MIRIAM GUSMÃO / O Jornalismo entre o cultivo da desinformação e o interesse público

Um alento: ficamos sabendo, nos últimos dias, que estudantes de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco realizam um trabalho social, na periferia de Recife, colaborando com as comunidades que inventam meios próprios para combater o novo coronavírus. O projeto que desenvolvem chama-se “Manda no zap” e consiste na produção de breves mensagens para celular, em que traduzem, em linguagem clara e simples, as orientações científicas para evitar a propagação do vírus e enfrentar as infecções. Algumas pessoas atuam como contatos, nas comunidades, recebendo as mensagens e se encarregando do compartilhamento em grupos de whatsapp. É uma iniciativa aparentemente pontual, que dá resposta a uma circunstância específica. No entanto, além de atender a uma necessidade coletiva momentânea e localizada – o que, por si só, é importante – a produção da informação, com as devidas fontes e a serviço de todos, reveste-se de um simbolismo maior, no momento em que tantos jornalistas dedicam-se à desinformação. A atitude desses futuros profissionais da comunicação nos traz esperança de dignidade, em meio à canalhice vigente. Podemos colocar em contraste atitudes como essa e a ação experiente de jornalistas sem qualquer compromisso social, que adquirem prestígio servindo a interesses inconfessáveis em jornais, portais e emissoras de TV e rádio. O auge da manipulação tem ocorrido nos espaços jornalísticos supostamente dedicados à análise das notícias, com pretensas interpretações especializadas. É nesse palavreado enganoso que fatos são omitidos ou distorcidos, declarações são descontextualizadas e ocorrem juízos de valor com ausência do necessário posicionamento equidistante em relação aos envolvidos. Sem desconsiderar que há exceções respeitáveis, podemos dizer que a desinformação vem sendo cultivada por dentro dos veículos que teriam a função social de informar. Um exemplo gritante desse fenômeno é o programa  Os pingos nos is, da Rádio Jovem Pan de São Paulo. Um desalento.

Desde o nome, o programa engana o ouvinte desavisado. A conhecida expressão “colocar os pingos nos Is” (que, em linguagem mais rigorosa, seria colocar os pontos nos ii) dá ideia de clarear informações; resolver questões duvidosas, obscuras ou incompletas; esclarecer. E o formato, com um âncora (apresentador) e três comentaristas, presumidamente de alta competência, tenta indicar que o ouvinte terá, sem qualquer esforço, as informações dissecadas, analisadas, com objetividade e credibilidade, doa a quem doer. Não é o que ocorre ao longo dos seis anos de existência desse arremedo de jornalismo que, na verdade, mesmo com as trocas de elenco, sempre esteve a serviço de ideologias, fazendo verdadeiras campanhas, dissimuladas ou não. No momento, esses agentes da manipulação da informação (cujos nomes não merecem referência)  estão empenhados na defesa do governo Bolsonaro e da presença de militares em áreas técnicas do governo, bem como na execração pública de quem levantar algum questionamento sobre a dramática situação do país na pandemia. O alvo dos ataques, tradicionalmente no âmbito dos políticos de esquerda e dos movimentos sociais, agora abrange também o Supremo Tribunal Federal, bem ao gosto do presidente da República e de sua família.

Ainda no dia 22 último, o programa voltava a fomentar, sempre partindo de informação distorcida, a pretendida crise entre o ministro Gilmar Mendes e as Forças Armadas. Com arrogância e falso moralismo, os comentaristas voltaram a adjetivar – chamando de leviana – a suposta afirmação do ministro, que teria ofendido a instituição militar, associando-a à prática de um genocídio. Nem mesmo a transcrição, na íntegra, por outros veículos de comunicação, das afirmações de Gilmar Mendes serviu para colocar os verdadeiros pontos nos is. As referidas afirmações ocorreram no dia 11 de julho, quando da participação do ministro e de especialistas em Saúde Pública numa live da revista Istoé, mas seu conhecimento integral em nada mudou a campanha manipuladora. Igualmente não motivou ponderação a nota que o ministro publicou no dia 14 de julho, contextualizando suas afirmações e afastando a hipótese de pretender ofender as Forças Armadas. Os comentaristas preferiram continuar sua pregação, usando como dado novo, sem alterar a linha de abordagem, um vídeo em que o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, falava do empenho da instituição no combate à pandemia. Não chamou a atenção desses “dedicados” analistas uma frase importante desse vídeo: o laboratório químico e farmacêutico do Exército aumentou significativamente a produção de cloroquina e de álcool em gel e distribuímos para as nossas organizações militares de saúde, colocando-os à disposição dos médicos e pacientes. Não era o intuito, mas eis que o vídeo traz mais uma comprovação da ação dos militares em sintonia com Bolsonaro e em dessintonia com a Ciência e com as orientações da Organização Mundial da Saúde. Como se sabe, a cloroquina não se mostrou adequada ao combate da covid19 e seu uso atestou incidência de efeitos colaterais graves, com risco e até ocorrência de morte.

O ponto central do debate promovido pela revista Istoé havia sido a preocupação de todos os participantes com os números alarmantes de infectados e mortos pela covid19 no Brasil, sem que exista uma política nacional integrada para o enfrentamento da pandemia. Os debatedores, na ocasião, apontaram como um dos grandes problemas a não nomeação, desde maio, de um ministro da área médico-sanitária para a Saúde, assim como o fato de o general que assumiu interinamente o ministério ter nomeado nove outros militares para cargos-chave da pasta, que deveriam ser ocupados por técnicos. Os debatedores refutaram, como tática politica inaceitável, a alegação de Bolsonaro de que o STF retirou o poder de ação da União e o entregou aos estados e municípios. Nesse contexto, o ministro Gilmar Mendes lembrou que o STF, na linha do modelo tripartite previsto na Constituição, reiterou a corresponsabilidade da União, estados e municípios, admitindo ações dos poderes estaduais e municipais, desde que pautadas por critérios científicos. A constatada negligência de Bolsonaro, sua falta de atenção à vida dos brasileiros, e a mencionada entrega de cargos a militares levaram o ministro do Supremo, nesse debate, a alertar que as Forças Armadas são instituição de Estado e não podem ser requisitadas para políticas de governo, e que o Exército não pode ser associado a um genocídio. Ainda na ocasião, defendendo a postura do STF diante da crise sanitária, Gilmar Mendes lembrou que foram suspensas normas relativas à Lei de Responsabilidade Fiscal, a fim de viabilizar a ação do governo na emergência. O ministro, além disso, levantou questões interessantes a serem pensadas, como o direito à boa governança, muito reconhecido na União Europeia. À luz desse direito, não seria aceitável o vazio no Ministério da Saúde. Também mencionou a desatenção às condições sanitárias da periferia, no Brasil, e, citando o economista José Roberto Afonso, com quem conversou a respeito, defendeu uma necessária Lei de Responsabilidade Social, talvez a ser pensada no pós-pandemia.

Como se pode constatar, é enorme a distância entre os acontecimentos e os comentários dos supostos analistas. Boa parte do público, que não acompanhou o referido debate, adotará como verdade a manipulação da informação feita por quem, supostamente, coloca os “pingos” nos is. Um dos três comentaristas, no dia 22, chegou a sustentar que o STF teria, de fato, impedido que o governo federal concretizasse seu plano de ação contra o coronavírus. Faltou dizer em que consistiria o plano de ação interrompido, algo além da inútil carga de hidroxicloroquina vinda dos Estados Unidos, da demissão intempestiva de dois ministros da Saúde, do foco único nos interesses empresariais, da incitação à desobediência às normas sanitárias, da destinação, por longo tempo, de apenas 29% do dinheiro disponível para as ações de combate à pandemia (conforme relatório do Tribunal de Contas da União), das afirmações desrespeitosas e insensíveis do presidente da República diante do luto de milhares de famílias. No entanto, os comentaristas manipuladores  prescindem dos fatos, não têm qualquer compromisso com a verdade. Não fazem jornalismo, apenas servem a jogos de interesses. Desse modo, negam à população o direito à informação, previsto na Constituição Federal de 1988. É o exercício desse direito que possibilita a democracia e a cidadania, com a inserção de cada indivíduo, como sujeito de suas ações, em questões coletivas. É com a informação que se torna possível o conhecimento de protocolos e a civilidade da população. A informação é também ferramenta de controle social, capacitando o monitoramento das atuações de governantes, permitindo a escolha consciente de representantes, a compreensão mínima dos contextos, a expansão dos projetos de vida.

Por isso é alentador saber que estudantes de Jornalismo, em Pernambuco e, possivelmente, em outros lugares do Brasil, não seguem o mau exemplo da canalhice vigente e mantêm vivo o compromisso com a informação. Aliados a voluntários, nas comunidades da periferia de Recife, realizam um trabalho social de extrema importância neste momento grave de pandemia. É a dignidade do jornalismo preservada, dentro da luta maior pela dignidade dos seres humanos, particularmente dos abandonados pelo Estado, em localidades pobres deste país tão desigual. No momento em que a rádio Jovem Pan e outros veículos manipuladores põem no ar os seus farsantes, é alentador saber que há ciclistas circulando por bairros, vilas e favelas, com aparelhos de som adaptados nas bicicletas, levando as necessárias informações aos moradores. E, driblando as Fake News do whatsapp, uma rede de informação valiosa consolida-se, ao mesmo tempo em que alicerça a formação de jornalistas que poderão recuperar a ética e fazer a diferença.

Miriam Gusmão é professora aposentada e jornalista.

3 comentários em “MIRIAM GUSMÃO / O Jornalismo entre o cultivo da desinformação e o interesse público”

  1. Como de costume mais uma ótima análise Mirian, parabéns por honrar o compromisso ético de fazer jornalismo com respeito a integridade dos fatos e com responsabilidade social.

  2. Este ótimo texto da Miriam Gusmão é alentador. Seja pela informação que traz sobre a ação desses futuros jornalistas da Universidade Federal de Pernambuco, seja pela crítica que faz ao jornalismo manipulador e desinformador com o qual temos que conviver, bem simbolizado nesse repugnante programa da Rádio Jovem Pan que ela cita.
    E, assim, seguimos com a esperança de tempos melhores …

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