Saída é uma lei geral da propina

GERALDO HASSE
Havia outrora, num programa humorístico de rádio, uma dupla de personagens que representavam o corruptor e o corrupto.
Eles dialogavam e não chegavam a um acordo, até que o primeiro dizia ao outro,      identificado como político ou funcionário público:
– Doutor, toque aqui neste objeto.
– Hã?
– Toque, Doutor, o senhor não vai se arrepender.
O outro tocava no “objeto misterioso” e logo ficava bonzinho. Estava implícito no quadro humorístico que o “objeto” era um pacote de dinheiro.
Passados tantos anos, ferve cada vez mais o caldeirão do gorjetório.
Enquanto o MPF e a PF juntam indícios e provas de “propinas” associadas a contratos superfaturados em encomendas da Petrobras – ficam para o segundo tempo, se houver, os contratos da Eletrobras e outros entes estatais –, resta esperar que no devido tempo o Judiciário esclareça o que é ético e permitido no mundo dos negócios em que o dinheiro público é usado para pagar serviços privados.
Se em todo negócio existe uma taxa de serviços, não seria mais racional criar uma lei estabelecendo as regras para a distribuição de propinas?
Não é segredo que o mundo dos negócios consagrou inúmeras formas de “gratificação” por serviços prestados. Veja-se quantos nomes tem a “coisa”.
Tome-se como referência o que fazem as igrejas. Foi na mais antiga delas que se estabeleceu o “dízimo” ou, seja, os fiéis deviam doar 10% dos seus rendimentos para sustentar os sacerdotes e seus cultos. É claro que ninguém doa esse percentual, mas se criou um teto que acabou se tornando a base de um império religioso.
Nos restaurantes e hotéis, institucionalizou-se a “gorjeta” de 10%, valor que pode ser maior, claro, dependendo da qualidade do serviço e da satisfação do cliente. Em muitos lugares, a gorjeta é legalizada como “taxa de serviço”. Em outros, foi abolida.
No mercado imobiliário, vigia antigamente a “taxa de corretagem” de 5% ou 6%, mas houve uma diversificação que pode ser resumida assim: enquanto nos alugueis a taxa de intermediação pode chegar a 10%, nas vendas de grandes apartamentos orçados em milhões, o corretor assalariado pela incorporadora se contenta com apenas 1%.
Nos remates de animais e leilões de mercadorias, o profissional responsável pelos negócios tem direito a uma “porcentagem” de apenas um dígito (5%, máximo) de cada negócio.
Em bancas de jornais (que estão minguando) e livrarias (dominadas por grandes redes), a “margem” é de 30%. Nas leis de incentivo à cultura e ao esporte, o governo federal contempla os intermediários com 10% do valor do projeto, cabendo 2% ao agente encaminhador da papelada e 8% ao captador dos recursos junto às empresas patrocinadoras.
No setor financeiro, entre as inúmeras taxas existentes, uma das mais peculiares é o “spread” bancário, taxa a que faz jus um banco ao agenciar ou intermediar um empréstimo de um grande banco. Por exemplo, o banco do estado faz o meio-campo entre uma empresa regional e o BNDES. Sai o financiamento e o intermediário recebe um spread de 0,5% sobre o valor total. Se rola algum por fora, nunca se sabe mas sempre se desconfia.
No mercado publicitário, a “comissão de agência” foi durante muito tempo de 20% sobre o valor dos anúncios e recentemente foi reduzida para 15%, queda compensada pela criação da “BV” (bonificação por volume), regra segundo a qual as agências recebem dos veículos um percentual das verbas programadas, o que redundou na concentração das veiculações e na cartelização da mídia.
Nas galerias de arte, a “comissão” vai de 25% a 50%. Nos contratos envolvendo jogadores de futebol e outros esportistas, rolam comissões igualmente polpudas, tanto que um dos maiores atletas brasileiros, Ronaldo Fenômeno, não deixou o mundo da bola, tornando-se empresário de coleguinhas como Neymar,
Na arquitetura, a convenção indica um percentual de 5% a 15% do valor da obra. No comércio de material de construção e em ramos afins (tintas, vidros, aço, móveis para auditórios etc), os compradores são aquinhoados com “descontos” ou com “agrados” depositados em conta-corrente ou em contas-laranjas…
Entramos agora no amplo universo das “consultorias” dos grandes negócios, cujas comissões variam tanto que adquiriram nomenclatura específica: “bola”, “graxa”, “propina”. Quem opera nesse mercado se identifica como “consultor”, nunca como “laranja” ou “lobista”.
Rico é o mundo dos engenheiros de obras públicas e vasto é o vocabulário desse mundo em que o essencial é invisível aos olhos. A linguagem do mundo dos negócios PP (público-privados) lembra o palavrório dos serviços de telemarketing, que prometem benefícios e vantagens que não serão cumpridos.
A maioria das pessoas está acostumada a viver nesse mundo de falsificação e mentiras, sujeitando-se a pagar o preço da convivência com a falcatrua, tal é a força do “objeto misterioso”.
Em grande número de situações, não há saída senão submeter-se. É o que acontece quando vem o guardador de carros e diz: “Pode deixar, Doutor, eu tomo conta”. A gente deixa, mesmo tendo consciência de que a desigualdade de renda entre um guardador e um proprietário de carro torna impossível um relacionamento confiável entre ambos.
É assim que bacanas e pés-de-chinelo realimentam, em diversos níveis e em todos setores, a cordialidade fajuta que mascara desde as relações sociais até as transações no mundo dos negócios.
Quem nos salvará de tanta hipocrisia? O juiz Sérgio Moro? O ex-ministro Joaquim Barbosa? O bispo Edir Macedo? Ou será que estamos condenados a conviver para sempre com a picaretagem e a falência ética?
Talvez seja ingenuidade esperar que o Judiciário ponha as coisas nos devidos lugares, mas nunca os brasileiros precisaram tanto de reflexões maduras e sentenças equilibradas sobre o ético e o lícito num meio cujo denominador comum é, de alto a baixo, o dinheiro.
Se em todo negócio há um percentual para remunerar ou gratificar o(s) agente(s) intermediário(s), a solução não seria tornar todos os contratos obrigatoriamente transparentes? Tudo indica que não há outro caminho.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Não se pode receber da verdade mais do que nela se investiu”
Milorad Pavitch, escritor sérvio (1929-2009)
 

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