunicação da Bayer CropScience em São Paulo.
A posição das autoridades ambientais brasileiras parece corroborar com a versão da empresa. “Não temos nenhuma denúncia sobre mortandade de abelhas relacionadas a esses produtos”, informa a engenheira agrônoma Marisa Zerbetto, da Coordenação Geral de Avaliação e Controle de Substâncias Químicas do Ibama.
Ela explica que as denúncias, assim como a verificação dos casos, são responsabilidade das superintendências estaduais do órgão. E esse detalhe ajuda a explicar a ficha limpa dos inseticidas em solo tupiniquim.
Ainda nos primeiros dias de setembro mais uma mortandade de abelhas foi registrada no Norte do Rio Grande do Sul. Também não foi a primeira vez. Como em ocasiões anteriores, o uso de formicida era o principal suspeito de causar o problema.
A Emater/RS, que atendeu a emergência, informou não poder assegurar o motivo da morte das abelhas. A instituição não dispõe de equipamentos e técnicos para esse tipo de análise. Sem falar, que pela lei, esse papel é da superintendência regional do Ibama.
Mas se depender da estrutura do Ibama no RS esse tipo de incidente jamais será esclarecido. “Em algumas regiões, como na fronteira Oeste, temos apenas um biólogo para atender a todos os tipos de denúncia. Sem falar, que para casos envolvendo agrotóxicos as análises devem ser feitas em Brasília, sendo necessária, muitas vezes, a vinda de um técnico de lá”, justifica um funcionário da superintendência gaúcha.
Omissão
Em paralelo à precária estrutura, faltam informações sobre os perigos desses químicos para insetos benéficos e pássaros. São produtos usados em uma vasta gama de plantações, e com diversas formas de aplicação. A Imidacloripride, por exemplo, é indicada no site do Ministério da Agricultura para:
– Tratamento de sementes – plantações de algodão, amendoim, arroz, aveia, cevada, feijão, milho, soja e trigo.
– Pulverização foliar – plantações de abacaxi, abóbora, abobrinha, alface, algodão, alho, almeirão, batata, berinjela, brócolis, cebola, chicória, citros, couve, couve-flor, crisântemo, feijão, fumo, gérbera, jiló, melancia, melão, pepino, pimentão, poinsétia, repolho, soja e tomate.
– Tratamento do solo – plantações de cana-de-açúcar, café, fumo e uva.
– Aplicação no tronco de citros.
– Aplicação no controle de cupins, conforme aprovação em rótulo e bula.
Só alguns inseticidas feitos a partir da Imidacloripride, Clotianidina, Tiametoxam ou Fipronil trazem advertências sobre a toxidade para abelhas. No Agrofit uma das exceções é o Adante, feito à base de Tiametoxam.
“Este produto é ALTAMENTE TÓXICO para abelhas, podendo atingir outros insetos benéficos. Não aplique o produto no período de maior visitação das abelhas”, traz o campo “precauções de uso” do produto na página do Agrofit.
Ele é produzido e comercializado pela Syngenta, sendo uma das armas contra inimigos mortais das plantações de Soja, tais como a ferrugem asiática e a mosca branca.
De maneira geral, as quatro substâncias compartilham um receituário padrão. Indicações, precauções, advertências, acidentes e embalagens, além dos alertas de praxe. Coisa do tipo: “Preserve a Natureza.
Não utilize equipamento com vazamento. Não aplique o produto na presença de ventos fortes ou nas horas mais quentes”. Curiosamente, nenhuma das variantes do Gaucho, do Poncho, ou do Regent presentes no Agrofit trazem advertências sobre a toxidade para abelhas.
Links
– Sobre os efeitos da Clotianidina / Poncho (em inglês)
– Alemanha suspende autorização de agrotóxicos acusados de matarem abelhas (em alemão)
– Clotianidina é altamente tóxica para abelhas e polinizadores (em inglês)
– Corelações entre a morte de abelhas nos EUA e na Alemanha (em inglês)
– Presidente da Bayer é processado pela morte de abelhas (em inglês).

Eucalipto dá mel, mas não nutre as abelhas

Geraldo Hasse, especial para o JÁ
Questionado no programa Em Pauta*, da TV Câmara de Porto Alegre, sobre o impacto dos novos e grandes plantios de eucaliptos na Metade Sul, o agrônomo Aroni Sattler, professor da Faculdade de Agronomia e Veterinária da UFRGS e presidente da Federação Apícola do RS, disse que os apicultores terão provavelmente mais pasto para suas abelhas, mas que nem toda flor é boa para a apicultura.
Segundo Sattler, os eucaliptos são ricos em néctar (matéria-prima do mel) mas seu pólen (alimento das abelhas) não fornece uma proteína essencial para as abelhas: a isoleucina. Em conseqüência, tem ocorrido algo estranho com apicultores que transferem suas colméias para densos eucaliptais na época da florada destas árvores: no final da temporada as caixas estão cheias de mel mas, por falta de isoleucina, a população de abelhas aparece bastante reduzida.
Para evitar que as abelhas fiquem dependentes de uma única variedade vegetal, Sattler recomenda que os apicultores não instalem suas colméias em espaços dominados por monoculturas. Se o apicultor optar por deixar suas colméias perto de uma grande plantação, é melhor que o faça na periferia da lavoura, de forma que as abelhas tenham alternativa de escolha. E que fique atento às pulverizações venenosas.
Para evitar o morticínio por agrotóxicos, o melhor é reter as abelhas nas caixas por dois dias. Embora sejam sábias, as abelhas ainda não aprenderam a se defender das contaminações causadas pelo homem. Parte essencial do manejo dos apiários, a seleção de espaços com boa variedade de pastos tem sido uma das tarefas mais complicadas para os apicultores modernos.
Com a expansão dos aglomerados urbanos, das estradas, do tráfego e das grandes lavouras conduzidas à base de venenos agrícolas, a localização de bons pontos para as colméias tornou-se uma dor-de-cabeça. Em muitos casos, é melhor o apicultor optar por uma base que lhe dê segurança e tranqüilidade, mesmo que para isso tenha de oferecer um complemento alimentar para seu rebanho.
Em seu longo (40 minutos) depoimento à TV Câmara, Sattler deixou claro que ainda não foi encontrada a causa da exagerada mortandade das abelhas melíferas nos Estados Unidos e na Europa. O problema foi detectado inicialmente no estado americano da Florida em novembro de 2006.
Nos EUA, nove universidades fizeram um pool para estudar o fenômeno denominado “síndrome do abandono das colméias” — as abelhas saem para buscar néctar e não voltam, o que em muitos casos ocasiona a morte da colméia e pode levar à falência do apicultor.
Queda na produção
O que mais preocupa os norte-americanos não é a queda na produção de mel, mas os prejuízos na polinização de frutas e legumes. Uma estimativa publicada em março pelo NY Times afirmou que chegaria a 14 bilhões de dólares a produção agrícola norte-americana dependente da polinização da Apis melifera. É uma estimativa modesta, avalia o professor Sattler. Segundo ele, 70% dos vegetais precisam dos insetos para se reproduzir.
A interdependência entre vegetais e animais fez o próprio Sattler lembrar uma frase de Nostradamus, segundo o qual o desaparecimento das abelhas deve ser tomado como sinal do fim do mundo. Sattler não tem dados sobre a extensão do fenômeno da mortandade das abelhas no território brasileiro, que abrange várias províncias apícolas, com clima e vegetação muito diferentes. Sabe-se que as universidades de Campinas e de Viçosa estão fazendo um estudo conjunto.
No Rio Grande do Sul, que lidera a produção nacional de mel e tem um inverno muito rigoroso, relatos colhidos junto a apicultores avulsos indicam perdas severas — muito acima da mortalidade natural de 10% a 15% das populações de abelhas – durante a última temporada de frio e chuva.
Houve apiários que perderam 30% a 40% de seu rebanho, mas faltam informações mais abrangentes e concretas. Em outras províncias, como o sul do Piauí, que se tornou grande produtor de mel a partir dos anos 1990, não há registro do mal. Lá o inverno é ameno.
A morte das abelhas no campo, longe da colméia, representa a maior dificuldade para os interessados em pesquisar a anomalia. Para evitar confusão, Sattler lembra que as abelhas são naturalmente vulneráveis a ataques de ácaros, protozoários, bactérias e vírus. Elas também podem morrer de fome.
E são alvo de pássaros. Fora disso, concorrem para sua mortalidade diversas causas externas. Entre outras, fala-se até da radiação das torres de telefonia celular. Mas indiscutivelmente, até agora, a principal causa externa da morte das abelhas são os venenos agrícolas.
Em seu depoimento à TV Câmara, Sattler disse que os monocultivos (principalmente os preparados pelo sistema de plantio direto, que implica no uso de herbicidas dessecantes) e os agrotóxicos estão reduzindo a biodiversidade e contribuindo para exterminar as abelhas. Sobre os vegetais transgênicos (cujo pólen seria responsável pela “desorientação” das abelhas, segundo alguns pesquisadores), ele disse que ainda não há estudos ou conclusões.
* Vai ao ar às terças e quintas às 20 h

Cooperativas agrícolas de Osório: mortas pelo empreendedorismo

Geraldo Hasse, especial para o JÁ
Embora já não tenha o mesmo sortimento de épocas mais prósperas, o Armazém Santo Antônio continua sendo um dos grandes pontos de encontro da velha guarda de Osório. Aposentada ou não, uma maioria de veteranos se acostumou a buscar aqui a mais tradicional parceria dos subúrbios brasileiros — pinga boa e conversa fiada – em que tantos apostam simplesmente para passar o tempo ou com a esperança de ganhar alguma coisa mediante prestação de serviço ou troca de favor.
Sempre nas mãos do mesmo dono, o armazém começou aqui há 40 anos, quando Adolfo Coelho largou o emprego de chefe da sacaria da Cooperativa Rizícola Osoriense e se estabeleceu em frente, na esquina da rua Firmiano Osório com a RS-30, a rodovia que liga Tramandaí a Santo Antônio da Patrulha, sua terra natal. O trânsito é naturalmente mais intenso do que há quatro décadas, mas o panorama não mudou muito nessa banda (oeste) da cidade. Os galpões da extinta cooperativa continuam a dominar a paisagem, mas há muito tempo têm novos donos e usos diversos.
Nascido em 1941, Coelho conhece esse ponto desde criança, quando passava por aqui para vender verduras aos veranistas de Tramandaí, como faziam tantos sitiantes das várzeas litorâneas e das encostas e vales da Serra Geral. Ia de carroça com o pai chacareiro em Santo Antônio da Patrulha. Foi assim por alguns anos — até se convencer, já rapazote, de que não há futuro para empreendimentos em que um dos sócios gosta mais de beber do que de trabalhar.
Assim que se sentiu maduro para aventurar-se sozinho no mundo do trabalho, separou-se do pai e virou trabalhador volante da agricultura. Uma de suas costumeiras maratonas era cortar arroz a foice nas várzeas de Capivari e Palmares do Sul, no extremo norte da Lagoa dos Patos.
Na primeira vez em que se deslocou para esses distantes distritos de Osório — hoje municípios –, viajou de carona por um caminho de terra que passava por Viamão, nos arredores da capital, pois não havia rodovia que prestasse entre as comunidades do litoral norte. Só depois da primeira safra aprendeu que desde 1921 havia um trem diário ligando Palmares do Sul a Osório. Naquele momento, porém — no início do governo de Leonel Brizola (1959-1963) — a ferrovia já estava desativada. O governo JK (1956-1961) apostava tudo nas rodovias, abrindo caminho para a produção da emergente indústria automobilística.
Foi nesse momento que Coelho se deu conta de quanto a economia da região, baseada no cultivo do arroz e na criação de gado, carecia de meios eficientes de transporte. Assim nasceu seu sonho de juntar dinheiro suficiente para comprar um caminhão e viver de fretes encomendados por arrozeiros e pecuaristas.
Ele demorou a realizar o projeto, mas conseguiu. Foi uma vitória conquistada aos poucos, degrau por degrau. Seu Coelho apóia o cotovelo no balcão, põe o queixo dentro da palma da mão e começa a recordar.
Foi no dia 1º de maio de 1961, depois de fazer muitos biscates nos bastidores da economia do litoral norte, que arranjou emprego no engenho da cooperativa de arroz, um dos maiores empreendimentos de Osório, na época. Mais de 50 pessoas tocavam o secador e o descascador da cooperativa. Fundada em fevereiro de 1960, a empresa cooperativista chegou a ter 324 sócios. Numa daquelas safras memoráveis, recebeu 320 mil sacas de arroz, sendo obrigada a estocar o produto em armazéns alheios, como os depósitos vazios da ferrovia Palmares-Osório. Até no aeroporto se guardou arroz, lembra um ex-sócio da CRO.
Em 1966, apoiado pela esposa osoriense, Coelho largou o emprego e abriu o armazém. Por um motivo ou outro muita gente procurava o Armazém Santo Antônio: ou para fazer compra de secos e molhados, ou para tomar uma boa pinga dos velhos alambiques litorâneos, ou tão somente para encontrar os conhecidos e trocar informações sobre oportunidades de negócios.
Na década de 1970, depois da inauguração da pista dupla da BR-290, a famosa Free Way, que reduziu sensivelmente o tempo de viagem da capital para as praias, Coelho comprou uma camioneta Ford F-100 para entrega de mantimentos aos fregueses do armazém. Depois comprou um caminhão e começou a puxar arroz para os conhecidos da Rizícola, que já começava a sofrer a concorrência de diversos engenhos privados, todos instalados aqui por perto, na antiga Estrada da Perua.
Essa época foi marcada especialmente pela expansão da Cerealista Osoriense, que operava na beira da RS-30, junto ao trevo de ligação com a Free Way. Os veranistas de fim-de-semana, que anteriormente paravam no centro de Osório para comprar pão, pé-de-moleque, roscas de polvilho, linguiça e queijo colonial, começaram a passar direto. O comércio da cidade ainda era dominado pela tradicional Casa Ramos, que ocupava um quarteirão central e vendia de tudo, mas não há dúvida de que a Free Way, complementada pela BR-101, intensificou a tradicional característica osoriense como ponto de passagem. Permaneceu porém a antiga identidade agrícola da cidade.
Quando não era tempo de colheita de arroz, Adolfo Coelho pegava uns fretes vadios nos arredores. No inverno chegou a carregar cana para a usina da Agasa (Açúcar Gaúcho S.A.), fundada no início dos anos 60 às margens da Lagoa dos Barros, em terras de Santo Antônio da Patrulha. Fora daí, estava sempre no balcão do armazém. Por isso tem na memória muitos episódios ligados à cooperativa instalada do outro lado da rua. Como aquela vez em que o capataz da cooperativa, Adalberto de Tal, vulgo Beto, atravessou a rodovia, apressado. Estranho aquilo, sair do trabalho, naquela hora, duas e meia da tarde.
Pouco depois veio a notícia
O capataz, homem esquentado, tinha feito uma bobagem: matou com uma única facada no coração o gerente Rudi Garske. Atarantado, Beto teria ido pra casa tomar um banho antes de se entregar à polícia. Diante do filho caçula, perdeu o rumo, pegou o revólver e deu um tiro no próprio ouvido.
Muitos freqüentadores do Armazém Santo Antônio ainda se lembram desse episódio, uma das maiores tragédias da história de Osório. Até parece que era sina do cooperativismo osoriense atrair esse tipo de crime. Muitos anos depois da dupla tragédia da Rizícola, outro assassinato marcou o encerramento das atividades da Cooperativa de Carnes do Litoral, a outra que também tinha sede em Osório.
As duas cooperativas tinham sócios em comum e chegaram a misturar-se (a Rizícola incorporou ativos da Coocarnes, bem mais antiga), mas não resistiram ao progresso, marcado pelo empreendedorismo individual. Antigos moradores de Osório contam que alguns cabeças da Coocarnes colocavam seus bois gordos diretamente em açougues do litoral, enquanto cobravam de outros associados a entrega da produção no abatedouro da cooperativa.
Desse jeito, não houve como impedir que a vaca fosse para o brejo, junto com boa parte do sistema cooperativista gaúcho, atingido em cheio pela crise do balanço de pagamentos do Brasil, em 1982. Para não fechar, a Coocarnes arrendou suas instalações a um aventureiro vindo de outro estado sulino. Não demorou, o arrendatário foi morto a tiro por capangas de um fazendeiro descontente com o não pagamento de uma boiada. Acabou assim a cooperativa dos produtores de carne do litoral norte. O que resta do cooperativismo de produção em Osório é uma usina da Corlac que manipula leite bovino.
A Rizícola prolongou sua agonia até 1996, quando foi liquidada. Na média histórica, ela recebia, secava, descascava e ensacava 10 milhões de quilos de arroz por ano. A maior parte dessa produção era vendida para o Rio e São Paulo, onde a marca Albatroz tinha freguesia certa.
O movimento da cooperativa arrozeira começou a cair depois que muitos agricultores financiados pelo Banco do Brasil passaram a instalar armazéns e secadores em suas próprias terras. Sem mais precisar da cooperativa, os sócios foram se desligando. No final, restavam apenas 40. A dívida da CRO com o BB recaiu nas costas de nove sócios, que ficaram conhecidos na cidade como “O Grupo dos Nove”.
Alguns deles lutam até hoje na Justiça para não pagar a conta. Outros fizeram acordo para quitar sua dívida em vinte anos. É o caso do último presidente Rodolfo Israel Scholl. No frigir dos ovos, restou-lhe um saldo devedor de R$ 84 mil, já parcialmente amortizado. Aos que pensam que o fardo lhe seja leve, ele afirma que vem pagando “uns 11 mil reais por ano”.
Aos 65 anos, aposentado em tempo integral, Scholl já se livrou das atividades agrícolas, transferidas para o filho. Suas principais ocupações são as reuniões do centro espírita durante a semana e os jogos aos sábados do Milionários Futebol Clube, time que fundou quando era moço.
Os prédios da CRO foram leiloados e estão alugados. Um abriga a Serralheria Kassner, o outro hospeda a Oficina Mecânica Entusiasta, especializada em jipes – uma das curtições osorienses.
Nos fundos, um antigo galpão virou cancha de esportes. Na fachada dos dois galpões da frente, sob a tinta das pinturas mais recentes, ainda se pode ver, bem apagado, o emblema da Cooperativa Rizícola, marco inicial ou final da carreira de muita gente e tema recorrente das conversas dos botecos da vizinhança.
No Armazém Santo Antônio, o expediente nunca termina antes das nove da noite. Assunto não falta: as safras, as chuvas, a seca, o frio, a temporada de verão, o valor dos fretes de caminhão…Hoje com três caminhões, dois deles dirigidos pelos filhos, Adolfo Coelho não enjeita serviço, mesmo consciente de que os fretes nunca estiveram tão por baixo, com tanto caminhão vazio rodando de um lado para outro.
Quem tem paciência para ouvir conversa fiada encontra aqui farto material para documentar a evolução da cultura popular brasileira. Um dos assuntos emergentes é a força do vento, principalmente depois da grande plantação de cata-ventos feita por espanhóis e alemães, especialistas na produção de uma tal energia heliótica, como dizem alguns cidadãos de Osório. Ou será energia heliétrica?
Sim, por aqui há quem acredite que a energia eólica começa com a letra H. Não é só por efeito da pinga. O pessoal gosta também de cerveja, futebol e música. São famosos na vizinhança os churrascos promovidos pela AABA — Associação dos Amigos do Bar do Adolfo. Quem duvida, veja as fotos expostas no mural, ao lado de bandeiras e posters do Inter e do Grêmio, numa das paredes internas do Armazém Santo Antônio. Embora seja colorado, Adolfo não discrimina os gremistas.

Filme de Tabajara Ruas mostra Negrinho do Pastoreio como ginete do general Netto

O escritor-cineasta Tabajara Ruas começa dia 1º de novembro no Taim as filmagens de O General e o Negrinho, ficção que junta pela primeira vez no cinema o mito do general farroupilha Antonio de Souza Netto e a lenda do Negrinho do Pastoreio, uma das mais antigas crendices populares do Rio Grande do Sul. Se o tempo ajudar, tudo será feito em 40 dias. A equipe vai se hospedar na Praia do Cassino, a 45 minutos do Taim.

O cenário principal é uma cancha reta de corridas de cavalo, paixão do general, que se criou em Povo Novo, perto do Taim. Na mesma propriedade rural pertencente à família Mota da Silveira, a produção do filme construiu também uma fortaleza militar onde serão rodadas as cenas de batalha. As cenas interiores serão rodadas por último no pátio interno do Hospital São Pedro, em Porto Alegre.

Autor do argumento, Ruas conta uma estória que se passa em 1835, antes da eclosão da Guerra dos Farrapos (1835-1845). Netto chega à tal fortaleza procurando seu amigo índio Torres e descobre que por algum motivo misterioso ele está preso. Dizem que matou um cara, mas na verdade tem rabo de saia na estória. Netto entra então em contato com um grupo de negros da região e começa uma trama para libertar o amigo. Enquanto espera o momento certo para agir, amarra umas corridas de cavalo, sua diversão predileta. E aparece o negrinho ginete.

Orçado em R$ 2,87 milhões (o mesmo valor gasto na produção de Netto Perde Sua Alma, lançado em 2001), O General e o Negrinho conseguiu captar até agora a metade desse valor, ou seja, tem o suficiente para pagar as filmagens. Tabajara Ruas espera que o restante seja captado a tempo de financiar as etapas posteriores, que englobam trabalhos de estúdio, da revelação à montagem final, inclusive a tiragem de cópias, a divulgação e a distribuição no final do primeiro semestre de 2006.

O filme mobiliza 36 atores. Netto será representado pelo veterano Werner Schunemann, que fez o mesmo general no primeiro filme de Ruas e virou galã da Globo depois de representar o general Bento Gonçalves no seriado A Casa das Sete Mulheres. Para o papel do Negrinho, foi escolhido o estreante Evandro Elias, ator de 19 anos descoberto em Porto Alegre. Está no elenco ainda Tarcísio Filho, que fez Netto n’A Casa das Sete Mulheres; agora ele será o Indio Torres.

Desde que o General e o Negrinho cruze o disco final no tempo certo, o projeto seguinte de Ruas é filmar Netto nos Braços da Moura, ficção que contempla o lado romântico da figura do general; por ser bonitão, galante e solteiro, durante a Guerra dos Farrapos  Netto foi festejado como “o mimoso dos pampas”, fama difundida em versos do cancioneiro da revolução farroupilha.

“A Mitologia é mais firme do que a História”

Nascido nos anos 40 em Uruguaiana, o arquiteto Tabajara Ruas conquistou espaço como um dos mais importantes ficcionistas do Rio Grande do Sul. Destacou-se a partir dos anos 1980 por romancear episódios da Guerra dos Farrapos. Além da novela Netto Perde Sua Alma, escreveu o romance Os Varões Assinalados. Nos dois, explora agudamente a luta de escravos que se engajaram na vã esperança de ganhar a liberdade no final. Agora, volta ao tema ao resgatar a figura do Negrinho do Pastoreio.

JÁ – A lenda do Negrinho do Pastoreio está presente na literatura, no teatro e na música, mas já tinha sido explorada antes no cinema?

Ruas – Sei que o folclorista Nico Fagundes fez um filme sobre o Negrinho do Pastoreio — com Grande Othelo no papel principal. É um filme relativamente antigo, creio que dos anos 70, mas não o vi. Mais recentemente foi feito um curta-metragem por um cineasta de Porto Alegre.

JÁ – Mas teu filme é fiel à lenda ou…

Ruas – No filme, como na lenda, o Negrinho perde uma corrida muito importante, mas ele não é escravo do General…

JÁ – Pela leitura dos teus dois livros, Netto Perde Sua Alma e Os Varões Assinalados, fica claro que foi preciso fazer uma profunda pesquisa histórica para dar base verídica à ficção. Foste um dos primeiros a explorar ficcionalmente a contradição que envolve os Lanceiros Negros.

Ruas – A controvérsia é grande e continua até hoje. Ainda há quem duvide da própria existência dos lanceiros negros. Uma coisa é certa: nenhum povo se libertou da escravidão sem lutar. Não vejo porque os negros aqui no Rio Grande do Sul deixariam de fazer isso. Na Bahia e em outros lugares do Brasil os negros fizeram revoluções sangrentas. Sem esquecer Zumbi, que criou um império dentro do Império do Brasil.

JÁ – Por que então se discute tanto sobre os Lanceiros Negros?

Ruas – Pra mim toda essa discussão é uma bobagem. Eu não estava lá pra afirmar, mas tem muita documentação mostrando que eles foram traídos. Tanto que continuaram escravos.

JÁ – Qual a fonte fundamental para chegar a essa conclusão?

Ruas – A minha fonte principal é Alfredo Varela, autor da História da Grande Revolução. São seis volumes, cada um com 800 páginas ou mais. É um amontoado de documentos. Ali está registrada a formação do corpo de lanceiros, a lista dos oficiais que chefiaram esses guerreiros. É claro que, com o passar do tempo, o aproveitamento dos lanceiros pelo exército farroupilha foi romantizado, mas o Corpo de Lanceiros de fato existiu. Aliás, no seu último livro, o historiador Moacyr Flores fala que também os imperiais tinham um corpo de lanceiros negros.

JÁ – Em Pelotas, em 1835, mais da metade da população era negra; a maioria, escravos.

Ruas – Não havia como não participar da guerra. À força ou por opção, eles entraram na luta.

JÁ – Mas tinhas um interesse específico pelos lanceiros?

Ruas – Não, meu interesse era pela revolução, mas ao estudar vi que tinha esse corpo de lanceiros negros. Na leitura desses livros cresceu meu interesse pelo General Netto. Nunca tinha caído a ficha para ninguém: foi Netto quem proclamou a república. Isso não é pouca coisa, né, tchê! Procura na História do Brasil quem proclamou uma república: é uma coisa rara.

JÁ – Que eu me lembre, só o Deodoro em 1889.

Ruas – Pois então, achei interessante a figura do Netto. Já quanto ao nosso herói oficial, Bento Gonçalves, à medida que lê, a gente se dá conta das contradições dele. Estava metido naquela empreitada, mas não era republicano. Eu não tomo partido sobre isso, mas a própria figura do Garibaldi é polêmica: até hoje existem dezenas e dezenas de associações garibaldinas que se digladiam, discutindo se Garibaldi era desse ou daquele jeito. Por isso eu prefiro a mitologia à história.

JÁ – Por que?

Ruas – A Mitologia é a síntese da verdade histórica. A História são vários caras afirmando que foi assim ou assado: o que sobra é mito. Na realidade, o mito acaba sendo um resumo do que os caras disseram. Acho até um pouco ridículo os caras debatendo se foi assim ou assado quando nossa própria história contemporânea é tão nebulosa e pontilhada de verdades que daqui a dez anos não serão mais. Como a virgindade do PT, né?

JÁ – Pela leitura do Os Varões Assinalados e Netto Perde Sua Alma, fica claro que a luta dos soldados negros era para se livrar da escravidão. Nos livros de história, isso freqüentemente é colocado de forma ambígua, como se eles lutassem pela liberdade como direito político no sentido contemporâneo.

Ruas – A história dos historiadores não é confiável. Basta ver as polêmicas, um querendo ser mais inteligente e autoritário do que o outro. A mitologia pega a essência das coisas. Mostra talvez o que os caras não conseguiram ser. Veja a mitologia do PT: a honestidade; não era um partido de corruptos… Os farrapos não podiam ser tudo aquilo — republicanos, abolicionistas etc. – porque eram uma frente, mas o que sobrou foram algumas atitudes, como a proclamação da república, e algumas idéias que acabaram não vingando.

JÁ – Como a idéia da abolição da escravatura?

Ruas – A abolição nunca foi discutida pelos farroupilhas, mas a liberdade dos escravos estava implícita na idéia da república. Tudo isso é muito confuso: os farroupilhas eram liberais e como tais defendiam a propriedade, mas encaravam os escravos como intocáveis porque eles faziam parte do patrimônio privado; cada fazendeiro tinha um grupo de escravos.

JÁ – E como te sentes explorando os lanceiros negros na ficção?

Ruas – Isso é uma coincidência, não é proposital. Meu projeto é uma trilogia sobre o Netto. O primeiro mostrou o Netto guerreiro, o segundo mostra o Netto carreirista de cavalos e o terceiro vai mostrar o Netto romântico.

JÁ – O que há de concreto sobre a lenda do Negrinho do Pastoreio?

Ruas – É uma lenda um pouco estranha. Um garoto de 14 ou 15 anos é morto a chicotadas por perder uma corrida que envolve muito dinheiro; depois vem Nossa Senhora, limpa as feridas do guri, bota ele num cavalo e…basta acender uma velinha que se consegue uma graça!

JÁ – Foi beatificado.

Ruas – Virou santo e…piá de recado!

Velejador se afoga na Lagoa dos Barros

O afogamento do windsurfista Tiago Farias, na semana passada, na Lagoa dos Barros, a maior lâmina dágua do litoral norte, com mais de 10 mil hectares, chocou a população de Osório e mobilizou velejadores de todo o Estado.
Estudante de administração de empresas e radialista, Tiago mantinha aos sábados na Rádio Osório AM um programa “Rota 750″ sobre esportes radicais ligados à natureza. Além de praticar vôo livre e windsurfe, cobria outros esportes praticados na região, como mountain bike e bicicross, e incentivava os cuidados com o meio ambiente. A Polícia Civil e a Marinha investigam o acidente.
No início da tarde da última quinta-feira (8/9) quem cruzava a Free Way no sentido Porto Alegre-Osório podia avistar duas velas de windsurfe e duas pipas de kite-surfe, em pontos diferentes da Lagoa dos Barros. Aproveitando o vento nordeste, as duas pipas estavam em frente à Rajada, escola de Rafael Freitas, na margem leste da lagoa; as duas velas na margem norte, em frente à Windfly, escola de Marco Antonio Rodrigues da Silva, mais conhecido como Bola, que fazia ali o que denominou ” o meu melhor velejo”. Na outra prancha estava Tiago treinando para sua estréia no campeonato gaúcho de windsurfe – seria no próximo fim de semana, na Lagoa dos Patos, em Pelotas.
Quando Tiago se afastou da Windfly, sendo levado pelo vento em direção à Rajada, na outra margem, Bola foi atrás dele, mas o perdeu de vista, pois as ondas começavam a elevar-se. Bola então voltou para a base, pegou o carro e foi fazer o resgate do amigo por terra na outra margem, seguro de que já o encontraria confraternizando com o pessoal do kite-surfe.
Mas na Rajada ninguém o havia visto e da margem não se podia avistar a vela. Dois velejadores entraram no bote salva-vidas e foram para o meio da lagoa, Bola ligou para os bombeiros e, acreditando que Tiago tivesse buscado abrigo numa beirada da lagoa, continuou as buscas por terra, com a ajuda de amigos que apareceram para ajudar. O vento se tornava mais intenso à medida que a noite se aproximava e todos se lembravam do dia anterior, de calmaria quase absoluta.
No meio da tarde do 7 de setembro, Tiago Farias aportou na Lagoa dos Barros em sua asa, fazendo um pouso que ele declarou como sendo de boeing, em cima dos juncos. O vento estava fraco para vela no feriado; os velejadores que esperavam o momento propício para cair n’água circundaram o amigo voador e o ajudaram a guardar a asa. Ele também estava disposto a velejar, mas faltou o principal: o feriado terminou com um pôr-do-sol sobre águas tranqüilas e temperatura amena.
O programa, depois da chegada inusitada de Tiago com sua asa, se resumiu a tomar chimarrão em frente à lagoa, sentindo a quentura do sol, olhando as crianças que jogavam bola e andavam de bicicleta em frente à praia.
Desconecção
Anoitecia quando, sem a vela e sem a bolina (quilha móvel), a prancha de 330 centímetros em que Tiago deu seu último velejo foi recolhida na margem leste da lagoa, a cerca de oito quilômetros do ponto onde ele costumava treinar. Até domingo a vela não havia sido encontrada. A bolina apareceu por volta das dez da noite, duas horas antes da descoberta do corpo, recebido por colegas de vela, de vôo, familiares e amigos.
Para os companheiros de velejo que tentaram o resgate, a separação das três partes do equipamento indica que o windsurfista realizou a operação mais difícil sob as rajadas fortes (53 km/h) e o frio intenso (10 graus): desatarrachou a vela da prancha, mas perdeu-se do que seria sua tábua de salvação – no windsurfe, a prancha é o principal item de segurança.
Não se sabe por que ele desconectou a prancha da vela, pois a recomendação básica é que o windsurfista, por acidente, cansaço ou pane no equipamento, permaneça em cima da prancha até para facilitar a localização pela equipe de resgate. É possível que, na impossibilidade de levantar a vela devido a força do vento, ele a tenha descartado para remar sobre a prancha e chegar mais rapidamente à margem. Na ânsia de voltar ao trabalho, mesmo com roupa de neoprene e colete de flutuação, deve ter-se esgotado nadando.
Os bombeiros de Santo Antônio da Patrulha e de Osório, sem barco, pouco podiam fazer e alertaram que o barco salva-vidas precisava sair da água de acordo com as previsões de tempo da Defesa Civil para aquela noite. Àquela altura os companheiros de Tiago já estavam voltando do meio da lagoa com o bote salva-vidas das escolas em meio a ondas desestabilizadoras, que dificultavam a visualização.
Enquanto a noite caía, outros davam voltas de carro e de moto por toda a margem, confiantes de que a qualquer momento Tiago chegaria em terra firme. A busca só terminou no início da madrugada, quando o corpo apareceu perto do local onde a prancha havia sido encontrada.
A Polícia Civil e a Marinha abriram inquéritos para investigar as causas do acidente, que poderá ajudar a melhorar as condições para a prática desses esportes. Embora a vela seja tão antiga quanto a civilização humana, o windsurfe é praticado só há trinta anos e o kite-surfe tem apenas cinco anos.
São raros os acidentes na prática do windsurfe, um dos poucos esportes radicais que admitem crianças e adolescentes. A prancha é o principal equipamento salva-vidas, mas para aumentar a segurança recomenda-se surfar com o colete de flutuação, como o que Tiago Farias usava.
Os coletes do tipo salva-vidas não são usados porque impedem o velejador de mergulhar quando a vela cai, já que a saída precisa ser feita por baixo dela. No verão, em praias e lagoas, é difícil avistar windsurfistas com coletes ou roupas de neoprene. Os capacetes para a prática do kite-surfe só há pouco começaram a ser utilizados, depois de alguns acidentes.
O uso de bóias na água para delimitar espaços e rádio para monitoramento, por exemplo, podem ser regulamentações úteis e necessárias, mas até agora não previstas.
O Vento como Insumo
Coberta pelo vento minuano, a Lagoa dos Barros não registrou movimento de velas e asas no fim-de-semana, mas nas suas redondezas ninguém acredita que o acidente vá inibir os adeptos dos esportes radicais e emocionantes nos morros e lagoas do litoral norte. Com 40 mil habitantes, Osório é tradicionalmente procurada pelos chamados “loucos pelo vento”, que se deslocam de lugares distantes para a prática de diversas modalidades de esportes ao ar livre.
A divulgação do projeto da usina eólica da Enerfin, junto à Lagoa dos Índios, na estrada Osório-Tramandaí, está fazendo vir à tona, com força, a vocação regional para a exploração do vento como insumo do lazer e do turismo no litoral norte do Rio Grande do Sul. Segundo os esportistas de Osório, as duas escolas de vela recém-abertas na Lagoa dos Barros são apenas a confirmação de uma história de quase setenta anos. Desde 1937 funciona no município a Albatroz, uma escola de planadores montada originalmente pela Varig; em 1985 foi criada na cidade uma associação de vôo livre que mantém três plataformas de saltos nos morros vizinhos.
A prática da vela na Lagoa dos Barros foi iniciada depois que um grupo de velejadores liderado por Marco Antonio Rodrigues da Silva, o Bola, comprou um terreno há três anos à altura do km 5 da Free Way; visando instalar uma escola de vela e guarderia de material náutico.
Piloto agrícola há vinte anos, Bola tornou-se navegador em Tapes, na Lagoa dos Patos; em Osório, introduziu as aulas de vela nos anos 90. Praticava na pequena Lagoa do Peixoto, fonte de abastecimento de água da população de Osório. Somente no primeiro semestre de 2005 conseguiu a licença para realizar o sonho da escola e guarderia na maior das 38 lagoas do litoral norte gaúcho. Um galpão octogonal foi construído em dois meses e inaugurado no final de julho.
Com a licença ambiental 1/2005, de comum acordo com as autoridades ambientais, o prefeito Romildo Bolzan Jr. estabeleceu que a Windfly pode ter apenas um barco a motor — para resgate de velejadores em risco. Ao proibir os motores, a prefeitura credenciou a Lagoa dos Barros apenas para os esportes náuticos tocados pelo vento. “Isso é bom, pois reduz o risco de poluição”, diz Bola, que se retirou da aviação agrícola inconformado com a prática sistemática de crimes ambientais, especialmente o lançamento de venenos proibidos sobre lavouras de arroz e soja.
Além de formar novos praticantes e guardar material de vela de esportistas tradicionais, a Windfly tem planos de organizar pelo menos um torneio internacional de vela por ano em Osório. Como incentivador do mais novo ponto de encontro dos velejadores do litoral sulino – a vela tem adeptos entusiasmados em Rio Grande, Pelotas, Tapes, Porto Alegre, Osório, Ibiraquera e Florianópolis –, Bola dispõe-se a provar que o turismo náutico não é apenas fonte de emprego e renda, mas um instrumento de educação ambiental num espaço tradicionalmente dominado por atividades agrícolas poluentes. “Acho bom que as autoridades endureçam para dar uma licença, mas os órgãos ambientais precisam fiscalizar também outras atividades tradicionalmente poluentes”, dizia ele, poucos dias antes do acidente com Tiago, chamando a atenção para o impacto ambiental do plantio de arroz irrigado e da pecuária.
Principal fonte de abastecimento d’água para as lavouras de arroz situadas entre Osório, Santo Antônio da Patrulha, Palmares e Porto Alegre, a Lagoa dos Barros é livre de poluição e tem um regime de ventos caprichoso por causa de um acidente geográfico particular – é ao seu lado que começa a Serra do Mar. Alguns praticantes de esportes náuticos bastante viajados a equiparam a grandes pontos internacionais da navegação a vela. Acredita-se que seus redemoinhos traiçoeiros, provocados pelo choque de correntes de vento contraditórias, possam servir como chamariz de competições.