A ideia de comunismo

Jorge Barcellos
Doutor em Educação
A reflexão da esquerda frente a ascensão da direita passa pela revisão de seus conceitos mais fundamentais como o de comunismo. Desde a publicação de L’idée du comunism (Lignes, 2010), coletânea das conferências realizadas em Londres em 2009 e publicada recentemente na França, o conceito continua sendo central para o pensamento de esquerda. Organizado por Slavoj Zizek e Alain Badiou, a obra é organizada em 16 capítulos entregues a fina flor da intelectualidade. Zizek é o famoso filosofo e crítico cultural esloveno, conhecido por sua leitura lacaniana da cultura popular. Na verdade, há um primeiro Zizek mais voltado para a psicanálise e o cinema, e um segundo Zizek, ainda praticamente desconhecido, voltado para uma prática da análise política propriamente dita – provavelmente reforçada por sua fracassada candidatura à Presidente da Eslovênia. Badiou também é um leitor de Lacan, mas a isto se acrescenta Nietzsche e toda a vivência do maio de 68 francês que o transformaram num dos mais atuais analistas revolucionários, ou como prefere Badiou, apenas alguém que deseja mostrar o potencial de inovação e transformação de cada situação. Para Yannis Stavrakakis, em Una esquerda lacaniana (FCE,2010, já esgotado), o mérito de desde novo lacano-marxismo é questionar, em curto-circuito, os pressupostos de funcionamento do Capital.
Ainda que pouco conhecido, L’idée de communism constitui um ponto de partida e renovação importante para a esquerda no século XXI. Como se sabe, desde a década de noventa a esquerda tem presenciado derrotas a nível mundial. Políticas sociais dos estados de bem-estar social retrocederam, a integração das economias socialistas ao mundo capitalista e a regressão dos movimentos de emancipação do terceiro mundo parecem sinalizar que o tempo da emancipação política radical chegou ao fim.  Mas não é bem isto que veem os autores da coletânea. Para eles a ideia do capitalismo liberal como a nova ordem natural sofreu reveses com os ataques de 11 de setembro e a crise financeira de 2008 e, por esta razão, a necessidade de repensar os fundamentos da emancipação política nunca foram tão atuais.
A primeira conclusão dos autores é que a esquerda como proposta de partido estalinista está enterrada. E também a nova esquerda, como se apresenta hoje a dita democrática, apenas propõe a reforma do sistema de pensamento, o que não é suficiente se não se pensar em reformar a estrutura da democracia representativa. É preciso outra esquerda que busque no que resta do comunismo, no horizonte de projetos de emancipação radical, os conceitos para orientar suas pesquisas e a ferramenta para expor seus fracassos políticos – da própria esquerda-  para construir novas perspectivas para a ação.  Esta discussão abre, sem dúvida, um campo de possibilidades políticas, o que faz seus autores valorizarem ainda mais o comunismo como conceito filosófico.
Esta forma de colocar o tema do comunismo surgiu primeiro com Alain Badiou, em sua duas de suas últimas obras “L’hipothese comunist “ (Lignes, 2009) e “De quoi Sarkozy est-il le nom” (Lignes, 2007) onde o autor, desejando enumerar alguns princípios básicos para ação política, defende a ideia de que não podemos confiar nas empresas para produzir solidariedade social já que a economia de mercado produz uma democracia atrofiada onde persistem as desigualdades indesejáveis. Para Badiou e Zizek, aceitamos com muita naturalidade que o capitalismo é nosso destino final: precisamos nos revoltar com o desperdício irracional de recursos, com o valor econômico dado às guerras, etc., etc. Para os autores, e aí está uma questão polêmica da obra, se as experiências reais comunistas foram sangrentas, não podem ser comparadas aos massacres levados a efeito pelo capitalismo, em sua fúria predatória pelo mundo inteiro. A situação dos povos africanos e asiáticos é apenas um exemplo.
sovietQuando o Seminário de que trata o livro foi realizado, em 2009, o Jornal The Guardian chamou a atenção para o fato de que se tratava de um evento mais “quente” que um jogo de futebol ou o show de uma cantora pop. A descrição tinha sua razão de ser. Realizada na Universidade de Birkbeck, em Londres, atraiu participantes de todos os continentes, Estados Unidos, da América Latina, África e Austrália, que foram ouvir os grandes pensadores de esquerda. Todos queriam respostas para seus problemas práticos, mas só ouviram dos organizadores que que se tratava de “uma reunião de filósofos que ia lidar com o comunismo como um conceito filosófico, defendendo uma tese precisa e forte: a partir de Platão, o comunismo é a única ideia política digna de um filósofo.”
Que à época houvessem tantos interessados em discutir a teoria do comunismo, é indicador da importância que o tema tem para a esquerda.  Convite a pensar que mantém inquestionável o valor da obra. Terry Eagleton parte do Rei Lear, de Shakespeare, para mostrar o valor da utopia, comparando a todo o momento com os Grundrisse, de Marx; Michel Hardt faz a crítica das estratégias neoliberais de privatização de indústrias para retomar, mais adiante, o conceito de propriedade comum tão caro ao marxismo; Tony Negri retoma os pressupostos do materialismo histórico que dizem que a história é a história da luta de classes para descobrir o valor da ética de esquerda baseada no valor do comum; Jacques Rancière, retoma da hipótese comunista de Alain Badiou para reforçar o valor de emancipação humana contida no conceito de comunista, bem diferente da ressignificação que o levou a ser tratado como um “monstro” do passado; Gianni Vattimo, num texto curto, enumera nove teses entre as quais a ideia paradoxal que em realidade, capitalismo e comunismo padecem da mesma dissolução metafísica, aproximando-se pelos seus sucessivos fracassos semelhantes. Os demais autores, integrantes da coletânea, ainda contribuem com suas análises específicas: Susan Morss, Peter Hallward, Jean Luc-Nancy, Alessandro Russo e Alberto Toscano tratam desde as formas do comunismo até a filosofia e a revolução cultural sob o regime. Talvez a curiosidade seja a presença de Minqi Li e Wang Hui, que apresentam as visões do extremo oriente, em especial sobre os acontecimentos recentes na China – faz falta aqui um breve resumo do currículo dos autores, tão comum em coletâneas do gênero.
Não há dúvida que o debate propriamente dito encontra-se nos textos dos organizadores. Badiou reitera a crítica a ideia de que o capitalismo seja o modelo de emancipação histórica para a humanidade inteira. Quer retomar o conceito do ponto de vista filosófico, afirmativo, como campo de construção de um projeto social. Na “Ideia do Comunismo “, que dá título à obra, afirma Badiou, estão presentes três elementos primitivos: o componente político, o histórico e o subjetivo. Após analisar cada um desses elementos, Badiou conclui pela necessidade de ressignificar a ideia de Comunismo, opinião que é compartilhada por  Zizek, por sua vez, no texto que encerra a coletânea. Partindo uma história de Franz Kafka, sobre Joséphine, a cantora, faz da sua análise uma metáfora da trajetória comunista, por um lado, e por outro, recolhe das perspectivas de Hannah Arendt, Habermas e Horkheimer a necessidade de relocalizar, na cultura comunista, o significado das atitudes subjetivas mais intimas.
Para os autores, ainda é preciso da ideia do comunismo para se viver “não vejo qualquer outro”, diz Badiou. E mais “Se temos de abandonar essa hipótese, então já não vale a pena fazer qualquer coisa no campo da ação coletiva. Sem o horizonte do comunismo, sem essa ideia, não há nada no histórico e político a tornar-se de qualquer interesse para um filósofo. ” A razão, para Badiou,   é que somente no comunismo podemos defender uma ideia de igualdade pura. Sempre haverá espaço para pensar na ideia de comunismo enquanto estivermos lutando contra a injustiça, e provavelmente, fazendo a crítica do Estado. O livro tem mérito. Mesmo sem oferecer uma agenda política imediata, ele é um elemento importante para todos os homens de ação. A ideia central é que não há emancipação política sem filosofia, e nesse sentido, o comunismo, ao estabelecer a igualdade como um padrão para políticas que possam vir a surgir, ajuda a diferenciar as más das boas políticas. Que os autores retornem a Marx e Hegel, o fazem na busca de um pensamento dialético para a construção de um novo projeto político. Para Zizek, não há mais dúvidas de que o Capital se tornou nossa vida real, e para ele vale a máxima de Lênin “Começar, desde o início, uma e outra vez”.

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