Guilherme Kolling
O Plano Diretor de Porto Alegre completou cinco anos em 27 de março. Quem poderia comemorar preferiu ficar quieto, porque o clima não está para festa.
“O princípio que orientou o Plano foi deturpado”, diz o arquiteto argentino Rubén Pesci, que foi consultor especial da equipe que formulou o Plano Diretor, que passou a ser a constituição da cidade a partir do ano 2000.
O Plano que era avançado e previa um desenvolvimento harmônico da cidade não saiu do papel. Apenas a parte que se referia à construção foi posta em prática.
A principal consequência dessa distorção os porto-alegrenses já “sentem na pele”: a proliferação de novos edifícios em bairros consolidados como Moinhos de Vento, Petrópolis, Bela Vista, Rio Branco e Menino Deus.
Há dois anos os moradores se deram conta da acelerada substituição de casas por espigões e reagiram. A mobilização começou no Moinhos de Vento, onde os antigos casarões que dão identidade ao bairro começaram a ser derrubados. Hoje, sob a sigla “Porto Alegre Vive”, o movimento envolve quase vinte associações comunitárias que querem corrigir o que consideram “distorções do Plano”.
O alvo principal da campanha dos moradores é a questão das alturas. Eles querem retroagir, diminuir o tamanho, baixar os índices construtivos (o que é previsto no Plano) e colocar em prática a proteção do patrimônio histórico e do ambiente natural.
Os empresários, por outro lado, trabalham para manter a conquista que obtiveram depois de oito anos (1993-2000) de trabalho. O que a discussão de hoje evidencia é a forma como foi feito o Plano Diretor de Porto Alegre. Não houve equilíbrio de forças. A população não foi informada e, portanto, não estava lá.
Por outro lado, o setor da construção civil esteve presente. “O Sinduscon participou de todas as reuniões ao longo desses anos. Até nos locais mais longínquos eles estavam. E para fazer o seu papel: construir mais e mais alto”, revela Newton Burmeister, secretário do Planejamento que conduziu a avaliação da Plano de 1979 e a criação da nova lei.
Além de Burmeister, o JÁ ouviu outro protagonista da elaboração do Plano Diretor: Rubén Pesci, o arquiteto argentino que deu consultoria à Prefeitura da Capital. Eles se pronunciaram depois de cinco anos de silêncio. A seguir, duas entrevistas exclusivas, que revelam como foi feito o Plano Diretor e por que não está saindo como planejado.
As sete estratégias para a cidade
O Plano Diretor de Desenvolviemento Urbano Ambiental é composto por sete estratégias, que têm os seguintes objetivos:
Estruturação Urbana
Promover a estruturação do espaço na cidade e a integração metropolitana;
Mobilidade Urbana
Qualificar a circulação e o transporte urbano, proporcionando os deslocamentos na cidade e atendendo às distintas necessidades da população;
Uso do Solo Privado
Disciplinar e ordenar a ocupação do solo privado, através dos instrumentos de regulação que definem a distribuição espacial das atividades, a densificação e a configuração da paisagem urbana no que se refere à edificação e ao parcelamento do solo;
Qualificação Ambiental
Qualificar o território municipal, através da valorização do Patrimônio Ambiental, promovendo suas potencialidades e garantindo sua perpetuação e a superação dos conflitos referentes à poluição e degradação do meio ambiente, saneamento e desperdício energético;
Promoção Econômica
Estabelecer políticas que busquem a dinamização da economia da cidade, a melhoria da qualidade de vida e a qualificação da cidadania, através de ações diretas com a comunidade e com os setores produtivos, assim como a articulação com outras esferas de poder;
Produção da Cidade
Capacitar o Município para a promoção do seu desenvolvimento através de um conjunto de ações políticas e instrumentos de gerenciamento do solo urbano que envolvem a diversidade dos agentes produtores da cidade e incorporam as oportunidades empresariais aos interesses do desenvolvimento urbano como um todo.
Sistema de Planejamento
Garantir um planejamento dinâmico e contínuo, que articule as políticas da administração municipal com os diversos interesses da sociedade, promovendo instrumentos para o monitoramento do desenvolvimento urbano.
O que mudou nas alturas dos prédios
As mudanças nas alturas máximas das edificações ocorreram em dois momentos distintos. Em 1987, o prefeito Alceu Collares promoveu alterações nas áreas próximas a grandes avenidas. O atual Plano, por sua vez, aumentou o limite da estatura das edificações no interior dos bairros, em 1999, quando a igualou a das áreas de entorno das grandes avenidas.
“O Plano mudou na Câmara”
Desde que se afastou da Secretaria do Planejamento, ao final da gestão de Raul Pont, o arquiteto e urbanista Newton Burmeister, 67, não se pronunciou mais sobre Plano Diretor.
Ele não participou, por exemplo, de nenhuma das reuniões de avaliação da lei, que ocorreram a partir de 2003 e que seguem até hoje. Relutou para falar no assunto.
“Mas eu nem estou mais envolvido com isso, porque vocês querem me ouvir?”, questionou, ao ser sondado pelo JÁ. Depois de certa insistência, aceitou romper o silêncio, que já durava cinco anos.
“Não estou participando porque quero um distanciamento para poder dar uma contribuição melhor. Se entrasse no debate agora, iria defender o meu trabalho”, justificou.
Ele admitiu que continua acompanhando o assunto – reuniu em uma peça de sua casa centenas de anotações e documentos –, pretende escrever sobre o tema.
Autoridade para isso ele tem. Burmeister foi secretário de Obras na gestão de Olívio Dutra (1989-1992) e do Planejamento, com Tarso Genro (1993-1996) e Pont (1997-2000), o que significa dizer que acompanhou todo o processo de elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA).
Ele recebeu o JÁ, em 28 de março, na sua residência, na Três Figueiras, para uma conversa de pouco mais de uma hora. Ao final, confessou: “Fazia tempo que eu não falava desses assuntos”.
Como começou a discussão do novo Plano Diretor?
Era a reavaliação do Plano Diretor de 1979, que depois passou a ser a proposta de um novo Plano. Eu administrei essa discussão, que começou na gestão do Tarso (Genro). O grande impasse foi estabelecer uma metodologia. Tivemos contatos com diversos grupos locais, faculdades de arquitetura. Depois com a FLACAN (Fórum Latino-Americano de Ciências Ambientais), através do (arquiteto argentino Rubén) Pesci e seu grupo. Isso ocorreu pela quantidade de profissionais da própria Secretaria do Planejamento que tinham feito cursos de metodologia, de pós-graduação lá na Argentina. O grupo do Rubén Pesci tinha experiência em método para avaliação, discussão e proposição de Planos Diretores. Eles têm nome internacional, por trabalhos na Argentina, América Latina, Espanha e Itália.
O resultado foi um Plano elogiado no papel. Mas se diz que só a parte construtiva foi posta em prática.
É uma característica geral da aplicação de Planos Diretores. Eles devem trazer uma visão propositiva para uma estratégia de desenvolvimento da cidade. Todavia, a nossa estrutura do poder público sempre deu muito mais ênfase para a questão da ocupação do lote urbano. O novo Plano Diretor tentou assegurar que além de as secretarias desenvolverem seus aspectos cotidianos, de manutenção, conservação, elas tivessem representação dentro do Conselho do Plano Diretor, para acompanhar, corrigir, reavaliar as questões que envolvem o desenvolvimento estratégico da cidade. Mas essas estruturas tecno-burocráticas têm uma cultura muito forte de só cuidar de como se edifica na cidade: taxa de ocupação do terreno, afastamento, altura, etc. Elas desdobram pouca coisa além disso. Nas secretarias de Obras e de Planejamento existe uma grande quantidade de técnicos muito bons, capacitados, aptos, mas que ficaram dentro das camisas-de-força do “construir”. É a cultura de cuidar só de como se constrói na cidade, que não é a coisa mais importante. Perde-se muita massa crítica fazendo coisas menores, quando poderia se usar ela na questão do pensamento estratégico da cidade.
E a participação da população no Plano?
Houve muita falta de informação. Hoje, lendo o noticiário, vejo manifestações até de pessoas que estão no atual governo e que nunca apareceram nas centenas de debates sobre o Plano Diretor. Nunca! E, de repente, aparece o cara e acha que o negócio está mal. Algumas estruturas estão sendo acionadas hoje, na continuidade da discussão do desenvolvimento urbano: as 16 regiões do Orçamento Participativo e as 8 dos Fóruns de Planejamento. Isso criou uma base que está sendo utilizada, não existia antes. Então, há os que criticam essas situações mas que utilizam as estruturas que o novo Plano propôs. Agora, um Plano Diretor não é impositivo, mas sim um plano de diretrizes, de ação permanente, de avaliação periódica. E se as pessoas acham que as coisas que foram propostas não são boas, é preciso ver isso sob a ótica do que a sociedade está dizendo, os moradores, as estruturas organizadas, etc. Tem que dizer não está bom.
Mas o Plano não passa a ser impositivo, na medida em que dezenas de associações, organizadas, representativas, dizem, desde 2003, que não estão de acordo, por exemplo, com a verticalização e densificação da área central, e não conseguem mudar isso?
O Plano define alguns parâmetros, a partir de informações, características da cidade, pela qual ela foi construída, dividida, e joga isso para dentro do espacial. São situações baseadas na experiência dessa própria cultura interna do Município, na experiência de pessoas bastante vivenciadas. Claro que nessas coisas tem disputas. O Sinduscon esteve permanentemente dentro de todos os grupos de trabalho, de todas as comissões, nunca se omitiu das reuniões, nem das que eram lá nos confins da cidade. Estiveram lá e tinham sua estratégia, seus objetivos, legítimos. Qual é a posição do Sinduscon? Eu quero construir mais, mais alto, etc. O que alguns setores faziam? Não, não pode ser tanto assim, tem que manter situações, etc. Mas acontece é que o Plano Diretor é montado, depois é feito um projeto de lei que é mandado para a Câmara. E a Câmara tem outra sensibilidade.
O Plano mudou na Câmara?
Mudou na Câmara.
O quê?
Mudou a altura, afastamentos. E veja: continua na discussão do “construir”. As visões estratégicas da cidade sequer transitaram lá, não teve discussão. Agora, quando chegou na questão da altura, da taxa de ocupação, do índice de aproveitamento… A Câmara tem outras sensibilidades, outros canais de comunicações, que não são os que a estrutura que concebeu o Plano tinha. Ali as partes interessadas falam direto com os vereadores. E havia ainda, felizmente, a equipe técnica da Câmara, mas que não estava lá com a visão dos grupos que estavam discutindo fora. As informações foram gestionadas no âmbito da Câmara. E o processo legal, democrático, é esse. É feito um projeto de lei, que se acredita, é o melhor que o Executivo pode propor para a cidade, ouvindo os grupos envolvidos. Agora, quando entra para a Câmara, entra para a Câmara. E essas situações foram muito fortemente contestadas, especialmente a questão de alturas. Na proposta original, eram praticamente mantidos os mesmos padrões de alturas existentes no Plano Diretor. Houve uma pequena mudança de taxa de ocupação e de afastamento – passou de 1/20 para uma outra fraçãozinha que aumentava mais 50cm, algo assim… As partes interessadas nesse processo disputavam o centavo.
E antes da Câmara, a população estava alheia ou houve embate?
Essa situação apareceu na Três Figueiras, por causa do Projeto Hermes, que foi aprovado na legislação anterior. Houve algumas mobilizações, até com contrariedades pessoais ao projeto, alegando que aquelas edificações no terreno no Projeto Hermes iriam comprometer o bairro Três Figueiras como um todo.
Foi um caso isolado? Houve outras queixas sobre alturas?
Isso não apareceu nos debates feitos nas diversas regiões. Essa situação que tem a ver com a altura das edificações, e nada mais, não apareceu. Apareceu em algumas disputas. O Sinduscon reivindicou mais altura, trazendo técnicos e provando argumentos sobre esse aspecto. E os dois pólos se conformaram com o acordo que foi feito.
Mas as lideranças comunitárias só se deram conta quando sentiram na pele o efeito. O Moinhos Vive, por exemplo, só surgiu no final de 2002.
Mas aí é outra coisa, trata-se de manter a identidade do bairro. O que é o Moinhos de Vento? É um bairro que foi estruturado nos anos 1940, 50, 60, com casas unifamiliares de muito bom nível, como havia também na Carlos Gomes. Residências que desfrutavam das melhores condições de localização na cidade. É o caso do Petrópolis, Rio Branco, Bela Vista, todos com essas características. O que aconteceu? As famílias que se estabeleceram nos anos 50, 60, faziam casas com 4 quartos. Aí a família cresce, um se casa, outro se casa… e a residência fica de herança. Ela deixa de ser a casa unifamiliar e passa ser uma herança, cujo regime urbanístico anterior previa a possibilidade de se construir um edifício. Chega um cara e propõe: “Eu compro essa casa, construo um edifício e te dou apartamentos”. Essa situação não apareceu agora, ela vem da cultura do desenvolvimento da cidade.
Mas esse exemplo foi a regra?
A cidade disponibiliza infra-estrutura, que é cara. Então, tem-se que jogar com o potencial de densidade que ela assimila. Numa quadra que permitia fazer 50, 60 unidades, passou a existir um potencial de aproveitamento da infra-estrutura existente, do sistema viário, da iluminação, energia, água, esgoto, que possibilitava uma densificação maior.
Isso já era possível, não foi mudado pelo Plano Diretor?
Já era, sim. O que aconteceu nesses períodos, na sucessão dos diversos planos existentes, e nas suas readequações, foi o aproveitamento das infra-estruturas que possibilitavam aumentar as densidades, o que significa construir em altura. Isso foi apresentado por um professor da UFRGS nos debates do Plano, fazendo com que as pessoas entendessem o porquê da densificação. Agora, não dá para congelar um bairro pura e simplesmente para manter a sua paisagem, porque é uma deseconomia para a cidade. E Porto Alegre teve aumentos consideráveis de população a partir dos anos 60. Nós dobramos a população de 1960 para 2005. Isso significa que temos que organizar o espaço urbano para que ele assimile esse crescimento da população.
O conflito entre essa idéia de aproveitar a infra-estrutura e o desejo de manter as características do bairro não seria atenuado se as outras estratégias fossem implementadas, como a qualificação ambiental, a proteção do patrimônio histórico… Mas todas essas questões foram abordadas no conjunto.
Mas não saíram do papel.
São diretrizes para o desenvolvimento urbano.
Não implantadas. A Zona Sul, por exemplo, está sendo preservada?
A Zona Sul tem uma característica extremamente peculiar. Tanto que surgiu nesse novo Plano o chamado espaço Rururbano, que é uma característica de desenvolvimento sustentado que se busca para esse região, identificando nele a questão de paisagem. Isso está muito bem explicitado no Atlas Ambiental de Porto Alegre, foi muito bem caracterizado.
Bem caracterizado no mapa. Mas está protegido por lei?
O mapa é uma espacialização de intenções. Agora para isso acontecer, providências devem ser tomadas pelo Poder Executivo, pelas associações comunitárias. Porque a gestão desse Plano não é exclusiva do Executivo, é uma gestão dos Fóruns das Regiões de Planejamento, que tem essa capilaridade, permite que o morador informe que há ocupação em áreas de valor ambiental, situações como esses novos tipos de condomínios que vem sendo construídos…
Há queixa que esses condomínios estão mudando a chamada Cidade Jardim.
São situações sobre as quais se tem determinado controle, mas não controle absoluto. Define-se a densidade, o tamanho de área… Eu me criei na Vila Assunção. Quando me mudei eu dizia: “meu Deus!, mas isso é lá no fim do mundo”. O bairro onde eu moro hoje, o Três Figueiras, em 1960 era um lugar em que se vinha fazer piquenique, era a Chácara do seu Müller. Então a cidade tem essa característica dinâmica. Temos que entender isso. Não se pode avaliar a cidade de 2002 para 2003, ela tem que ser medida em décadas.
E nessa meia década de Plano. Já dá para sentir algum efeito?
Ele aparece preliminarmente nas edificações. Primeiro porque o plano estratégico da descentralização é mais demorado. O Plano anterior tinha duas décadas de implementação e subsidiou essa nova proposta com aquilo que ele previa, tanto o que ocorreu como o que ele previa e não ocorreu. Aí dá para fazer uma avaliação crítica, sólida. Agora, quando se aprova um Plano em 2000, e em 2003 se diz que ele não está bom, analisando só a questão da edificação, é um equivoco. É um desenfoque do caráter estratégico que tem um Plano Diretor.
Mas se analisa só a construção porque o resto não saiu do papel.
Bom, mas isso são ações estratégicas que devem ser implementadas, o que requer ações de implantação e consolidação paulatinas. Tem que haver insistência em manter aquela diretriz, porque caso o contrário, o Plano corre o risco de se esvair. As pessoas esquecem, fica a letra morta da lei. Os corredores de centralidade tem que ser insistentemente buscados.
E o plano viário do cidade?
As diretrizes são boas, mas tem que existir uma ação articulada das secretarias. Não pode só a Secretaria do Planejamento ser a responsável por isso. Ela tem que se articular com Smam, EPTC, Smic. E também os serviços de infra-estrutura, Smov, DEP, Dmae, eles devem estar presentes porque têm as medidas do que existe e das necessidades. A questão do sistema viário é importante, também porque é um fator indutor de novas centralidades. Por exemplo, o corredor Anita-Nilo alcança as bordas da cidade, para o lado do Parque Chico Mendes.
Mas isso é para muitos anos…
Tem que começar assim. Porque se essa perspectiva for analisada a curto prazo, não se realiza. Tem que ser ações estratégicas, porque senão passam a ser ações momentosas, de uma ansiedade precipitada. O planejador tem que relativizar o tempo. Existem coisas que acontecem em longo prazo. A Terceira Perimetral, por exemplo, foi concebida em 1959 e consolidada em 1963. E se realizou 40 anos depois. Esse percurso de 12km, seria impossível se não fossem tomadas providências de afastamento, deixar disponíveis terrenos para fazer a via. Seria impossível pelos valores de desapropriação, que a cidade não seria capaz de pagar. São situações que podem vir a ocorrer daqui 30, 40 anos. São gerações que precisam ser articuladas, mobilizadas, convencidas, e que devem estar informadas. Essa ação que vocês (Jornal JÁ) estão fazendo agora, de informar, publicar, antecipar o debate, fazer as pessoas pensarem no assunto, é de grande valia, é extremamente útil para a cidade, porque só através desses meios as pessoas podem se mobilizar, se interessar e participar dessas estruturas de planejamento.
Rubén Pesci: “O princípio do projeto foi deturpado”
A experiência internacional do arquiteto argentino Rubén Pesci, 62, chamou a atenção da Prefeitura de Porto Alegre, que o convidou para dar consultoria aos técnicos que fariam o novo Plano Diretor da cidade. Foram seis meses de trabalho, de março a outubro de 1996. Vários profissionais da Secretaria de Planejamento tinham feito cursos de pós-graduação na FLACAM (Fórum Latino-americano de Ciências Ambientais), dirigido por Pesci.
Autor de Planos Diretores e de Gestão Ambiental de várias cidades do mundo, o trabalho do argentino tem uma preocupação com a área ambiental – ele criou em 1974 a Fundação CEPA (Centro de Estudos e Projetos Ambientais).
Pesci está apavorado com a destruição do ambiente em Porto Alegre, especialmente na Zona Sul. Ele diagnostica: “O Plano só foi implantado na parte que trata das edificações. E teve alterações na Câmara, que o tornaram mais conservador, com índices de aproveitamento máximos”.
Mas para o arquiteto, o principal problema foi a falta de informação, tanto dentro do governo quanto na população. A idéia de adequar o Plano ao interesse da comunidade foi esquecida.
Rubén Pesci esteve em Porto Alegre em janeiro, para participar do Fórum Social Mundial. Foi quando deu essa entrevista exclusiva para o Jornal JÁ.
Que tipo de assessoria vocês prestaram ao Plano Diretor de Porto Alegre?
Foi um trabalho feito pela Fundação CEPA da Argentina, solicitado pela Prefeitura de Porto Alegre, porque já conhecíamos muitos dos funcionários e o Secretário de Planejamento da época. Já havia todo um relacionamento. Então fomos chamados para fazer a Coordenação Metodológica e o Enfoque Conceitual.
E quanto tempo durou este trabalho?
Seis meses, de março à outubro de 1996. Depois nos chamaram novamente para capacitar o pessoal técnico e desenvolver alguns projetos integrados.
E o que aconteceu entre a concepção e a prática?
A Câmara de Vereadores fez algumas modificações que no princípio não nos pareceram muito preocupantes, o problema foi que só discutiam um aspecto do Plano, a questão das edificações, deixando de lado os outros seis: os corredores de centralidade, os espaços abertos (para lazer e convívio social), a questão ambiental, o saneamento, a modificação do sistema de transporte e trânsito, o desenvolvimento econômico e social (moradias). Quando o Plano finalmente foi aprovado em 2000, imaginei que tudo fosse possível e que as modificações na estratégia de aproveitamento do solo não fossem tão graves. O problema começou depois.
O que aconteceu?
Aí começamos a ter solicitações da população, chegamos a fazer um ciclo de conferências de dois dias na Sociedade de Engenharia com a participação de arquitetos, do Sinduscon, vereadores e moradores. Então começamos a ver que as estratégias de Desenvolvimento Sustentável não estavam sendo aplicadas, pequenas coisas como alargamento de vias e altura de prédios, não vinham sendo respeitadas, o que causava enormes brigas.
E que tipo de interesse travou isso?
Quanto a isso tenho que ser muito prudente, porque na verdade, não sei. O que acho à princípio, é que não foi bem divulgada a essência do Plano, coisa que advertimos desde o início. O principal problema foi a falta de informação sobre o Plano tanto dentro do governo quanto para a comunidade.
Foi na Câmara de Vereadores que ele sofreu modificações?
Eu não segui o processo na Câmara. Sei que uma quantidade enorme de assessores foram consultados, não sei se houve algum interesse político-partidário. Sei que aquilo que era um Plano moderno e desenvolvido para qualquer lugar do mundo, acabou sendo um Plano conservador. Os índices de aproveitamento eram máximos, mas a comunidade podia reunir-se e baixar estes índices, porém o Governo não divulgou isso. O Plano era maleável e poderia adequar-se ao interesse da comunidade, mas isso foi esquecido.
E o Plano que saiu da Câmara estava muito diferente?
Sim. Me parece que só na Estratégia 5, porque as outras não haviam sido discutidas e, ingenuamente, achei que não fosse por falta de interesse e sim porque estava tudo certo.
O Executivo também teve responsabilidade pela não aplicação do Plano Diretor?
Sim. Na compreensão, divulgação e mudança de interesses. Aquele Executivo do início, o secretário (Newton) Burmeister e o prefeito Tarso Genro compreendiam perfeitamente. Depois quando o governo foi mudando, mudou também o entendimento sobre o assunto. Cada setor da sociedade tem interesses específicos na sua área e só quer debater sobre esse assunto. O setor de moradia só se interessava em falar sobre a política de habitação social, o setor de construção só sobre o aproveitamento do solo, etc.
No Plano está prevista uma revisão, ainda se pode recuperar a concepção inicial?
Não posso falar como um expert em Porto Alegre, mas me parece que poderia perfeitamente ser feita uma retomada daquele Plano.
No Moinhos de Vento se criou um movimento de moradores para preservar a identidade do bairro…
O plano continha essa idéia de fazer uma consulta aos moradores para que limitassem a altura das futuras construções, mas os moradores não foram informados. O problema central foi uma total falta de comunicação. A população não ficou sabendo.
Outro caso preocupante parecer ser a Zona Sul da cidade…
Ali o crescimento tinha que ser muito bem regulado por isso que os corredores centrais fluíram para a Zona Oeste e não para a Zona Sul. Na Zona Sul deveríamos preservar grandes áreas ambientais que seriam uma reserva de natureza, mas isso não está ocorrendo…
O que está ocorrendo?
Eu andei por lá agora, me assustei. É muito grave. Se nada for feito, em cinco anos a Zona Sul estará numa situação muito ruim, estará ambientalmente destruída, com enormes problemas de circulação, etc.
O que está sendo feito nesta região?
Bom, havia um projeto de desenvolvimento para esta região, com construções de condomínios e transporte, mas dentro de certos limites de grande respeito ambiental e produtivo, tinha que manter as qualidades turísticas e de produção ruralS, como a de pêssegos e pesca. Todos os morros e a orla tinham que ser imediatamente protegidos, evitando invasores e loteamentos clandestinos que crescem muito a cada dia. A proliferação de condomínios de luxo também é problema sério… O problema essencial é a desinformação que tira o direito que o Plano dá e leva a brigas imensas em que só ganham os que têm os interesses mais perigosos.
Você disse que passou de um Plano propositivo para um Plano impositivo?
Perfeitamente. O Plano dava grandes incentivos a investidores que fariam crescer a cidade. Existem muitos corredores. O ideal seria fazer projetos integrados com os moradores vizinhos, investidores e Prefeitura, mas…
“Em 5 anos a Zona Sul será destruída”
Marília e Luiz Antônio Azevedo não são especialistas em planejamento urbano, mas têm o mesmo prognóstico que o experiente arquiteto argentino Rubén Pesci para o efeito da primeira década do novo Plano Diretor: “Se continuar assim, em cinco anos vão destruir a Zona Sul”.
Casados há 46 anos, eles decidiram se mudar de um apartamento do Bom Fim para a região mais arborizada e menos povoada da cidade, no início da década de 70.
“Queríamos sossego e espaço para nossos filhos brincarem. O contato com o verde é importante”, justificam. E assim cresceram as quatro crianças. A família se instalou no Jardim Isabel, bairro entre Ipanema e o Morro do Osso. É um loteamento com apenas 24 ruas, 700 casas e 3 mil moradores.
A comunidade é unida, organizada, com direito a entidade representativa: a Associação Comunitária do Jardim Isabel (Ascomjip). O engenheiro agrônomo Luiz Antônio, 69, e a advogada Marília – casal recém mencionado – se tornaram lideranças depois que se aposentaram.
“Desde então, me dedico 24 horas por dia à Associação”, garante Luiz Antônio, que já foi presidente da Ascomjip duas vezes. Ele se orgulha de ter inaugurado a sede da Associação, em 1996. É sempre solicitado quando há um problema na vizinhança, seja o entupimento de uma boca-de-lobo, seja para acionar a polícia em caso de roubo.
Apesar de todo esse engajamento no bairro, o casal não esteve presente em nenhum debate da discussão do Plano Diretor, na década de 90. Deram-se conta do que foi aprovado só quando sentiram o efeito: 39 novos condomínios em cinco anos. Cerca de 2 mil novos moradores, ou seja, a população quase duplicou.
O problema é que os novos imóveis têm uma característica diferente dos originais: ao invés de pátios arborizados, aproveitam todo o terreno com área construída – pudera, onde antes havia uma casa, colocam quatro ou cinco sobradinhos, todos geminados.
A perda de área verde já causou pelo menos um efeito: alagamentos nas ruas mais baixas, fato inédito, até então. Luiz Antônio e Marília se mobilizaram. Passaram a representar a comunidade na avaliação do Plano Diretor. Desde 2003, marcam presença nos debates da Prefeitura e da Câmara.
Marília é mais discreta. Mas seu marido faz questão de exibir cartazes imensos, que sempre carrega com ele. São fotos dos novos condomínios e dos alagamentos que eles trouxeram. “Essas imagens mostram a barbaridade que está acontecendo na Zona Sul”, costuma dizer, sempre em manifestações fortes.
A esposa concorda. “No papel, o Plano Diretor diz que a Cidade Jardim (Ipanema, Tristeza, Assunção e arredores) deve ter baixa densidade, com predominância de casas circundadas por áreas verdes. Mas não é isso que está acontecendo”, protesta, enquanto lê o artigo da lei, grifado por ela com caneta hidrocor.
Polêmica é a ocupação
A discussão que pipoca na cidade é a mesma: densificação. Mas se na região central a grita é pelo tamanho dos prédios, na Zona Sul a questão é o tamanho dos terrenos. Moradores defendem uma área de 250m2 a 300 m2 por casa. Mas a prática tem sido quatro ou cinco residências nesse tamanho de gleba.
A mudança veio com o novo Plano Diretor, que admite uma economia (casa) a cada 75m2. Por outro lado, a mesma lei chama a região de Cidade Jardim, uma área especial de interesse do ambiente natural. E com isso, a ocupação voltaria a ser 300m2 por residência, garantindo amplas áreas de arborização, dentro dos imóveis.
No meio deste vazio jurídico – ou melhor –, como as áreas especiais do ambiente natural não foram regulamentadas, está se adotando a construção de quatro casas por lote. “O que eles querem é área. Mas isso vai contra a vocação desses bairros e destrói a arborização interna”, avalia Nestor Nadruz, arquiteto e coordenador do Movimento Porto Alegre Vive.
O ambientalista Guilherme Dornelles, da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) diz que a especulação imobiliária está igualando a Zona Sul à Zona Norte. “Ipanema está sofrendo a maior agressão. Em dois meses, derrubam a casa, as árvores, colocam um tapume e impermeabilizam todo o terreno”, descreve o ecologista.
Outro problema da Zona Sul destacado por Dornelles são os loteamentos clandestinos. “São pessoas de baixa renda que se instalam em áreas de preservação e degradam o ambiente. Depois, o dono pede reintegração de posse e pode construir no terreno”.
O ambientalista trabalha ainda pela preservação da orla, especialmente no trecho entre o Lami e a Ponta Grossa, que ainda não está construído. “Já tem projetos para esta faixa, mas ela é de preservação do ambiente natural e é área especial de interesse cultural”, ressalta Dornelles.
O caso Loteamento Ipanema
Além de condomínios horizontais, existe preocupação com os projetos especiais na Zona Sul. Um deles é o Loteamento Ipanema, da Maiojama, que prevê vários blocos de 10 pavimentos.
O projeto é antigo e foi travado na Justiça. A questão é a preservação da Mata Atlântica, existente no local, e a canalização do Arroio Espírito Santo. O Poder Judiciário deu parecer favorável ao empreendimento, em decisão apresentada em novembro de 2004, mas a promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Ana Maria Marchesan, vai recorrer, levando o caso até Brasília.
Moradores se queixam, ainda, da descaracterização que o empreendimento causaria na região. “É um local residencial, antigo, com tradição de casas de veraneio e querem colocar um monte de espigões”, explica o ambientalista Guilherme Dornelles, morador da Zona Sul.
“Projetos especiais como esse alteram bairros centenários, degradando a zona costeira”, diz Marçal Davi, da Tristeza. Ele cita outro empreendimento, na rua Mário Totta, que também é formado por prédios altos, ao invés de casas.
Procurada diversas vezes pelo JÁ, a Maiojama não concedeu entrevista, conforme havia prometido o departamento de marketing da empresa construtora.
“Quem se muda para cá quer contato com verde”
O advogado Astélio Santos é outro que está insatisfeito com as mudanças na Zona Sul. Ex-representante da comunidade no Fórum da Região de Planejamento, é uma das lideranças da Associação dos Moradores do Balneário Ipanema, a Ambi.
Foi para a Zona Sul em 1983, em busca de sossego. “Isso aqui era uma maravilha”. Antes, morou na avenida Venâncio Aires, na década de 70. Achou que o local estava ficando movimentado demais. Foi para o Menino Deus, onde viveu alguns anos, até perder o sol, quando construíram um prédio ao lado.
“Quem vem para cá (Ipanema) quer o verde. Isso é qualidade de vida. E estão acabando com a arborização, que está nas casas”, protesta. “Esse Plano Diretor foi feito para fomentar a construção civil! Não foi feito para o morador!”, diz, em tom exaltado.
Ele acredita que os moradores que participaram da discussão não tinham cultura urbanística para entender a pressão dos construtores. “Não houve contraponto. E a Prefeitura aceitou, para ganhar dinheiro com impostos sobre os imóveis”, acredita.
Entre as queixas, o pouco recuo dos novos condomínios. Exemplo, em sua região, é o que não falta. Quem chega na Zona Sul logo percebe que a região parece um canteiro de obras. Nas ruas internas, entre as principais avenidas, são dezenas, centenas de pequenos condomínios horizontais.
As preocupações, além do esgoto in natura, que vai para o Guaíba, e dos crescentes alagamentos, é com o adensamento e a falta de infra-estrutura: mesmo as vias principais são estreitas para a quantidade cada vez maior de automóveis.
“Não temos uma malha viária para suportar mais veículos. E falta infra-estrutura: escolas, postos de saúde, saneamento. Isso aqui vai virar outra Goethe”, prevê o advogado Marçal Davi, uma das lideranças do bairro Tristeza.
TAMBEM CONCORDO QUE OS CASAROES ANTIGOS DEVERIAM SER PRESERVADOS!!!CHEGA DAR UMA DOR NO CORAÇAO QUANDO PASSEI E VI QUE VARIOS CASAS NA PERIMETRAL QUE ACHAVA LINDAS HAVIAM SIDO DEMOLIDAS!!!!!!!
Quando entramos em contato com este tal de Plano Diretor, experimentamos uma sensação de imensidão, da qual não imaginamos a verdadeira dimensão.
Credo! Parece coisa do outro mundo! Não é. É coisa muito nossa e é composta desta forma para nos atrapalhar, confundir, enganar e para que alguns engraçadinhos levem vantagens.
Os preocupados em ver a cidade como uma realidade futura, esquecem da crueldade presente.
Quem seria o arauto da revelação? Lutar contra os poderosos, fazer valer uma realidade que a todos nós pertence?
Este tal de Plano Diretor, mais é um livro que regra negócios préviamente estabelecidos, do que um manual de sobrevivência urbana.
Isso mesmo! Manual de Sobrevivência Urbana, no mínimo, para que continuemos a pensar o espaço que nos “volteia”, como uma extensão dos nossos desejos. Quem sabe algum dia, alguém com alguma coisa, faça aqueles com aquelas coisas, pensarem melhor, nem que seja obrigado, à força, “goela abaixo”, mas defendendo nossos direitos.