Para a relatora da apelação, desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi, “não se verifica a intenção do escritor de macular a reputação do servidor, apesar de satirizar e criticar seu modo de agir.”
E ainda: “Não é possível limitar a criatividade e liberdade de escritores que abordam tema delicado como esse, pois se corre o risco de constranger o espírito investigativo dos repórteres e de encobrir informações necessárias para a fundamentação de nossa consciência crítica.
A magistrada ressaltou também estar presente, nesse caso, o interesse da sociedade e da própria história ao conhecimento, ainda que parcial, dos fatos ocorridos em recente período político, conhecido pelo lado negro da intolerância, da prepotência e da ausência de liberdade.
A 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou ontem à tarde indenização por danos morais ao inspetor aposentado do Dops gaúcho, João Augusto da Rosa, contra o jornalista Luiz Cláudio Cunha, autor do livro Operação Condor: O Sequestro dos Uruguaios — uma reportagem dos tempos da ditadura, e contra a editora L&PM.
Envolvido no sequestro dos militantes uruguaios Universindo Díaz, Lílian Celiberti e seus dois filhos ainda crianças, Camilo e Francesca, ocorrido em 1978, o ex-agente da repressão que usava o condinome Irno se considera injuriado em duas linhas, pinçadas num texto de 450 páginas: “Nem parecia um policial. Tinha a cara e o focinho de um burocrata medíocre e exótico de algum escritório infecto de contabilidade da periferia”.
No julgamento de primeira instância, em que perdeu, o ex-policial alegou que fora tratado como um animal. No dia 6 de julho do ano passado, a juíza Cláudia Maria Hardt, da 18ª Vara Cível do Foro de Porto Alegre, julgou improcedente a ação do seqüestrador do DOPS, que ela define como “triste episódio contado no livro (…) relato pertencente a um tempo (que foi) ‘página infeliz da nossa história’, nas palavras do próprio Chico Buarque”.
Na apelação, o servidor aposentado da Segurança Pública defendeu que a publicação utiliza palavreado acusatório e ofensivo contra sua pessoa, o que levou a população a acreditar novamente que ele era um criminoso. Ressaltou que o livro o aponta como autor do crime, sem informar a respeito de sua absolvição em processo criminal no então Tribunal de Alçada (grau recursal). Apontou, ainda, que foram publicadas fotos suas sem seu consentimento.
A defesa do escritor e da editora afirmou que o livro é baseado em reportagens já publicadas na Revista Veja, portanto nada de novo a respeito do apelante foi divulgado, incluindo-se as fotos. E enfatizou que a publicação limita-se a narrar fatos ocorridos.
Para a relatora da apelação, desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi, não se verifica a intenção do escritor de macular a reputação do servidor, apesar de satirizar e criticar seu modo de agir.
Citando sentença da magistrada de 1º Grau, Juíza de Direito Cláudia Maria Hardt, observou que a pretensão da obra foi clara: expor ao publico profunda pesquisa acerca de fatos ocorridos em época em que tais informações não poderiam ser publicamente difundidas sem retaliações. Assim, nos tempos, atuais, tem-se que a liberdade de manifestação, quando exercida regularmente, não denigre o direito à imagem. Enfatizou que a ausência de menção ao recurso que absolveu o servidor no Tribunal de Alçada por falta de provas não afasta essa conclusão, já que a obra traz uma coletânea de reportagens de todo um acontecimento, não sendo centrada no autor da ação.
A magistrada referiu que não é possível limitar a criatividade e liberdade de escritores que abordam tema delicado como esse, pois se corre o risco de constranger o espírito investigativo dos repórteres e de encobrir informações necessárias para a fundamentação de nossa consciência crítica.
Ressaltou ainda estar presente, nesse caso, o interesse da sociedade e da própria história ao conhecimento, ainda que parcial, dos fatos ocorridos em recente período político, conhecido pelo lado negro da intolerância, da prepotência e da ausência de liberdade.
Os desembargadores Iris Helena Medeiros Nogueira e Leonel Pires Ohlweiler acompanharam o voto da relatora.
Sequestro dos Uruguaios
O livro “O Sequestro dos Uruguaios” reconstitui com riqueza de detalhes um dos episódios emblemáticos dos regimes militares que assolaram o continente sulamericano, na segunda metade do século passado.
O seqüestro foi uma operação conjunta e clandestina de policiais brasileiros e uruguaios, perpetrada em novembro de 1978.
As vítimas, Universindo Díaz e Lílian Celiberti e os dois filhos menores de Lílian, foram apanhados em Porto Alegre e entregues na fronteira aos agentes da repressão uruguaia. Díaz e Celiberti eram militantes de uma organização de esquerda que combatia a ditadura no Uruguai e que estavam refugiados no Brasil.
Um detalhe impediu que a operação fosse um êxito completo, como foram muitas outras. Um telefonema anônimo para a redação da revista Veja, em Porto Alegre, levou Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Batista Scalco a um apartamento no bairro Menino Deus, onde os dois uruguaios estavam morando. “Está ocorrendo um seqüestro”, disse o informante.
Quando os dois jornalistas chegaram ao apartamento, Lílian e Universindo já estavam nas mãos dos agentes da repressão, que aguardavam para apanhar outro militante – Hugo Cores, o chefe do grupo.
Lílian abriu a porta, mas não conseguiu falar nada. Dois homens que estavam no interior do apartamento apareceram, de armas na mão. Um colocou a pistola na cabeça de Cunha e o outro fez o mesmo com Scalco.
Os jornalistas se identificaram e depois de breve interrogatório foram liberados, com a recomendação da nada falarem, pois se tratava de uma operação para apanhar uruguaios ilegais no país.
O seqüestro seguiu seu curso. Em poucos dias, os dois uruguaios e as crianças estariam em Montevidéo, nas mãos dos agentes da ditadura uruguaia.
Outro detalhe seria decisivo para desvendar toda a história: Scalco, experiente fotógrafo de futebol, reconheceu o homem que apontou a arma para sua cabeça. Era o ex-atacante do Inter, conhecido como Didi Pedalada, que se tornara agente do Dops.
A partir desta pista, os jornalistas desvendaram a operação. O segundo homem seria idendificado quase dois anos depois – era João Augusto da Rosa, que usava o codinome de Irno.
A identificação de Didi foi cabal e ele chegou a ser condenado. Mas a identificação de Irno, através de fotografias, foi insuficiente. Embora denunciado pelo promotor e condenado em primeira instância, ele foi absolvido, em recurso, por falta de provas.
As provas que poderiam ser decisivas contra ele – o testemunho dos seqüestrados – não puderam ser usados. Quando ele foi absolvido, Lílian Celiberti e Universindo Dias, estavam incomunicáveis no cárcere da ditadura uruguaia.
Uma página negra da prepotência e vergonha da história recente da ditadura na América do Sul.
Essa figura como é descrito, figura medíocre, “infecta de algum escritório de contabilidade da periferia” enfim, rato de esgôto, não merece sequer a água que consome ! Parabéns ao Tribunal de Justiça.