O zelador dos mortos

Por Sindia Santos, especial para o Jornal Já
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Cuidar de mortos não é tarefa fácil. Ainda mais quando se trata de mortos imortais. Mas Francisco Pinheiro Filho, de 62 anos, tira o trabalho de letra. Ele zela para que a vida de seus mortos seja mais do que palavras, já que os seus mortos cuidaram para que toda e qualquer vida seja imortal. No final, todos falam a mesma língua, com letras diferentes.
Devagar, Francisco emerge da cova numero 20 do mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Nem morto, nem imortal, Francisco é o zelador do mundo dos mortos, o guardião que retém a chave da última página do livro da vida dos 67 escritores lá enterrados.
Um balde, outro, e mais outro; um dia, dois, três. Tudo que fora Antonio Callado (1917-1997) repousa numa urna plástica sobre a lápide seguinte. Morrer é deixar de existir. No fundo da sepultura escura, a lama da existência.
Os braços magros de Francisco tremem, gotas de suor desfiguram-lhe o rosto, enquanto pás de lama preta são retiradas do buraco úmido que fora a morada do escritor niteroiense por onze anos.
– Imagine só: a viúva viu o corpo boiando!
A sexta alça do caixão aparece. Fatigados, os músculos de Francisco davam sinais para não prosseguir. Então, ele pára, fuma um cigarro. Morto não dá trabalho. Ele ri.
A tarefa segue, a luva volta a grudar-lhe nos dedos.
– Esqueci de trazer o talco… O suor escorre de dentro das mãos de borracha.
Viver era rotina de eternidade. Sem glórias, Francisco vence a briga contra a infiltração que com ganas de Rio Estige, o mitológico pântano de Dante, veio reclamar os imortais do mausoléu.
Do alto do cemitério São João Batista, no bairro carioca de Botafogo, as sepulturas se misturam às casas dos morros Tabajara e Santa Marta. No Corcovado, o Cristo pétreo debocha da tentativa de separar da vida a morte. Na entrada principal, a memória de Francisco retrocede 13 anos e mais uma vez ele vê o pai chorar diante de uma sepultura.
– Eu poli isso aqui na mão em 1942 – o pai confidencia ao filho, alguns meses antes de morrer. Afastado fazia dois anos do cemitério, sentia falta do trabalho que exercera por mais de 60 anos, assentando mármore, entalhando nome e data nas sepulturas. Parou porque um dos pulmões secou, efeito do pó de mármore inalado.
– Era outra época. Não se trabalhava com proteção. Meu pai aprendeu tudo com os italianos, principalmente com Tito Bernucci. Trabalhou também com Mario de Murtas, Heitor Usai e Mario T. Urata. Eles e muitos italianos principalmente desenharam e esculpiram quase tudo o que está aqui.
O costume de se homenagear os mortos com obras de arte veio para o Brasil na primeira década do século XX. São Paulo e o Rio, após a Proclamação da República, viviam o momento da Belle Époque brasileira e o ideal de vida dos noveaux riches era a imitação dos hábitos parisienses.
Cemitérios que recebiam todo tipo de sepultamento, na virada do século passaram quase que exclusivamente a receber pessoas da classe média alta e da burguesia. O ornamento luxuoso representava a importância que o morto tivera para a sociedade.
Assim, a corrida do ouro consistia não em achar pepitas, mas em contratar artistas à altura do defunto. Amigos e familiares com muito afinco e alguns contos de réis a menos contaram com o apoio de artistas como Jean Marie Joseph Magrou, Victor Brecheret, Amadeo Zani, Elio de Giusto, Ottoni Zorlini, Rodolfo Bernardelli entre outros.
Depois da II Guerra Mundial, ficou mais caro importar o mármore de carrara ou italiano, o preferido da maioria dos artistas. Sem matéria prima, a produção de obras nos cemitérios foi gradativamente diminuindo. Atualmente, poucos artistas se dedicam à arte tumular.
Caminho sem volta
Pouco antes do pai de Francisco morrer, veio o convite para trabalhar na academia. Tudo por causa da ausência da letra “a” na frase que acompanha a imagem de Machado de Assis na entrada da ABL: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”. Tão ilustre escritor não suportaria frase lhe faltando artigo. Então, Josué Montello, na época presidente da academia, chamou Francisco, que há 12 anos trabalhava no São João Batista, para consertar o erro.
– Eu, que nem completei o segundo grau, corrigia a frase do grande mestre da literatura. Ainda hoje o “a” me parece sobrar.
Os primeiros passos nesse caminho foram dados sem saber que uma vez lá, não há como voltar.
– Nunca imaginei que eu viesse parar aqui. Assisti meu pai em sua tarefa, sem domingo, sem feriado.
Feito Sísifo, Francisco fora condenado não a rolar, mas a entalhar a pedra. E ao acabar o trabalho, entra outro morto, e outra pedra e outras letras.
Três As, dois Ls, dois Ns, três Os, um C, um I, um T e um D; essas eram as próximas letras. O corpo exumado de Antonio Callado iria para o ossário, uma parede onde já descansavam Guimarães, Bandeira, Cecília Meirelles e muitos outros.
Sobre a tampa de mármore poroso Francisco cola os nome, depois as datas. A vida é o breve espaço entre o nascer e morrer. Por isso, as visitas são escassas, mesmo quando se trata de imortais.
– Às vezes, algum colégio vem aqui, mas é raro. As pessoas não gostam de cemitério. E estão certas. Quem gosta de lembrar que um dia vai morrer?
O sino da igreja São João Batista que fica na Rua Voluntários da Pátria toca. Meio-dia. O sol reflete nas campas de mármore e ofusca a visão. Duas campas em especial chamam a atenção. Odete e Betinha, nove e seis anos. Os túmulos mais visitados do cemitério. Elas fortalecem a crença de que fortes são as almas do São João Batista. Placas de agradecimento por pedidos concedidos se espalham por suas sepulturas. Não é difícil acreditar em milagres num cemitério cujo solo foi inaugurado por uma criança. A menina Rosaura ia completar quatro quando foi enterrada em 4 de dezembro de 1952, pouco mais de um ano um ano após a criação da necrópole.
– Dizem que essas crianças fazem milagres. Depois de morto, todo mundo faz.
Francisco não precisou morrer para fazer o milagre de encontrar um caminho com sombra em meio ao deserto fumegante de lápides e chegar até o Bar do Srº Cícero, onde almoça quase todos os dias.
– Quem trabalha aqui sabe que a Rua das Àrvores, ou Aléia 10, é o único lugar que dá para respirar esse horário. Agora é só cruzar a Rua General Polidoro.
Bolo de fubá, filé de frango, lingüiça, salgados. Francisco olha e desiste. Desde que fizera uma cirurgia para extirpar uma úlcera estomacal, perdera o apetite e mais dez quilos que teimavam em não voltar.
– Me vê um café, Cícero. Vou almoçar um sanduíche que trouxe.
A orientação médica é comer mais, fumar menos e descansar um tanto entre uma coisa e outra.
– Fico muito só ali em cima, daí eu fumo, fazer o que… Um maço por dia, tudo bem que às vezes divido com as pessoas que trabalham por aqui. É muita gente me pedindo.
Retirar do esquecimento
Naquela manhã de fevereiro, os cigarros ultrapassariam a cota diária. Um número errado no pedido de exumação do corpo da esposa do acadêmico Hermes Lima trazia problemas a Francisco, obrigando-o a subir e descer dezenas de vezes inúmeros degraus de escada até a administração do cemitério.
Hermes Lima foi quem criou o mausoléu, em 1962, por meio de um decreto-lei. Seu corpo fora exumado em 1996, e desde então, aguarda a exumação da esposa para se juntar à parede com os demais escritores.
– O número da sepultura é 28. No ofício da ABL está 20. O funcionário do cemitério não quer fazer a alteração à mão porque se trocar aqui, terão de trocar nos registros da Santa Casa, que administra tudo isso aqui.
Enquanto aguarda por uma definição, Francisco varre, tira o pó, capina, e mantêm limpas as sepulturas que ficam dentro e fora do mausoléu. Não é outono, mas o chão está repleto de folhas envelhecidas.
– Exumar é tirar do esquecimento um parente, a saudade, e muitas vezes a solidão. Também é lembrar que aqueles ossos sem cor e sem vida são o destino de tudo o que respira. Escritor quando morre é como os outros. As belas palavras não lhes rendem vida eterna. Não há nada a fazer.
Duas crianças se aproximam a correr entre as campas do cemitério. Do alto do Morro Tabajara, a mãe as olha de casa.
– Aonde vocês vão com tanta pressa? – pergunta Francisco.
Tuiú  e sua irmã param.
– Eles passam por aqui todo dia, usam o cemitério de atalho para chegar em casa. Ali em cima é um lugar perigoso, de muita miséria. E o que mais assusta é como a gente pode se acostumar à miséria.
Francisco tira três reais do bolso e entrega às crianças, que sorriem, acenam para a mãe e seguem morro acima. José de Alencar e sua Georgina testemunham a cena, guardados por duas imagens esculpidas à semelhança de fantasmas, esverdeadas, sem face, que se escondem atrás do véu do abandono.
– Esse é um dos escritores que mais gosto, mas essas imagens são assustadoras. Não acredito em assombração, mas há alguns anos encontrei uma mulher morta em frente à sepultura dele. Era moradora de rua e costumava tomar banho num tanque que havia aqui embaixo. Um dia se sentiu mal, coitada…
Em cada uma das quadras é isso o que Francisco vê. Histórias envoltas em mistério que não seriam mais contadas, congelariam num último momento: A jovem morta que emanava cheiro de rosas quando a mãe vinha visitá-la; o velho velado que apareceu para um dos coveiros ordenando que retirassem a coroa de flores de cima da sepultura; a estátua de um imigrante italiano que levou um tiro na bunda de um segurança, que acreditava acertar um ladrão de túmulos; o escritor que se matou no dia de Natal por terem descoberto sua homossexualidade; o outro que fora assassinado pelo amante da esposa, homem que posteriormente também lhe mataria o filho.
Não tivesse o fósforo acabado, Francisco ascenderia o quinto cigarro em menos de duas horas. Do lado de fora do mausoléu, o vento forte amenizava o calor de 35 graus e jogava pelo chão as folhas que Francisco havia juntado. Um sujeito magro de rosto avermelhado, cego de um olho passa por Francisco e o cumprimenta.
– Esse é o Zé, um dos jardineiros do mausoléu.
Toda a energia da construção é desligada para que Zé possa molhar o jardim. O mausoléu fica na escuridão.
– Li poucos dos que estão enterrados aqui. Há muitos juristas e políticos. Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Jorge Amado, José de Alencar, esses todo mundo lê.
Naquela noite, Francisco não conseguiria assistir ao jornal. Cansado, tomaria banho, jantaria e dormiria em frente à televisão. No dia seguinte seria a exumação da Srª Lima. A documentação estava ajeitada. Junto aos coveiros e ajudantes, Francisco esperaria por horas o filho que não chegaria para acompanhar a exumação do pai.
– Poxa!, estou desanimado. Sei que é um momento difícil para a família… Não falei para você? Ninguém gosta de cemitério. Estão certos. O que pode ser melhor do que a vida?

0 comentário em “O zelador dos mortos”

  1. Matéria impecavél , interessante de ler com todas as informações necessárias
    e com o jeito único e inteligente da jornalista Sindia Santos.

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