Naira Hofmeister
Delegados eleitos para representar os moradores da Região de Planejamento 1 de Porto Alegre (RP1), que compreende 19 bairros da área central da cidade, querem ampliar o debate sobre a revitalização do Cais Mauá através de uma consulta pública à população.
A ideia foi lançada pelo delegado Ibirá Lucas na noite desta segunda-feira (17/10) durante reunião dos representantes da RP1 que analisou o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) do projeto para Cais Mauá, que tramita no Conselho do Plano Diretor (CMDUA) onde a grupo tem assento.
Vários delegados presentes no evento – que teve também participação de grande público, o que elevou o tom do debate em diversos momentos – se mostraram favoráveis à sugestão. A proposta, entretanto, terá que ser validada pelo conjunto dos 26 delegados em uma próxima reunião, ainda sem data definida. “Acredito que é possível aprovarmos por maioria”, observa Lucas.
O titular da RP1 no CMDUA, Daniel Nichelle, garante que seguirá a determinação tomada pelos representantes. Caso o encaminhamento seja aprovado dentro da RP1, ele ainda precisará ser validado pelo pleno do Conselho do Plano Diretor para que se torne uma diretriz à prefeitura.
Presente na reunião, o titular do Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais, Edemar Tutikian, acha “desnecessário” consultar a população sobre a obra, que gera polêmica entre grupos favoráveis e contrários à intervenção e está sendo alvo de uma inspeção especial do Tribunal de Contas do Estado, que levantou irregularidades no cumprimento de cláusulas contratuais.
“Tudo foi feito dentro dos princípios legais e validado pelo próprio Conselho do Plano Diretor, que lá no início do processo aprovou as diretrizes para o empreendedor”, justificou Tutikian.
O EVU recebeu parecer favorável do conselheiro representante do Sindicato das Indústrias da Construção Civil do Estado (Sinduscon-RS), na terça-feira passada (10/10), porém houve um pedido de vistas ao processo para que seja possível esclarecer com mais detalhe os impactos da obra na cidade.
Para que o empreendedor receba as licenças para iniciar as obras é preciso que o CMDUA ratifique o posicionamento da prefeitura, que aprovou o EVU no final de setembro após a análise de todas as secretarias interessadas no empreendimento. Nenhuma das pastas encontrou motivos para barrar a iniciativa, embora tenham redigido diversas condicionantes para efetivar o licenciamento na forma de contrapartidas para a cidade e obras complementares que garantam a infraestrutura necessária sem ônus para o poder público.
Críticas à falta de detalhamento
Os delegados da RP1, entretanto, expuseram dúvidas sobre a viabilidade da obra e criticaram a falta de detalhamento da proposta, que prejudica a análise. “Serão entre 20 e 30 mil pessoas circulando diariamente por esta área, mas não sabemos qual o impacto preciso desse volume de gente e de automóveis”, questionou Fernando Barth, o primeiro a falar.
Sua colega Ana Lucia Lucas foi taxativa: “Essa reunião não é legítima porque não temos um projeto na nossa frente para avaliarmos. Não sabemos quanto vai custar, como vai ser feito, como será o tratamento de esgoto e o acesso dos bombeiros”, exemplificou.
Antes da manifestação dos delegados na reunião, a arquiteta Marina Manfro e o diretor de Operações do consórcio Cais Mauá do Brasil, Sérgio Lima, fizeram uma breve apresentação sobre o empreendimento – a mesma que havia sido feita diante do Conselho do Plano Diretor 15 dias atrás e que detalha partes do projeto, como o restauro dos armazéns e as mudanças no setor Gasômetro, mas não esclarece na totalidade questionamentos que vem sendo feitos há anos por um setor da sociedade contrário ao modelo proposto para a área, que prevê espigões com 100 metros de altura, shopping center e estacionamentos.
“Não temos a documentação técnica necessária, as plantas, os memoriais descritivos. Por exemplo, precisamos fazer uma comparação entre a altura legalmente prevista e o que foi permitido a mais para o empreendedor”, postulou Ibirá Lucas, referindo-se aos limites do Plano Diretor da cidade, que determina 52 metros como a altura máxima para edifícios na cidade.
O público geral presente levantou ainda a preocupação com a construção em área inundável, que não está protegida pelo muro da Mauá. “Se houver uma cheia e afetar o trabalho e os negócios desenvolvidos ali, quem terá que indenizar pessoas ou comerciantes? O município, que é quem autoriza as obras. O conselho tem um papel muito importante para evitar distorções como essa”, provocou Anadir Alba, integrante do CMDUA nas últimas três gestões, que falou como convidada.
A delegada Tania Jamardo Faillace chamou atenção para as 11 praças anunciadas pelo empreendedor como um benefício à cidade. O maior desses espaços terá 3 mil m² e homenageará o poeta Mario Quintana; segundo a arquiteta Marina Manfro, “algumas praças são mais permeáveis, tem mais árvores, outras tem uma linguagem mais seca”.
Mas se é para construir praças, que seja no lugar certo, nas comunidades. Não tem sentido as pessoas pegarem ônibus de longe, onde não há áreas verdes, para vir para cá”, defendeu a delegada.
Já Valéria Falcão gostaria de saber mais sobre as ciclovias previstas no empreendimento. “Serão no perímetro do Cais, nos acessos? Essa é apenas uma das lacunas que há para serem esclarecidas”, observou.
Concorrência desleal
Vice-presidente da Associação Comunitária do Centro Histórico e delegado do planejamento da RP1, Paulo Guarnieri lembrou que o projeto não foi objeto de Estudo de Impacto de Vizinhança, instrumento previsto no Estatuto das Cidades mas ainda não implementado em Porto Alegre. “Precisaríamos avaliar aspectos como o aumento do trânsito na região e a concorrência com o comércio de rua, que é a característica do bairro”, provocou.
Guarnieri mencionou ainda a existência “de inúmeros prédios desocupados” no Centro Histórico – “edifícios inteiros, todos de escritórios” e recordou que esse é um dos negócios pretendidos pelo empreendedor no local. “Nossa hotelaria tem, nos seus melhores momentos, 50% de ocupação e querem construir hotéis. Vemos muitos restaurantes tradicionais da região fechando as portas e vão implantar ali um polo gastronômico. Não estaria sendo previsto ali uma concorrência desleal ao nosso já combalido mercado de comércio e serviços do Centro Histórico”, questionou.
Presente na reunião, o vice-presidente da Associação Comercial de Porto Alegre (ACPA) se manifestou em defesa da iniciativa, que segundo revelou, tem o apoio de comerciantes, varejistas e prestadores de serviço da cidade. “A grande e total maioria é a favor. Quanto mais mato mais coelho”, ilustrou.
Alguns delegados mencionaram preocupação com a descaracterização da área portuária histórica, que é tombada pelo patrimônio nacional e municipal. “Há anos nosso porto vem perdendo a característica de ser alegre porque nossos monumentos e referenciais estão sendo perdidos, a paisagem urbana que está no imaginário popular está deixando de existir, alegou Felisberto Luisi.
Houve também apontamentos sobre a saúde financeira do consórcio responsável pela revitalização, que sofre cobranças judiciais de dívidas não pagas e chegou a suspender durante um período o contrato com a empresa que faz a segurança da área porque não tinha dinheiro em caixa para pagar pelo serviço.
O titular da RP1, Daniel Nichelle se comprometeu a encaminhar as respostas do empreendedor aos questionamentos feitos pelos delegados. “Espero ter esse material disponível até o final da semana”, anunciou.
Validade dos índices construtivos preocupa
O representante da RP1 no Conselho do Plano Diretor também confirmou que usará a prerrogativa que lhe compete para pedir diligências à prefeitura que esclareçam pontos mencionados na reunião.
Um deles é o questionamento sobre a validade dos índices construtivos que permitem a construção de edifícios com o dobro da altura máxima prevista para Porto Alegre. A Lei Complementar 638/2010 determina que a autorização para erguer espigões com 100 metros estava assegurada aos investidores que licenciassem e iniciassem suas obras até 31 de dezembro de 2012 – o que não ocorreu no Cais Mauá.
“Isso é muito grave pois os conselheiros serão levados a votar um EVU fora da lei, e, se aprovarem, estarão sendo coniventes com essa ilegalidade”, alertou o presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Tiago Holzmann.
Apesar dos questionamentos, houve também manifestações favoráveis ao empreendimento e também pessoas que participaram da reunião para formar uma opinião a respeito da iniciativa.
Fotos de Thaís Ratier/JÁ