América Latina às voltas com a Política do Grande Porrete

O governo dos Estados Unidos (EUA) publicou, no dia cinco de dezembro passado, a National Security Strategy (NSS 2025), a Estratégia de Segurança Nacional do país. A NSS 2025 reafirma uma versão modernizada da Doutrina Monroe, com um “Corolário Trump” que coloca o Hemisfério Ocidental, que inclui as Américas do Sul, Central e do Norte, como prioridade central para os EUA.  Algo que não era tão explícito em estratégias anteriores, que focavam mais no Oriente Médio e na Ásia.

“Após anos de negligência, os Estados Unidos reafirmarão e farão cumprir a Doutrina Monroe para restaurar a proeminência estadunidense no Hemisfério Ocidental e proteger nossa pátria e nosso acesso a regiões-chave em toda a região”, diz o documento da Casa Branca.

“Recompensaremos e incentivaremos os governos, partidos políticos e movimentos da região que estejam amplamente alinhados com nossos princípios e estratégia. Mas não devemos ignorar governos com perspectivas diferentes, com os quais, ainda assim, compartilhamos interesses e que desejam trabalhar conosco”, afirma o governo Trump.

Apesar da retórica de uma retomada da Doutrina Monroe, a estratégia formaliza e dá maior publicidade a ações e políticas que os EUA, especialmente sob a administração de Donald Trump, já vinham adotando na prática na América Latina.

Os movimentos dos EUA em relação à América Latina vêm de longe. Em 2 de dezembro de 1823, o presidente, James Monroe (1817-1824), enviou a mensagem anual ao Congresso que tratava da política externa norte-americana, que passou a ser conhecida como “Doutrina Monroe”. Nas décadas seguintes, essa política foi evocada e adaptada por sucessivos presidentes para garantir a exclusividade dos interesses econômicos e políticos dos EUA no hemisfério ocidental.

A Doutrina Monroe ganhou notoriedade com o chamado Corolário Roosevelt, em 1904, um postulado de política externa, em adição à Doutrina Monroe, de autoria do presidente Theodore Roosevelt (1901-1909). No Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe estava escrito: diante de qualquer perturbação da ordem ou desrespeito a contratos em alguma parte do “Hemisfério Ocidental”, os Estados Unidos da América poderiam se ver forçados a cumprir o papel de “polícia internacional”.

Roosevelt explicou tais métodos em política externa como inspirados nos preceitos de um provérbio: “Speak softly and carry a big stick; you will go far” (“Fale macio com um grande porrete na mão, você vai longe”). Essa frase deu origem à expressão Big Stick Policy (“Política do Grande Porrete”).

Em essência, a NSS 2025 não representa uma mudança radical de direção, mas sim uma consolidação e uma declaração aberta de uma política externa focada na hegemonia regional estadunidense e na limitação de competidores, o que muitos observadores já identificavam nas ações práticas dos EUA. 

Um exemplo explícito é a intensa campanha de sanções econômicas contra a Venezuela, reforçada pela presença militar dos EUA no mar do Caribe com o pretexto de operações contra o narcotráfico. Além da apreensão, nesta quarta-feira (10), de um petroleiro venezuelano que transportava petróleo.

No entanto, o documento da NSS 2025 reconhece o fim do “momento unipolar” da predominância estadunidense, que durou cerca de 70 anos, com o surgimento de um sistema multipolar competitivo. A necessidade de adaptar a política externa e de segurança a essa realidade.

Neste cenário muitos estrategistas estadunidenses veem como vital para a segurança nacional manter influência econômica e geopolítica, inclusive através do dólar e de parcerias regionais, e um foco consciente em proteger o hemisfério ocidental.

A Casa Branca diz que “concorrentes” de fora do Hemisfério têm feito “incursões” no continente que prejudicam a economia dos EUA, referindo-se a China e Rússia. “Permitir essas incursões sem uma reação séria é outro grande erro estratégico americano das últimas décadas”, afirma a publicação.

Já em abril de 2025, o secretário da Guerra dos EUA, Pete Hegseth, afirmou que a China representa “uma ameaça ao Canal do Panamá”. Durante sua visita àquele país, Hegseth aventou abertamente a ideia de tropas estadunidenses retornarem ao Panamá para “proteger” seu canal estrategicamente vital.

China

A retórica da Doutrina Monroe continua, principalmente, contra a cooperação entre China e América Latina. Os EUA mantêm uma presença militar substancial, operando em cerca de 76 bases militares na região, enquanto a China não possui uma base militar nem envia tropas para a região. Os movimentos da China são outros.

A nova política é um recado à China e uma resposta à crescente influência econômica de Pequim na região. O comércio China-América Latina e Caribe passou de US$ 18 bilhões em 2002 para US$ 315 bilhões em 2020. O volume de comércio entre a China e os países da ALC dobrou na última década, atingindo US$ 518,4 bilhões em 2024. Além disso, a China implementou mais de 200 projetos de infraestrutura e diversos empreendimentos industriais na região, gerando mais de um milhão de empregos locais.

Mais de 20 países já alinharam seus planos de desenvolvimento com a Iniciativa Cinturão e Rota, assinando diferentes memorandos de cooperação com a China. O Porto de Chancay, no Peru, que entrou em operação no final de 2024, com investimento de 3,6 bilhões de dólares (R$ 17,8 bilhões), é o primeiro porto com maioria de capital chinês na América Latina. Através da Rota Amazônica será possível uma ligação direta e mais rápida para o transporte de mercadorias entre a Ásia e a América Latina, conectando os oceanos Atlântico e Pacífico.

Reação chinesa

A China reagiu imediatamente ao NSS 2025 do governo Trump e de forma oposta a “Política do Grande Porrete” dos EUA.  O governo chinês publicou nesta quarta-feira, 10, cinco dias depois da divulgação do NSS 2025, seu Documento de Política para a América Latina e o Caribe (ALC), o terceiro do gênero, delineando de forma abrangente a política da China para a região.

De acordo com a agência Xinhua, a China havia apresentado sua primeira versão do documento em novembro de 2008 e a segunda em novembro de 2016. A nova publicação atualiza diretrizes, reafirma compromissos e sinaliza continuidade no aprofundamento das relações políticas, econômicas e de cooperação com países latino-americanos e caribenhos.

O documento político serve como um roteiro para a cooperação futura. Segundo editorial da mídia chinesa Global Times, busca facilitar o alinhamento da capacidade produtiva e dos equipamentos de alta qualidade da China com as necessidades dos países da região, até promover o desenvolvimento e a demonstração de tecnologias agrícolas modernas. Também inclui tanto projetos de infraestrutura essenciais que sustentam o desenvolvimento da ALC quanto programas nas áreas de educação, saúde e intercâmbio cultural.

 “Num contexto em que certos países utilizam a ‘nova Doutrina Monroe’ para impor pressão militar e coerção econômica às nações da ALC, a China trata a região como uma ‘verdadeira amiga’, participando do desenvolvimento com base na igualdade e na cooperação. Isso representa não apenas um modelo de cooperação distinto da lógica geopolítica tradicional, mas também um exemplo vívido de países do Sul Global unindo forças para se fortalecerem e superarem juntos os desafios do desenvolvimento.”, salienta o Global Times.

E complementa: “A China e os países da ALC compartilham um anseio comum pela paz mundial, a busca por uma governança global aprimorada e o apoio ao multilateralismo. Isso não apenas demonstra o imenso potencial da cooperação China-ALC, mas também galvaniza poderosamente o Sul Global a forjar solidariedade e autossuficiência. Juntos, eles estão expressando uma voz coletiva em plataformas multilaterais – incluindo as Nações Unidas (ONU), o G20, a APEC, o mecanismo de cooperação do BRICS e o Fórum China-CELAC – para defender a equidade e a justiça e promover reformas na governança global.”

Rússia

Quanto à Rússia especificamente, uma possível prioridade apresentada no NSS 2025 do governo Trump é restaurar a estabilidade estratégica nas relações com Moscou, seguindo a velha tática, até agora improdutiva, de separar a Rússia da China. A Rússia é mencionada dez vezes e, diferentemente de versões anteriores, não identificada como uma ameaça. 

Sintomaticamente, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que a ampliação das relações com países da América Latina e do Caribe se consolidou como uma prioridade da política externa russa. A declaração foi feita nesta quarta-feira (10) durante sessão do Conselho da Federação, em Moscou. 

Europa

O documento do governo Trump descreve a Europa como em risco de “extinção civilizacional” (“civilizational erasure”), argumentando que a migração em massa, queda nas taxas de natalidade e políticas de direitos sociais e de regulação estão erodindo o caráter nacional de países europeus.

Essa pode ser uma das crises mais profundas para o atlanticismo, doutrina de forte cooperação política, militar e econômica entre os EUA e a Europa, com base em valores comuns, principalmente no contexto da OTAN e da Guerra Fria.

Brasil

O documento NSS 2025 é altamente relevante para o Brasil, especialmente no que diz respeito à influência sobre matérias como comércio de recursos estratégicos, autonomia nas relações internacionais, e soberania — tanto econômica quanto política. No entanto, o governo Lula ficou em silêncio. A dúvida é se haverá espaço para ter uma boa química com o presidente estadunidense Donald Trump e, ao mesmo tempo, com o presidente chinês, Xi Jinping.