Higino Barros
O sotaque, fortemente acentuado, dá uma pista de sua origem do interior gaúcho. “O tê demonstra de onde vem”, comenta brincando. Às vezes fala na terceira pessoa, se referindo a si mesma como a Gabriela. Tem noção de seu valor e o que representa sua escolha, pelo governador Eduardo Leite, a um cargo ambicionado no universo cultural gaúcho, principalmente no meio do tradicionalismo. Acentua com naturalidade “sou uma transexual em cargo público no governo estadual”. Na sua conversa há o uso frequente da palavra movimentação. Muitas da coisas que fala de sua vida explica como “movimentação.”
Nascida em São Vicente do Sul, em 1986, Gabriella Meindraid cresceu numa região intensamente influenciada pela cultura do campo e o cultivo das tradições gaúchas. Teve infância e adolescência convivendo com esse universo até 2015, quando em 2019 foi convidada a trabalhar na Secretaria Estadual da Cultura. A partir teve uma trajetória rápida e bem sucedida.
Para conhecidos, dá a impressão que depois dessa experiência executiva, estará pronta para ambições políticas eleitorais, se candidatando à vereadora, prefeita ou deputada. Por enquanto Gabriela Mendraid está mergulhada na sua função de Secretária –Adjunta da Cultura, ainda mais nos festejos farroupilhas , onde tem causa e vivência.

Está tendo experiência executiva ímpar, trabalhando ao lado da secretária titular Beatriz Araújo e de Ana Fagundes, a terceira pessoa na hierarquia da SEDAC. As três formam um trio de grande capacidade administrativa elogiada por admiradores e respeitadas por opositores.
Na entrevista abaixo, Gabriela Mendraid fala sua trajetória e trabalho com cultura gaúcha:
Pergunta: Quem é Gabriela Mendraid
Resposta: Minha trajetória sempre teve a presença da cultura. Pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Desde os seis anos já participava, essa foi a primeira aproximação cultural que tive. Seja dançando, seja em declamação, em concursos, sempre fui muito próxima desse universo tradicionalista, na infância e adolescência. Culminou com uma experiência muito rica, em 2015, quando em Santa Maria, quando fui Rainha do Carnaval. Foi outra aproximação importante na minha vida. Foram essas duas aproximações que fizeram a construção da Gabriela, próxima ao cenário cultural. Que me deram experiência e inclusive uma formação muito humana.
Eu morei em São Vicente do Sul até os 17 anos. Depois me aproximei do carnaval em Santa Maria até que em 2015, com 29 anos fui Rainha do Carnaval. A partir de 2019 vim para a Secretaria da Cultura do Estado. Assumi uma assessoria específica de Diversidade. Isso ampliou meu conhecimento com outras áreas, uma experiência mais rica e um trabalho mais consolidado.
Contato com outras áreas também, principalmente em uma aproximação para que a cultura chegue em todos os segmentos e que as pessoas possam conhecer mais, aproximar mais, ter mais contato com as instituições. Sempre coloco que uma das maiores dificuldades para quem é do interior é um maior vivência cultural, ter essa efervescência que se tem aqui em Porto Alegre.
As pessoas do interior, em geral, têm muito mais contato com o tradicionalismo e o universo do CTG. Que é uma raiz forte da nossa cultura e não tem aproximação com outras áreas culturais. Nesse sentido é que temos feito um trabalho muito forte aqui na SEDAC para descentralizar mais a cultura. Teatro, fotografia, valorização dos músicos de cada localidade, artes visuais e artesanato, são algumas das áreas. E tem sido efetivo porque cada vez que se vai ao interior a gente consegue ter um olhar mais atento de cada realidade.

Pergunta: Como veio parar na Sedac?
Resposta: Eu sou servidora pública na área administrativa do município de São Vicente de Sul. Em 2019 em razão da homenagem que recebi do Movimento Tradicionalista Gaúcho na Ciranda Cultural de Prendas da região, por ter sido a primeira mulher trans homenageada, pela trajetória cultural que eu tenho dentro do CTG, acabei sendo muito conhecida. Viralizou nas redes a informação dessa homenagem. Por ser uma mulher trans dentro de um ambiente tão machista, receber esse reconhecimento.
Isso chegou ao conhecimento da secretária Beatriz que na época, em 2019, ligou para a escola onde eu trabalhava, em São Vicente, e fez o convite para vir integrar a equipe da secretaria. Foi proposto para que eu assumisse uma nova diretoria, a da Diversidade que trabalhasse questões de gênero, racial, de Direitos Humanos, de respeito à diversidade. Propondo dentro da cultura reflexões para mudanças e quebras desses preconceitos, de dificuldades que ainda existem na nossa sociedade.
Foi nesse sentido que acabei assumindo essa assessoria. Minha trajetória no meio tradicionalista já tinha sido um desafio. Em julho do ano passado, fui novamente desafiada ao vir para cá, e assumir como diretora geral e secretária- adjunta da Cultura. Com todas as dificuldades da pandemia, em um processo de execução da Lei Aldir Blanc, com uma conferência estadual de cultura que acabei coordenando.
Pergunta: Sua convivência com o meio tradicionalista, conhecido de seu conservadorismo, como é?
Resposta: Noto que nós temos muito mais pontos positivos do que negativos, muito mais avanços nesse período do que qualquer época anterior. Acabou existindo preconceitos, mas a partir do momento que as pessoas foram conhecendo minha história e ela foi divulgada se iniciou um processo quer não tem como sofrer recuos. De avanço, de giro, de respeito às pessoas, de uma construção para diminuir esse machismo, essas dificuldades que existem no MTG, porque elas são de algumas pessoas. Mas não representam todo o movimento.
Quando existe uma série de ações de gestão de peões e prendas buscando um diálogo, mostra que o setor começou a se movimentar e tem visto avanços. Assim como minha presença na Secretaria da Cultura representa esse avanço. Por força das ações que propusemos e temos adesão das prefeituras.
Como o Janeiro Lilás, que é o mês da visibilidade trans; o mês do Orgulho LGBT, da Quebra contra o Racismo, onde temos uma comemoração específica ao Cinquentenário do 20 de Novembro, Mês da Mulher e várias outras ações, sempre buscando a quebra de preconceitos e dificuldades que temos na sociedade gaúcha dessas desconstruções que ainda são necessárias para que se consiga fazer com a cultura uma movimentação e mudança cultura para que se possa viver mais justa, mais igualitária e que pense nas pessoas e suas particularidades.
A importância que tem uma mulher trans em um cargo público de relevância dentro de um Estado tem enorme importância para o universo LGBT. É a primeira vez que isso acontece. São dois desafios. Um conseguir mostrar nossa capacidade de trabalho e abrir espaço para outras pessoas que são tratadas pela sociedade ainda diferentes do padrão que é imposto e consiga ocupar mais espaços.

Pergunta: alguma área oferece mais resistência ao seu trabalho?
Resposta: O cenário cultural tem a característica das pessoas possuírem mais diversidade e serem mais respeitosos nesse campo. É um meio que as pessoas conseguem ser mais o que são. O universo tradicionalismo é o que ainda tem mais preconceito. Vem da formação enquanto sociedade, de ser gaúcho, em ser homem ou ser mulher. Nos últimos anos as mulheres foram ocupando mais esse espaço masculino, como exemplo na área da Segurança, na Polícia Civil na Brigada Militar, então existe uma movimentação bem importante.
E mudança nesse comportamento conservador acontece também por iniciativa do governador Eduardo Leite, em entrevista que ele deu ao jornalista Pedro Bial, na TV Globo, ele comentou com naturalidade a minha escolha, uma mulher trans como Secretária-Ajunta da Cultura. Pelo que se saiba é um caso único no Brasil. Para mim é muito orgulho.

Pergunta: A relação da Secretaria da Estadual da Cultura com o interior, de municípios menores, como se dá?
Resposta: Desde o início do governo trabalhamos nos editais ter cotas específicas para os municípios de acordo com as regiões funcionais do estado. Isso aconteceu na aplicação da Lei Aldir Blanc, onde a maioria do dinheiro pelo sistema das cotas chegou no interior. Agora recentemente, em edital lançado para a área de Patrimônio isso também ocorreu. Um valor definido para cada uma das regiões funcionais. Para cada um seja contemplado.
Pergunta: Esse valor ultrapassou os 60% da verba destinada ao setor?
Resposta: Ele se aproxima bastante e nossa meta é que chegue à 70%. Esse número tem a dificuldade de chegar a esse resultado porque a maior parte da população está nos grandes centros urbanos, isso acaba refletindo nos projetos. No resultado da Aldir Blanc ocorreu que produtores contemplados aqui na capital contrataram pessoas de localidades do interior. Ou seja, isso chegou na ponta.
No início do governo iniciamos com um a Lei de Incentivo à Culrtura investindo R$ 36 milhões anual. Esse ano, no valor global, são investidos de R$ 56milhões e Com previsão de entrega o ano que vem em R$ 70 milhões. Isso proporciona que em todos os lugares e todos os cantos, os incentivos possam ser contemplados e possam fazer arte e cultura.
Pergunta: a Lei de Aldir Blanc provou muita reclamação por quem não foi contemplado. Nomes consagrados, inclusive. Como a Sedac lidou com isso:
Resposta: Eu vejo que, acima das reclamações, houve e há uma grande revelação e valorização de pessoas, já que trajetória cultural não se mede apenas pelo tempo, mas também pela relevância de seu trabalho. Pode ter 50 anos de carreira e não ter relevância nenhuma. Pode ter cinco e ter relevância. Isso foi revelado na Lei Aldir Blanc. De fazedores de cultura que nunca tinham chegado a receber um recurso de fomento do Estado. Aconteceu porque foram feitos editais específicos, para periferias por exemplo. Para bairros e municípios vítimas de mais violência, de mais racismo, mais vulnerabilidade das pessoas. Chegaram às pessoas fora desses cenários conhecidos, mas têm relevância e atuação social e contribuição cultural importante nas comunidades em que estão inseridas.
Todos merecem ser reconhecidos e valorizados, mas o recurso é finito. Assim parte deles foram priorizados.
Estado teve nesse período todo uma permanente Conferência Estadual da Cultura, foi o único estado brasileiro que fez isso nesse período, trazendo as pessoas de todas regiões e áreas, trazendo suas realidades e os editais se aproximaram mais dessas localidades. E número atingiu um grande número de projetos e de pessoas, trazendo assim a descentralização de forma efetiva, uma das metas da Lei Aldir Blanc.
Foi um ano de conferência. Os recursos chegaram a mais de 99,98% de aplicação, mais de CR 47 milhões, em todos os segmentos dos 12 colégios setoriais, com aumento no cadastro de produtores culturais, mais de 18 mil projetos inscritos nos editais. Em período que o setor atravessou enormes dificuldades, ocasionadas pela pandemia.
Temos agora pela frente o Programa do governador Eduardo Leite, avançar na Cultura. Historicamente estamos quebrando os recordes e iremos em busca de novas quebras de paradigmas. Para isso vão ser investidos R$ 74 milhões. Ou seja, temos muito o que fazer pela frente

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OS NÚMEROS PARA A CULTURA do RS
Com a sanção da Lei Aldir Blanc, a Sedac conseguiu distribuir os recursos emergenciais em pontos diversos, de forma a promover o sustento e a continuidade de ações culturais de todo o estado em um momento repleto de incertezas. Os editais da Lei Aldir Blanc têm como missão alcançar uma grande capilaridade territorial, passando adistribuir proporcionalmente os recursos nas nove Regiões Funcionais dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes).
Edital Produções Culturais e Artísticas: disponibilizou recursos para 100 projetos de fomento a produções culturais e artísticas nos mais variados segmentos, com investimento total de R$ 19,1 milhões.
Edital Aquisição de Bens e Materiais: disponibilizou R$ 7,3 milhões para 92 projetos de compra de bens culturais, equipamentos e materiais.
A Sedac também realizou processos de Chamadas Públicas, em que selecionou instituições parceiras para a colaboração no repasse dos recursos restantes da Lei Aldir Blanc. Por meio dessas parcerias, em 2021 foram publicados mais três editais. Esses contam com cotas sociais, assegurando vagas para autodeclarados pretos, pardos, indígenas, quilombolas, ciganos, mulheres trans/travestis, homens trans e pessoas com deficiência (PCDs).
Edital Criação e Formação – Diversidade das Culturas: selecionou 592 projetos de pesquisa, criação, formação ou qualificação na área da Cultura, com investimento de R$ 20 milhões e parceria com a Fundação Marcopolo.
Edital Ações Culturais das Comunidades: parceria com a Associação de Desenvolvimento Social do Norte do RS (ADESNRS) –
Central Única das Favelas de Frederico Westphalen e Cufa RS, distribuiu R$ 14 milhões em recursos para promover a estruturação e a qualificação de 4736 iniciativas realizadas por coletivos culturais de base comunitária,
Edital Prêmio Trajetórias Culturais – Mestra Sirley Amaro: o último utilizando recursos da Lei Aldir Blanc a ser concluído, premiou 1500 trabalhadores e trabalhadoras por suas trajetórias dentro do setor cultural. Ao todo, foram R$ 12 milhões distribuídos em prêmios.
Auxílio emergencial: R$ 1,5 milhão no pagamento da renda emergencial a 526 trabalhadores e trabalhadoras da Cultura, com o repasse de cinco parcelas de R$ 600,00 (pagas em cota única). Os pagamentos foram liberados em novembro de 2020.
Avançar na Cultura
O projeto Avançar na Cultura investirá R$ 76,1 milhões no setor até 2022, entre obras, fomento, editais e qualificações. É um investimento superior ao total realizado nos últimos oito anos no Estado.
Serão R$ 30 milhões aportados no Fundo de Apoio à Cultura (FAC) para o lançamento de editais. O primeiro, FAC Patrimônio, foi lançado em 31 de agosto, e selecionará projetos que desenvolvam atividades de preservação e promoção do Patrimônio Cultural do Estado e de qualificação das Instituições Museológicas do RS, somando R$ 3 milhões em investimentos.
Outros seis editais estão previstos até 2022:
▪ FAC Expressões Culturais (R$ 2 milhões): Culturas Populares e
Artesanato
▪ FAC Visual (R$ 1,5 milhão): Artes Visuais
▪ FAC das Artes de Espetáculo (R$ 8 milhões): Circo, Dança,
Música e Teatro
▪ FAC Publicações (R$ 1,5 milhão): Livro, Leitura e Literatura
▪ FAC Filma RS (R$ 12 milhões): Audiovisual
▪ FAC Territórios Criativos (R$ 2 milhões): Criações funcionais
(design, serviços e novas mídias)
Dados fornecidos pela Assessoria de Comunicação da Sedac