Se me coubesse escolher um caso exemplar nessa geração de jornalistas gaúchos que enfrentou a ditadura militar, eu não hesitaria em apontar o nome de Osmar Béssio Trindade.
Ele era desses que nascem prontos, nos quais o tempo e a experiência só fazem aperfeiçoar as qualidades inatas.
Conheci-o na nossa Santana do Livramento, eu era um garoto imberbe, ele já repórter da Folha Popular, o jornal editado pelo Ivo Caggiani.
Fazer a cobertura policial num jornal do interior, ainda mais numa cidade como Livramento, não é para qualquer um. A praxe, para o repórter que tem amor à própria pele, é copiar estritamente o livro de ocorrências e, mesmo assim, com muito tato.
Pois, como descobri mais tarde, o Trindade já fazia o que nem os repórteres da capital faziam: apanhava o registro, ouvia os policiais, as pessoas envolvidas, ia no local ouvir as testemunhas, para então montar o seu relato, que muitas vezes contrariava a versão policial.
Coragem serena
Não me lembro que tenha sofrido alguma vez represália ou agressão e nisso certamente influía outra de suas grandes qualidades – a coragem serena, sem arroubos, nada fronteiriça, a firmeza tranqüila com que defendia o seu exercício profissional.
Reencontrei-o anos depois na Folha da Manhã, onde ele entrou como repórter e logo se tornou o chefe de uma equipe jovem e aguerrida que sacudiu a modorra do jornalismo oficioso que se praticava na Casa de Caldas.
Atento e meticuloso, não deixava passar nada e na zoeira daquela redação ensandecida era um ponto de equilíbrio – o chefe que não precisava levantar a voz, o líder que motivava pelo exemplo, o colega mais velho que tinha paciência com os focas, o profissional rigoroso que não dormia se levava um furo da concorrência.
Quando a truculência fez sucumbir a “Folhinha”, ele mudou de trincheira e, com a mesma serenidade e a mesma competência, foi continuar sua tarefa na Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. Muito do sucesso e do prestígio que o Coojornal alcançou se deve à sua firme liderança na chefia de reportagem.
Coojornal
Depois, quando a Coojornal, acossada pela brutal repressão do regime militar, entrou em parafuso, ele aceitou assumir a presidência como um nome de consenso para tentar salvar o projeto. Era tarde.
Pouco depois, decepcionado com os rumos que o jornalismo tomava, decidiu sair do país. Foi para Moçambique. Ele achava que um jornalista devia estar sempre do lado dos mais fracos. De volta ao Brasil, foi trabalhar em Macapá e, nos últimos anos, mudou-se para Brasília, mas não conseguiu se adaptar ao pragmatismo dos novos tempos, em que para sobreviver é preciso estar mais atento às conveniências do que aos princípios.
Sobretudo, Osmar Béssio Trindade era um homem generoso. Que o digam os repórteres que trabalharam (e muito aprenderam ) com ele: Caco Barcelos, Erni Quaresma, Caco Schmitt, Najar Tubino, André Pereira, Rafael Guimarães, Carlos Wagner e tantos outros. Eu perdi um amigo, um irmão. Para todos nós, que acreditamos que essa profissão pode ter algum sentido, sua morte é uma perda inestimável.
O que os jornalistas que participaram da Coojornal esperam para contar em livro a história dessa intrigante cooperativa que conseguiu unir, pelo menos por algum tempo, uma das categorias profissionais mais desunidas do país ?
Um necrológio à altura de um herói quase anônimo do jornalismo. Mais do que uma matéria, é um editorial sobre a dignidade do nosso ofício.
Bicudo, Fiquei sabendo hoje pela manhã que o Trindade morreu (através de um telefonema do Rafinha. Já não sou mais o mesmo bem informado que era quando convivia com vocês, meus professores do bom jornalismo. O que dizer sobre ele Trindade, talvez um jornalista como poucos, nesse país onde a grande imprensa aboliu o jornalismo investigativo. Estou triste
Caro Elmar,
curiosa a vida que nos faz voltar à juventude quando se perde um irmão. O Trindade foi um sopro na alma da gente, uma lenda viva, como disse pros seus filhos no velório. Bastava olhar aquela multidão em volta no João XXIII pro adeus a quem fazia mais de 20 anos, no mínimo, estava longe daqui pra se ver o quanto ele era um sujeito especial. Adorava o Trindade e só lamento ter trabalhado – e convivido – tão pouco tempo com ele na Folha da Manhã e na Coojornal.
Perdemos todos um pedaço de vida, Elmar. Brilhante homenagem.
Forte abraço, irmão.
O Bico tu matou a pau a respeito do perfil nosso velho Trindade. Mas eu também recordo dele em volta dos espetos, enredado com as costelas, linguiça apimentadas e velha ovelha. A pinga rolando pra valer, e o samba comendo solto. Entre uma virada na carne uma mexida no carvão ele arrastava um pé, bem esperto. A morte é o caminho de todos né maneca. Mas eu estou feliz por que eu conheci e convivi com este baita cara.
Assisti ao documentário Loki – Arnaldo Baptista, com e sobre o gênio líder dos Mutantes, num dia e no seguinte morreu Osmar Béssio Trindade, um dos dois maiores nomes do jornalismo gaúcho, ao lado de Elmar Bones.
No final de 1970 foi criado em Porto Alegre o jornal Folha da Manhã, um filhote da Companhia Jornalística Caldas Júnior, do barão Breno Caldas. Ele fora uma das cinco maiores fortunas do país e era amigo muito próximo dos ditadores militares, que iam churrasquear em alguma de suas fazendas a cada visita ao Rio Grande. Curiosa a Folhinha. Sua base (diretor, secretário de redação, chefe de reportagem) era feita gaúchos criados na primeira equipe da então revolucionária Veja. José Severo, Elmar Bones (Bicudo), Pauletti. Com eles, um talentoso grupo de editores acima dos 30 e abaixo dos 40 anos. Veríssimo era colunista, Ruy Ostermann, editor de esportes. E nós, uma gurizada ainda não chegada aos 25, alguns recém formados em jornalismo, muitos ainda estudando e vários de outras formações, como eu, estudante de Arquitetura, vindo da Rádio Continental.
No auge da 1120 achei que estava na hora de fazer jornalismo “a sério” e fui bater na Folha da Manhã. Procurei pelo Bicudo e pedi emprego. Perguntou-me o que gostaria de fazer. Tudo – respondi -, menos Polícia e Esporte. Ele apontou para um índio de olhos azuis, adiante, e disse-me: amanhã te apresenta àquele cara. Dia seguinte cheguei cedo e o Trindade (era o índio) me deu a pauta: o julgamento do Camisa Preta, “um bandidaço”, informou, “matou muita gente, sempre com mais de 10 tiros”. Descobri, então, que iria trabalhar na editoria de Polícia… Começaria aí meu melhor curso de jornalismo. Na volta do julgamento, Trindade me levou para o café, no andar acima da redação, junto com o outro repórter (Erni Quaresma, que havia se formado em jornalismo num dia e uma semana depois embarcara num navio em Rio Grande, sua terra, para uma rodada de um ano pela Ásia e Austrália, sempre a bordo). No café, minha primeira aula: “o que aconteceu lá?” Todos os dias ele faria isso: um café antes que descêssemos para escrever. Percebem o que ele fazia? Ao te pedirem para contar um fato qualquer da vida cotidiana, inicias pela síntese, pelo mais importante, depois explicas ou justificas como aquilo aconteceu, e por fim “no que vai dar”, as consequências. E nos perguntava muito sobre o tal assunto. “E o que o cara fez? E quem viu? E como terminou?”
Trindade começou no jornalismo em sua terra, Santana do Livramento, na Folha Popular. Depois foi para A Platéia, impressionante empreendimento de um homem só, que chegou a ser distribuída, de avião, até em Cruz Alta. De modo assemelhado, Toscano Barbosa havia feito com ele (e com Kenny Braga, Danilo Ucha, Carlos Urbim, Riomar Trindade, Waldoar Teixeira – o “professor Rayath” e dezenas de outros, também filhos dessa escola). Toscano catava a gurizada que queria ser repórter e a pautava. Na volta botava o rapaz sentado à ponta de sua mesa e o interrogava. O que aconteceu? E ia escrevendo a matéria. Se faltava algum dado, explicava porque era importante e o mandava voltar e perguntar. Trindade falava sobre o Toscano sempre com muito carinho (afora a admiração por seu brio: vendeu um a um seus bens para manter o jornal funcionando e não render-se à ditadura, que o queria calar).
Pois todos os finais de tarde Trindade pagava cafezinho ao Erni Quaresma e a mim somente para que organizássemos as idéias. Ao descer para a Redação, a matéria já estava mentalmente estruturada. Restava apenas datilografá-la. Depois era só o Chico Reis (com seu belo texto) “dar uma penteada”, como dizia o Trindade.
Quando cheguei à Folhinha havia, colada à parede da Editoria de Polícia, uma lista de expressões que deveríamos evitar: “decúbito dorsal, viatura, tresoitão …”, que demarcava uma diferença radical da tradição da reportagem policial de até então. Mas havia mais nas regras do Trindade: não escrevíamos “elemento, atitude suspeita, meliante”, fixando um claro limite de respeito à lei, aos direitos humanos. Nem podíamos publicar versão oficial não apurada, o que significava que não se admitia a polícia utilizar a imprensa para encobrir ou justificar vinganças e massacres. Nessa mesma linha, outra exceção digna estava ali ao nosso lado, na Folha da Tarde, com Antoninho Gonzáles e Tibério Vargas Ramos. Muito rapidamente a Editoria de Polícia da Folha da Manhã passou a descolar-se daquela tradição policialesca e a firmar-se como um espaço de investigação e denúncia à tortura. E logo rompeu outra tradição. A praxe era as Editorias de Polícia ser ocupadas por policiais ou filhos de policiais, ou jornalistas com vocação policial. Era o final da escala profissional. Um lugar onde se trabalhava apenas nos poucos meses de estágio, antes de ir fazer o “jornalismo de verdade”. Pois a Editoria de Polícia da Folhinha, sob Osmar Trindade (e, muito, graças ao brilho do Erni Quaresma, o maior repórter policial que conhecemos), passou a ser um lugar de prestígio, desejado por jovens repórteres, inclusive mulheres, o que era muito estranho à época. É que tudo naquela editoria parecia-se com o que pretendíamos então: combater a ditadura, a tortura, aprender jornalismo com o melhor professor que havia, e isso tudo num clima de permanente alegria, bom humor, confiança, incentivo, orientação, amizade. E liberdade para desenvolvermos textos bonitos.
No início dos anos 70 ainda era muito presente a influência da revista Realidade e seu namoro com o new journalism de Tom Wolfe, Norman Mailer, com uma estrutura de texto muitíssimo influenciada pela literatura e pelo cinema a la neo-realismo italiano. Não por acaso, muitos dos repórteres da Folha da Manhã terminaram dedicando-se, integralmente ou em parte, à literatura, ao cinema e ao documentário – Caio Abreu, Carlos Urbim, Sérgio Caparelli, Nei Duclós, Caco Barcelos, José Antônio Simch da Silva, José Onofre, Licínio Azevedo, Omar de Barros Filho, e a voz que voz fala…
Trindade está na base do estilo de texto solto que foi uma das marcas da Folhinha. Quando ele assumiu a chefia de reportagem, lutei para acompanhá-lo para a Geral. Uma manhã pego o jornal e leio a abertura de uma matéria da Rosinha Maria Bueno Fischer, que era mais ou menos assim:
“Cheguei ao portão, bati palmas e gritei: – Ó vizinha”.
Isso era o início! Aqui foi uma surpresa. Éramos vários repórteres em torno da mesa do Trindade, com o jornal aberto. “Mas isso pode?!” E sua resposta, risonha, tranquila, generosa como ele: “Se ficar bem…”
Minha faculdade de jornalismo foi cursada de madrugada na Itabira, a churrascaria do sogro do Kenny Braga, onde lecionavam Trindade, Bicudo, João Souza, Florianinho, numa mesa enorme e sempre lotada. Cinco noites por semana comíamos picanha com feijão mexido, regados com vinhos da Granja União, e contava-se muitos causos, falava-se da vida e da política. Dezenas e dezenas de pautas foram produzidas ali, quando se fazia jornalismo com repórteres na rua e na estrada.
Do Elmar Bones recebemos a melhor técnica em jornalismo – basta ler a Folha da Manhã, Coojornal, Já para comprovar que o Bicudo é o maior editor gaúcho. Do Trindade recebemos a orientação, o enfoque, a humanidade, a generosidade, a amizade, a solidariedade.
Numa madrugada de 1975 um grupo de policiais militares saiu numa caçada e botou abaixo uma favela. A Folhinha foi em cima, com muita força. Deu uma capa pesada. Ao longo do dia a Brigada Militar, “as forças” e o Governo pressionaram Breno Caldas. O dono do jornal chamou o diretor, Ruy Carlos Ostermann. Queria a demissão do repórter autor da matéria, para consolar a BM. Trindade recusou-se. “Sou o editor. Só há um responsável, eu”. Breno achou forte e insistiu numa cabeça pequena. Trindade não entregou ninguém. “Eu autorizei, eu orientei a matéria”. A decisão de Breno Caldas marcou o começo da rápida morte da Folha da Manhã. Determinou ao Ruy que demitisse o Trindade. Ruy recusou. – Demita o senhor, pessoalmente, porque eu estou me demitindo”. Naquela noite, num apartamento no Menino Deus, 25 jornalistas decidiram demitir-se, acompanhando Trindade, Bicudo, Ruy.
Pouco depois, na TV Gaúcha, para onde foram Trindade, José Antônio Vieira da Cunha e outros da Folhinha, houve algo assemelhado e todos foram demitidos. Nascia a Coojornal, a cooperativa dos jornalistas de Porto Alegre, com Vieirinha na presidência e Trindade na vice, dois anos depois ele próprio seria presidente. E aí já há muita história escrita.
Curiosamente, a última vez que nos falamos foi única em que ele foi duro comigo (estávamos em lados opostos na ronha da Coojornal e do nosso Sindicato, fins dos anos 70). Mas, mesmo nessa circunstância, mandou um recado de paz por minha esposa: “tenho que dizer umas coisas ao Tarso e ele tem umas coisas que quer dizer pra mim”. Muita delicadeza para com um cara que na época era muito brigão e fez grosserias até para amigos. Mas não nos encontramos para o acerto. Nunca mais nos encontramos nesses 30 anos. Perdi muito.
Mas perdeu mais quem não o conheceu.