Marília Veríssimo Veronese
Estive em São Paulo neste último fim de semana e, como sempre, me assustei com a brutal desigualdade, tão visível na capital paulista. Não que nas outras capitais não seja assim, mas a forma com que se mostra na metrópole paulistana sempre me choca. Muitos moradores de rua em situação de extrema miserabilidade ao lado de carros e lugares luxuosos e ostentatórios são uma visão, para mim, quase insuportável. Tudo aquilo que eu não aceito como natural me grita na cara e me ofende os olhos e a sensibilidade.
Nesta ocasião, eu e meu marido André precisamos comprar algumas coisas esquecidas e fomos até o supermercado Extra, na Av. Brigadeiro Luiz Antonio. Quando saíamos apressados, sacolas na mão, chuva caindo, sem guarda-chuva, André foi esperar o Uber na calçada, e ao passar vejo um homem, morador de rua, que chorava copiosamente abraçado ao seu fiel amigo cão, preto como ele, com olhar resignado perdido ao longe. Olhei pra eles e, entre lágrimas, o homem me pediu ajuda. Falei pra ele esperar um pouco que iria dar uma ajuda, corri para pegar minha bolsa que André levava a tiracolo, peguei 10 reais e voltei para alcançar a ele. Olhei-o nos olhos e as lágrimas lhe escorriam enquanto chorava um choro gemido, sentido, triste de cortar o coração, acariciando o cão como a se consolar da tristeza. Estendi o dinheiro, falei algumas palavras de esperança, acariciei o cão e me virei, pois o Uber tinha chegado e André já estava entrando no carro. Chovia e a umidade encharcava tudo ao redor. Virei as costas e caminhei sem olhar pra trás, me sentindo a escória do mundo. Tão pouco fazemos, tão pouco podemos. Contra essa indignidade cotidiana do sofrimento social, do sofrimento ético-político, étnico-racial, de classe, de gênero, do vergonhoso roubo de direitos e de dignidade humana básica, tão pouco… Nós, pesquisadores, manejamos os conceitos[1] na pesquisa participativa e etnográfica, mas em pouco eles auxiliam aqueles que inspiram sua formulação: as pessoas que choram na chuva, abraçados a seus cachorros, em situação de total abandono e desesperança.
Não é só uma questão socioeconômica, é uma questão filosófica que envolve nossa dignidade individual e coletiva. Não era pra ser assim, não pode ser aceito assim. Chorei no trajeto de volta ao hotelzinho simples que ficamos na rua Sílvia, pensando que aquelas acomodações que eu considerei ruins – para nosso padrão classe média – seriam um luxo para a dupla que eu acabara de deixar pra trás. O rapaz repetiu duas ou três vezes, “muito obrigado, moça, muito obrigado…”, e eu envergonhada não via razão alguma para ele me ser grato. Queria pedir-lhe desculpas, gritar perdão!, a angústia crescia e fomos dormir com imagens desoladoras da megalópole mais rica do país. Que não consegue proporcionar um mínimo de decência e dignidade a tantos de seus moradores. “Não existe amor em São Paulo”, pensava e sentia eu, dolorosamente, não conseguindo me esquecer deles… somos ligados às outras pessoas (ou a seres sencientes como os animais) por fios invisíveis, que são a matéria etérea dos vínculos sociais que conformam a humanidade enquanto comunidade e envolvem amor em diversos formatos. Os vínculos são a nossa essência. E não o egoísmo, como acreditam alguns equivocadamente[2].
No dia seguinte – desde os 15 anos de idade, quando li “E o vento levou…”, a máxima da egoísta Scarlett O’hara me inspira, “amanhã é um outro dia!”, – seguimos a vida e fomos a feiras de rua, eventos artísticos, tivemos contato com uma incrível diversidade cultural e de modos de ser e estar no mundo, que talvez só as grandes cidades multiculturais abriguem. Ao cair da noite, caminhando na Av. Paulista tomada de gente, de todos os tipos e jeitos, uma quantidade imensa de casais gays em completa liberdade e carinho (em duas horas, provavelmente vi mais deles do que vejo em um ano inteiro em Porto Alegre), shows, performances, artesanato e brechós ao ar livre, comidas e bebidas sendo preparadas na rua, tempos e espaços híbridos em ritmos e interações alucinantes, de repente me chama a atenção um “acampamento” de moradores de rua, catadores de materiais recicláveis. Eram pilhas de papelão ao lado do carrinho de tração humana, gente em cima de cobertores simples e… um carrinho de supermercado com seis filhotinhos minúsculos de gato, irresistivelmente fofos, aninhadinhos em cima dos panos que forravam o carrinho.
Paramos para conversar com os catadores (nesse caso também moradores de rua) e me encantei com os gatinhos. Conversa vai, conversa vem, eu acarinhando os fofíssimos felinos, e o zeloso tutor da mãezinha dos filhotes, uma gata bonita, altiva, bem cuidada e com uma coleirinha charmosa, me conta que uma mulher na rua entregou a gata pra ele e não contou que estava prenhe. Ele levou na veterinária – nos explicou que tem ONGs com veterinárias voluntárias que ajudam os moradores de rua a cuidar de seus animais, – e quando ela foi castrar, descobriu a gravidez. Ele ficou assustado, pois não tinha como manter os gatinhos. A veterinária disse que precisavam mamar 45 dias e só então poderiam ser doados. Já comem sachê, estão com um mês. Alcancei um dinheiro e ele agradeceu, dizendo que ajudaria no sachê. O cuidado com os gatinhos e a mãe deles era comovente. Todos muito bem cuidados e saudáveis. Continua ele:
-“O pessoal da zoonose também ajuda, leva a gente de carro quando a coisa aperta. Preciso comprar sachê, e quando não tem dinheiro tenho de caminhar muito até uma petshop que ajuda a gente também, mas é longe. Aqui na rua o pessoal ajuda, doa ração. Mas preciso de sachê pra filhote, agora! Só tô ganhando ração seca de adulto! A veterinária vai castrar eles e aí vou poder doar os filhotes. Não posso ficar com eles, se tivesse casa, ficava… mas na rua não dá. Se tivesse uma casa… quem tem casa pode ficar com eles.” O mundo pra ele é assim, dividido entre quem tem e quem não tem casa.
No meio daquele caleidoscópio cultural de muitas tendências, sabores e saberes, cheiros, gostos, cores, afetos e desejos, carros, gentes, fogos de artifício (até isso teve!) e alucinante movimento, ali ficamos um bom tempo, conversando com o catador sob os olhares e acenos de cabeça de uma mulher e um idoso, integrantes do grupo. Que moram ali na Paulista, dormem sobre cobertores e sob marquises e contam com a ajuda preciosa de voluntários. De qualquer modo, me senti um pouco melhor depois daquela conversa. Consegui até pensar/sentir, ao saber da rede de auxílio que eles têm com seus gatos, que existe sim amor em São Paulo.
E uma ideia ficou me martelando na cabeça e ainda continua, por isso a compartilho com vocês, concordem ou não (pois a esquerda tende a desprezar o micro e valorizar o macro, no campo da ação social): a enorme importância da solidariedade miúda, cotidiana, face-a-face, micro social e micropolítica, em tempos de retrocessos dantescos como o que vivemos. Urge estender a mão para aqueles que nos rodeiam nas marquises da vida, na chuva que cai e gela corpo e alma, corpos humanos abraçados aos não humanos, por vezes os únicos que lhes dão calor e afeto incondicional. Nas ruas das megalópoles contemporâneas homens e mulheres sem dentes, sem banho diário e sem refeições decentes e certas, abraçam cães e gatos também desvalidos e soltos na vida. Se entendem. Se apoiam. Se somam.
Como país, saímos de aproximadamente dez anos de crença relativamente otimista na macro política. Apesar dos pesares, dos mensalões, das alianças com Jucás e Sarneys e Cabrais, o Brasil saía do mapa da fome da ONU; as universidades se pintavam um pouco mais de negro e pardo; a água chegava aos sertões nas cisternas (que agora Temer quer secar); os pobres (incluindo alunos meus com seus depoimentos comoventes) podiam cursar a universidade e ter direito à ascensão social. Eu me sentia pessoalmente mais digna com isso; mais humana, mais feliz, mais gente.
Quando tudo se esboroou rapidamente, em coisa de dois anos mais ou menos, e fomos assaltados por uma quadrilha de bandidos, saindo das tocas no legislativo, executivo e judiciário (este último aparelhado pelo conservadorismo de direita de uma forma acachapante), por movimentos de extrema direita que condenam exposições de arte ao mesmo tempo em que direitos sociais (os parcos que foram conquistados) são retirados diuturnamente, nos vemos sem chão. Deprimidos, atordoados, desesperançados. E é aí que se destaca a possibilidade que existe nas miudezas do cotidiano: a solidariedade que impede a morte por inanição e o suicídio existencial.
Destacam autores, nas ciências sociais, como os que sugeri acima, que somos seres de vínculos. E que isso é o que vem nos mantendo vivos por milênios. A solidariedade – relações sólidas, – nos pode salvar da desesperança. Pratiquemos, pois, as solidariedades anônimas, cotidianas, aparentemente pequenas, mas hoje soberbamente importantes.
Amigos que passarem pelo Extra da Av. Bigadeiro Luiz Anatonio em Sampa, levem ração pra cachorro, comida para o homem triste, palavras amistosas e quem sabe até um abraço. Não tenham medo das pessoas nas ruas. Elas conversam, apertam a mão, recebem doações, trabalham, dividem o pouco que têm, são honestas e inacreditavelmente resilientes. Pelo menos a grande maioria delas. A vida de muita gente, em tempos que minguam os salários, empregos, auxílios, renda mínima, pode depender disso. E ficamos todos mais gente, mais dignos, mais completos. Porque somos seres de vínculos; também capazes de egoísmo e indiferença em nosso potencial diverso, contraditório e ambíguo, mas que sem a solidez das relações sequer sobreviveriam nesse mundo.
Pessoal que andar pela Paulista nas imediações do MASP, levem sachês para gatos filhotes na bolsa. Nosso amigo catador tem mais 15 dias para alimentar os filhotes antes de poder oferecê-los pra doação. Quem sabe vocês até adotam um, depois desse tempo?
Quando forem ali, numa exposição de arte contemporânea, ao enfrentar a caterva pseudo-moralista que hoje grassa, uma forma possível de resistência será auxiliar àqueles que, do outro lado da rua, lutam para criar gatos saudáveis. Para vocês verem como as nossas vidas são ao mesmo tempo ridiculamente pequenas e algo grandiosas; nossa existência, comezinha, vertiginosamente rápida, insignificante, pode guardar alguma importância na sua trajetória frágil; nossos grandes projetos, coletivos e pessoais, a maioria sob constante ameaça de desagregação e morte, são contudo vitais, inadiáveis. As solidariedades, pequenas e grandes, tais como a vida humana. Micro, mas também macropolíticas: porque haveremos de, um dia, retomar as instituições e fazer desse país um lugar minimamente decente. Até lá, a vida nos pede coragem, muita luta e alguns sachês de filhote de gato na bolsa.
[1] Sofrimento ético político e sofrimento social, ver respectivamente: [MIURA, Paula; SAWAIA, Bader. Tornar-se catador: sofrimento ético-político e potência de ação. Psicologia & Sociedade, 2013, 25.]
[VICTORA, Ceres. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 5, n. 4, dec. 2011.]
[2] Sobre vínculos sociais, ver: GAIGER, Luiz. A descoberta dos vínculos sociais. Os fundamentos da solidariedade. Ed. Unisinos, 2016.