Os tarados e taradas do Brasil pós-socialismo imaginário

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE
Impressionante como as pessoas que recentemente assumiram o poder executivo no Brasil – as quais nem consigo adjetivar, pois ainda não inventaram termo adequado para defini-las – têm óbvios pontos de fixação, taras, deliram com fantasias sexuais constantes. Eles “só pensam naquilo”, como dizia a personagem D. Bela, que Zezé Macedo interpretava na Escolinha do Professor Raimundo. Tudo se resume a uma obsessão por órgãos genitais; é mamadeira de piroca, kit gay, um mundo de fantasias sexuais constantemente em ebulição. Ando pensando que terei de voltar aos estudos de psicanálise e reler o texto Três Ensaios sobre a Sexualidade[1] (antes que seja queimado em praça pública e proibido pelo index bolsonarista), para ver se o velho Sigmund me ajuda a entender essa gente. Nessa obra ele analisa as perversões sexuais.
Mas acho que nem Freud explica tamanha monomania. Preocupadíssimos com o que as pessoas têm entre as pernas, não dormem a noite, caraminholando o que vão fazer para controlar a sexualidade alheia. Como se o valor de um ser humano se resumisse ao uso mecânico de seus genitais e à reprodução de uma identidade fixa e imutável, divinamente determinada. Não podem olhar para uma criança sem pensar na pequena genitália daquele serzinho em formação, frágil porquanto ainda dependente de cuidados e ensinamentos? “Tem pipi ou tem perereca? Usa rosa ou usa azul?” exaltam-se eles, babando e rugindo, os olhos e as mentes fixados, ensandecidos. Dizem-se religiosos, cristãos. O Deus deles valoriza tanto assim a genitália humana?!
Na lógica desses depravados, uma pessoa não vale o que sua personalidade singular acrescenta ao mundo que a cerca; não vale pela sua inteligência ou talentos pessoais; não vale por sua existência humana; vale apenas se agir conforme normas rígidas estabelecidas por gente tacanha, em cuja mente estreita tudo é determinado pela aparência dos órgãos sexuais. Fico pensando se não seriam todos pedófilos em potencial, ardendo de desejo doentio pelos pequenos corpos que querem dominar, vigiar e punir (caso não sigam sua obsessão heteronormativa). Essa gente é tão assustadora que é uma hipótese plausível… a medonhice[2] deles não parece ter limites.
Impossível, além de evocar Freud, não me referir também a Foucault. O filósofo e historiador francês estudou em detalhe os meios de coerção e suplício utilizados ao longo da história para subjugar mentalidades e corpos. Quanta maldade o ser humano pode praticar contra seus iguais? No livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão[3], o I capítulo, intitulado “Os corpos dos condenados”, abre com a seguinte descrição, obtida na pesquisa do autor em documentos históricos:

  • “[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas…”

Os suplícios e castigos eram medonhos. Os reformadores dos séculos XVIII e XIX iriam demandar o fim dos castigos físicos em praça pública. Não era algo compatível com o “espírito das luzes”, as expectativas morais do iluminismo, das novas ideias desenvolvidas na Europa sob a égide da tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Curioso que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos tenha dito, em recente palestra, que esses governos reacionários tipo Trump, Duterte, Bolsonaro etc, queiram justamente retroceder a um tempo pré-iluminista, pré-revolução francesa. Não à toa, pois, que exaltem a tortura.
O livro de cabeceira do presidente do Brasil foi escrito por um torturador, já reconhecido como tal pelo Estado brasileiro após investigações que não deixam dúvidas. Assassino (mais de 60 pessoas morreram sob seu comando ou ação direta, no DOI-CODI em São Paulo), era claramente um sádico, um psicopata. Brilhante Ustra foi processado várias vezes por ocultar cadáveres, especialmente em valas comuns do cemitério de Perus, na capital paulista. Alguém, certamente, muito pré-reformas do século XIX na Europa, que clamaram pela extinção das sevícias e fim das torturas nos manicômios, asseverando que deviam ser substituídas pelo “tratamento moral” à lá Philippe Pinel. Pois então, caros e caras.
Talvez estejamos diante da tentativa de revogação de um princípio do Direito Internacional, a proibição da tortura. Trata-se de uma norma imperativa, de aplicação obrigatória. Sendo a prática da tortura um ato proibido por lei, é considerada crime e deve ser punida. Contudo, os tarados sexuais fixados em piroca e perereca são declaradamente favoráveis a ela. Os adolescentes trintões, filhos do presidente da república, usam camisetas impressas com odes a Ustra. O bufão presidencial declarou em rede nacional sua admiração pelo torturador assassino. Mesmo assim, foi eleito. É a banalização do mal descrita por Hannah Arendt. É o mal praticado e exaltado, aos zurros, no Parcão e em outros lugares onde moram as supostas “elites”.
Parte da população brasileira (e mundial) nunca incorporou os princípios iluministas. São toscos. São potencialmente pedófilos e torturadores. Utilizam massivamente o mecanismo de projeção, dizendo que os gays é que são pedófilos e pervertidos. Dizem isso enquanto fazem programas com travestis, como publicizado recentemente sobre um político conservador de direita, em Porto Alegre[4].
Otávio Germano é a cara deles. Votando hipocritamente “pela família” no congresso nacional, sai dali e vai fazer sexo com travestis, às escondidas. Seria bem mais saudável largar a obsessão de só pensar naquilo e fazer sexo naturalmente com quem desejasse, sexo consentido e reciprocitário, livre e prazeroso. Sem as taras que possivelmente os atormentam e os fazem assim atormentar os outros.
Deixem as crianças em paz, tarados e taradas (Damares vem se revelando das piores taradas/obcecadas com sexo e com cores, obsessões tolas e sem sentido). Parem de enxergar pênis e vaginas onde devem ver as crianças brasileiras. Deixem-nas ser quem elas são, quem nasceram para ser, herdeiras da infinita diversidade humana, dos milhões de singularidades possíveis. Deem a elas oportunidades de se educarem, de desenvolverem suas aptidões, talentos e possibilidades. Ofereçam a elas oportunidades iguais, educação de qualidade (incluindo educação sexual, ambiental, midiática, para que possam lidar de maneira saudável com esses aspectos da vida), cuidados em saúde, protejam-nas de violências e agressões, proporcionem-lhes lazer, alegria, espaço físico digno e adequado. Ensinem-lhes a respeitar os outros, a praticar a beneficência e evitar a maleficência com humanos e não humanos, com o meio ambiente que as cerca e lhes permite a vida.
Uma criança sempre simboliza a esperança no futuro. No nosso imaginário, ela poderá ver um mundo melhor do que o que nós, adultos, vemos ou ainda poderemos ver. Na medida em que envelhecemos, nos resta cada vez menos tempo. Elas, as crianças, nos sucederão, passaremos o bastão para elas e sucessivamente para as gerações vindouras.
Pois muito bem, adultos ainda lúcidos e responsáveis: temos muito trabalho pela frente nos próximos anos. Para limpar essa lambança toda e deixar algo mais digno, um futuro no qual nossas crianças possam viver e amar livremente, com responsabilidade, tendo a justiça e a solidariedade incorporadas como valores fundamentais, como a nossa mais importante herança para elas.
 
[1] Freud, Sigmund. (1905) Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[2] De Medonho: assustador, horripilante, horroroso, disforme, desgraçado, sinistro, funesto, aterrador, horrível, pavoroso, temível, tenebroso, terrível, tétrico. In: Dicionário de Sinônimos. Disponível em:  https://www.sinonimos.com.br/busca.php?q=medonhice
[3] Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987. 288p. Do original em francês: Surveiller et punir.
[4] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/travestis-cobram-divida-de-deputado-do-pp-gaucho-que-votou-pelo-impeachment-por-miguel-enriquez/

A imoralidade da Lava Jato

João Alberto Wohlfart
Em tempos de crise institucional e de ditadura como estamos vivendo atualmente, moralismos sociais são frequentes. A burguesia dominante padroniza um discurso que tem na negação da corrupção o referencial constante. Esta classe fala duramente contra a corrupção, mas é exatamente ela que a produz, a reproduz constantemente, e ao falar contra ela, a reproduz novamente. A classe burguesa dominante, intensamente apoiada pelas religiões, se apresenta a si mesma como imaculada e santa, sem pecado original, grita autoritária e cinicamente contra a corrupção, criminaliza os movimentos sociais e culpabiliza os movimentos sociais e o Estado como os responsáveis pela corrupção.
O viés de abordagem é mostrar o pecado dos que se apresentam como santos e perfeitos, mostrar a imoralidade dos que clamam pela moralidade social, a corrupção dos que duramente falam contra a corrupção. Neste círculo vicioso da cobra que morde o seu próprio rabo e do macaco que não olha o seu próprio rabo, é preciso apontar um duplo pecado: a burguesia fala contra a corrupção, mas é ela a protagonista principal; a burguesia fala contra a corrupção, mas ao apontar os pecados de corrupção, esconde os principais pecados de corrução que obedecem à lógica neoliberal capitalista.
No momento atual, a operação lava jato é o símbolo deste papel. Os seus articuladores, nobres juízes da corte do direito, liderados pelo moralista Sergio Moro, aparecem diante da opinião pública como os detentores da moralidade e como a aura imaculada diante de um país mergulhado em corrupção. Esta castíssima elite da perfeição e da moralidade, para os empresários dos meios de comunicação social, para a elite burguesa e para a opinião pública manipulada, está limpando o Brasil do pecado mortal da corrupção. Qual seria a razão do tão grande interesse por parte da burguesia dominante em eliminar a corrupção no Brasil?
A moralidade da limpeza na corrupção por parte da lava jato e o caráter imaculado da moralidade dos juízes que a comandam é apenas um aspecto do que efetivamente representam. O que vemos todos os dias na televisão sobre esta operação e os seus articuladores é apenas uma pequena ponta de uma organização infinitamente maior. As razões de sua existência e o fundo temático da pressão contra o Partido dos Trabalhadores e contra Lula são totalmente outros, sistematicamente escondidos pelos meios de comunicação social.
Contrariamente ao que difunde a grande mídia, com destaque na limpeza do país de toda a corrupção, a operação lava jato é um procedimento jurídico e midiático destinado a entregar as riquezas do Brasil aos interesses macroeconômicos mundiais. É o principal procedimento moral, jurídico e midiático pelo qual o Brasil é destituído de sua soberania e entregue de presente nas mãos dos magnatas do grande capital. Por este espetáculo jurídico midiático passa a destruição dos principais pilares econômicos e políticos que sustentam a nação brasileira.
A operação lava jato é expressão de uma onda moralizante que varre o planeta e o Brasil. Os meios de comunicação social conseguiram difundir a ideia da corrupção generalizada, no sentido de evidenciar que todos os políticos, especialmente do PT são corruptos. Este fenômeno desdobrou-se em dois efeitos principais: a condenação da corrupção por parte do povo e a moralização social. Hoje o tema principal dos meios de comunicação social e das conversas entre as pessoas é a corrupção. Mas, paradoxalmente, há um grupo social que se considera como moralmente perfeito, isento da corrupção, e que generaliza a ideia de que todos são corruptos.
O paradoxo desta lógica está nos que condenam a corrupção, com um moralismo autoritário, mas são os que a produzem e a aprofundam cada vez mais. Nisto a lógica capitalista de produção e de acumulação é sistematicamente corrupta e corruptora. Disto resulta que os seus articuladores são eminentemente corruptos. Hoje no Brasil o poder mais corrupto e corruptor é aquele que deveria impedir a corrupção, o judiciário. Ele se apresenta como o suprassumo da moralidade pública e política, quando na verdade está podre e desmoralizado. As ações do judiciário, especialmente nas esferas mais elevadas, concentra as suas ações para construir uma sociedade elitista que exclui grande parte do povo do desenvolvimento econômico e social.
Vimos nos meios de comunicação social onde o senhor Sérgio Moro aparece como a referência da moralidade. Mas os atos jurídicos por ele liderados são desastrosos para o país. A operação lava jato já destruiu um pilar da economia nacional e fundamental para o desenvolvimento do país, além da perda de milhões de empregos. Além do significativo enfraquecimento da Petrobrás, foram destruídas muitas empresas e atividades integrantes do sistema do Petróleo e da engenharia. A tal da operação lava jato é um meio de dissolução da ciência nacional, da tecnologia nacional e da engenharia nacional. Sem estes pilares fundamentais, o país não tem conhecimento e se transforma numa colônia informe do imperialismo capitalista internacional.
Os moralismos aqui identificados, um artifício do qual a burguesia se vale para justificar a sua inocência e o seu poder de dominação, têm consequências trágicas. Não pode haver maior tragédia que a ruptura dos princípios democráticos orientados com o lema fundamental segundo o qual o poder político provém do povo e ao povo retorna. O projeto golpista rompeu com este princípio constitucional, jogou o povo brasileiro à deriva e fez da política um poder de dominação das elites dominantes para as elites dominantes. A legitimação deste jogo tem vários componentes, especialmente o paradoxo da autojustificação moralizante da burguesia dominante e a disseminação do ódio social sistemático e profundo contra as massas populares. A postura moralizante, especialmente disseminada pela casta do judiciário, trouxe como consequência a perda de direitos humanos fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988, solapados pela onda golpista que faz retroceder o Brasil aos tempos da escravidão. A tendência é de que num tempo relativamente próximo os trabalhadores voltem à condição de escravos de um sistema moderno que se caracteriza pelo domínio absoluto do capital sobre o trabalho. A criminalização dos movimentos sociais e a perseguição aos seus líderes é outro ingrediente da onda destruidora promovida pela lógica golpista.
O fenômeno contraditório da moralidade burguesia capitalista, trapaceada pelo discurso anticorrupção, produziu uma demolição generalizada da nação. A religião tornou-se a grande aliada da moralização social e da produção de uma sociedade constituída por uma minoria justa e uma grande maioria de injustos e pecadores. Além de uma nova fase de domínio imperial neocapitalista sobre o Brasil, muito mais agressiva que as modalidades conhecidas anteriormente, com a entrega de presente das principais riquezas naturais do Brasil, a sociedade brasileira fica diluída numa espécie de massa informe sem inteligência política, portanto sem forças de reação e presa de manipulação imperial.
O mesmo fenômeno acontece no outro lado do mar, mas com forte incidência na ditadura brasileira, com destaque no fortalecimento do conservadorismo religioso como um ingrediente fundamental na manutenção do golpismo. Trata-se dos cardeais ultraconservadores que habitam a Cúria Romana, com explícita oposição ao Papa Francisco no bloqueio de qualquer reforma que possa transformar a velha estrutura monárquica medieval. No Brasil há cardeais católicos com o mesmo teor de ódio conservador, com decisiva atuação no fundamentalismo religioso e na legitimação do golpe. Quando impera semelhante conservadorismo religioso, outra coisa não há que o encobrimento de interesses e a legitimação de um sistema econômico estabelecido.
Uma das expressões mais evidentes dos moralismos jurídicos é o fenômeno da superlotação das prisões. As mortes registradas nos presídios nestas últimas semanas são a expressão da tensão social implícita a este sistema. O sistema econômico cria os criminosos, necessita deles porque há empresários que lucram na proporção direta com o número de detentos. O moralismo da sociedade burguesa precisa evidenciar as suas virtudes ao condenar e colocar na cadeia milhares de “criminosos” que não apresentam as virtudes burguesas. Mas a situação das prisões é o porão da sociedade que joga lá dentro o seu próprio lixo e a sua própria escória. Os porões da miséria nas periferias das cidades, a criminalidade social e o submundo das prisões constituem a relação social produzida pelo próprio sistema capitalista. Mesmo que a burguesia capitalista o negue e não queira para si esta condição, é o mais genuíno produto da sociedade burguesa.
A operação lava jato esconde a sua verdadeira finalidade e os interesses que representa. Numa primeira aproximação, é um espetáculo judicial que prepara o terreno para a entrega das principais riquezas do Brasil para o grande capital internacional. De forma invisível, está por trás da lava jato a perseguição internacional sistêmica contra a Ciência, a Tecnologia e a Engenharia brasileiras, pois elas representam uma ameaça contra a hegemonia do norte que faz de tudo para eternizar a incondicionalidade do seu domínio. Há também um sentido social na medida em que criminaliza os movimentos sociais, o povo das periferias das cidades e as lideranças sociais. Temos visto a constante perseguição contra as lideranças populares com o objetivo claro de eliminar as esquerdas e inviabilizar qualquer projeto popular.
Salve rede globo, salve lava jato e salve o castíssimo poder judiciário. As suas ações foram capazes eliminar milhões de empregos, souberam devolver ao país a pobreza e a miséria e conseguiram legitimar um governo golpista e usurpador. Salve poder judiciário e salve supremo tribunal federal: abdicaram de sua missão fundamental, dissolveram a Democracia e o Estado de Direito e permitiram que o país fosse entregue nas mãos de ladrões e assaltantes. Estamos nas mãos de raposas que comem as galinhas.
 
 
 

Engajamento social hoje, 20 anos depois

Jorge Barcellos
Doutor em Educação
Completam-se no corrente ano, 20 anos da palestra de John Kenneth Galbraith (1908-2006) intitulada “O engajamento social hoje”.  Palestra inaugural sobre a política do senador canadense Keith Davey proferida pelo economista na Universidade de Toronto em 1997 foi publicada pelo Mais! no ano seguinte.  Passados vinte anos, a questão colocada pelo economista sobre as razões pelas quais os governos estão abandonando os pobres continua com grande atualidade.
Galbraith foi um dos mais importantes economistas do século XX e defensor da participação do Estado para regular o mercado ao lado de John Maynard Keynes (1883-1946). Ele se interessa em descrever a posição política e os objetivos dos socialmente engajados “onde quer que vivam e como sejam chamados”. Ser socialmente engajado significa, em primeiro lugar, no texto de Galbraith, uma posição de defesa dos mais pobres. Por esta razão sua análise é sobre papel que devem exercer os socialistas na França, os socialdemocratas na Alemanha, os trabalhistas na Grã-Bretanha e à época, no segundo governo Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), o texto ilustrava o desejo da esquerda petista ainda não atingida pelo processo de corrosão do segundo governo Lula.
A colocação do problema de Galbraith sobre a responsabilidade dos governos frente aos pobres e o papel do intelectual cai como uma luva nos dias de hoje ”. Nesta época socialmente complexa e as vezes politicamente retrógrada, que posição devem assumir os socialmente engajados, e com que objetivo? ”. Galbraith não viveu para ver a ascensão de Donald Trump ou a emergência de Le Pen na França e veria com tristeza a política brasileira caracterizada pelo desmonte dos direitos sociais e por essa razão é rica as lições que tira de sua época para ilustrar a nossa.
Primeiro porque o sistema de mercado persiste como o sistema básico de produção de bens e serviços, hoje como há vinte anos atrás, como assinala o filósofo esloveno Slavoj Zizek, produz com tanta abundância que é possível enxergar sua imagem no imenso mundo do lixo que acumula “Nós, os socialmente engajados, não consideramos esse processo livre de imperfeiçoes”, assinala Galbraith, quer dizer, tanto em sua época como na atual, ainda que não há horizonte uma alternativa econômica, cabe ao intelectual a sua crítica do modelo de desenvolvimento.
Segundo, como Galbraith previu, a questão ambiental é o ponto de partida dos problemas do sistema de mercado já que os recursos naturais são cada vez mais escassos para todos. A sua previsão de que “a forte voz política que o sistema de mercado confere aos que possuem e administram o equipamento produtivo “ só se agudizou, isto é, determinados atores do sistema de mercado adquiriram cada vez mais forte voz política na década seguinte ampliou-se nos sucessivos processos de combate a corrupção, como o da Lava – Jato revelou.
Devemos aceitar a posição de Galbraith de que o sistema que está aí veio para ficar? Em parte não, se considerarmos que ainda há forças políticas sobreviventes que recusam o capitalismo como o diabo foge da cruz, herdeiros de uma tradição política de esquerda radical que comprovou que, ao menos na experiência brasileira, quando a esquerda busca apoio no mercado, ela perde sua natureza (vide o PT): Galbraith só podia falar do trabalhismo britânico em sua total aceitação, mas é possível falar do petismo brasileiro no mesmo sentido.
O ponto central do argumento de Galbraith vem em seguida: “a sobrevivência e a aceitação do moderno sistema de mercado foram, em grande medida, uma conquista dos socialmente engajados. Ele não teria sobrevivido sem nossas bem-sucedidas iniciativas civilizadoras”. O que isto significa? Para Galbraith, em sua forma original, o capitalismo é cruel e por isto é preciso que os sindicatos cumpram a sua função, a proteção aos trabalhadores e seus direitos “pensões para idosos, indenizações para os desempregados, assistência pública à saúde, habitação de baixo custo – uma rede de segurança, embora imperfeita, para os desafortunados “. Essa é ainda uma notável lição para avaliar os tempos que correm onde vemos o capitalismo em sua forma mais cruel ser adotada como política de estado: o fim de direitos dos trabalhadores, a reforma da previdência, a crise da rede de segurança propriamente dita no Brasil seriam a prova do fracasso do estado de bem-estar social, o contrário da visão de Galbraith, um sistema de mercado que está se tornando social e politicamente inaceitável a passos largos.
A crítica de Galbraith é sua recusa à corrente de pensamento que afirma que qualquer atividade econômica deve ser convertida ao mercado, transformado em universal, onde a privatização é uma “fé pública”, argumento que continua atual.  Galbraith diz taxativamente que a “a questão do privado x público não deve ser decidida em termos abstratos e teóricos; a decisão depende sobretudo dos méritos de cada caso especifico”. O argumento cai como uma luva nas iniciativas privatizantes dos governos Luis Fernando de Souza (Pezão) no Rio de Janeiro e José Ivo Sartori no Rio Grande do Sul e medidas de novos prefeitos, como Nelson Marquezan Jr em Porto Alegre. Tanto Pezão quanto Sartori, por exemplo, incluíram em seu pacote de entidades a serem extintas, fundações ligadas a pesquisa, como a FEE no RS e o CEPERJ, no RJ, enquanto Marquezan realizou uma reforma extinguindo secretarias e órgãos como a SMAM, além de manifestar o seu desejo pelo fim dos cobradores de ônibus. Para Galbraith, estas iniciativas esquecem o mérito de tais instituições amplamente defendidos na sociedade: como planejar políticas públicas sem dados confiáveis? Como extinguir órgãos de grande importância e propor a extinção de trabalhadores como os cobradores do transporte público sem precarizar as condições de segurança da população?
Como economista, a posição de Galbraith de crítica contundente ao sistema de mercado salta aos olhos: “o mercado não tem desempenho confiável”, o que significa que é um risco para a sociedade o fato de que ele passa da expansão à depressão em um curto espaço de tempo “gerando privação e desespero entre os mais vulneráveis”.  Daí a necessidade de intervenção do Estado para manter a economia em prosperidade e frear o ímpeto especulativo do mercado. Tanto no passado quanto hoje esta é uma questão de alta relevância, e de forma profética, dez anos antes de 2008, o economista avisava dos perigos da bolha do mercado de valores, dez anos antes da crise mundial.
Ter em mente o perigo dos excessos era, para Gaibraith, como monetarista, preocupar-se com o papel dos impostos e gastos e os comportamentos negativos do meio empresarial “o sistema é dados a excessos” dizia. Mas é possível formular que, também o Estado, nas mãos de financistas, é dado a excessos: não é o que se vê na política de privatizações do Rio Grande do Sul, este excesso de medidas de extinção de órgãos (FEE, TVE, entre outros) sob o argumento de redução de custos que está dilapidando o patrimônio gaúcho? Galbraith é enfático em defender medidas fiscais amplas e efetivas para promover o emprego porque seu foco não são os referenciais econômicos, mas o social, ele está preocupado com os efeitos das políticas públicas no campo social e vê neste tipo de medida um grande prejuízo social e fonte de aflição humana, numa palavra, o desemprego, e sugere, ao contrário, a promoção de “empregos públicos alternativos na recessão ou depressão”. Não é exatamente o contrário das políticas públicas em andamento no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, com suspensão de concursos públicos, demissões e sucateamento da máquina pública com consequente demissão de milhares de servidores?
Galbraith associa-se ao projeto keynesiano defendendo que, em épocas de recessão como a que vivemos, uma política de emprego garantida pelo governo como fundamental.  Seu lugar destinado ao intelectual é o da posição de crítica constante a partir de uma base (keynesianismo) comum. Ser socialmente engajado significa não apenas defender, à época, que o medo da inflação influenciasse excessivamente políticas públicas como ter coragem de revelar, com vinte anos de antecedência, uma estratégia que os governos teimam ainda hoje em esconder: “nos Estados Unidos esse objetivo [orçamento equilibrado] é no momento uma importante arma no ataque generalizado aos pobres”. Que o argumento do orçamento equilibrado seja questionado por um economista monetarista, já causa espanto: que ele defenda que o déficit fiscal temporário, ainda é mais surpreendente, é notável o quanto é possível, mesmo no interior do paradigma economicista, preservar o valor da defesa do social, o que não acontece atualmente nos gestores de politicas públicas.
Ainda que Galbraith estabeleça princípios para o engajamento político em economia, isto não significa a defesa do socialismo. Ele sabe que o sistema de mercado distribui desigualmente a riqueza e aceita isso: por isso além de um sistema de seguridade social para todos, Galbraith quer um imposto de renda progressivo porque os ricos sempre querem escapar de seus impostos e eles são necessários: ”não podemos esquecer o objetivo de uma distribuição de renda socialmente defensável: confortar os aflitos e afligir os confortados“. Não há nada que prove que avançamos nesse sentido: o governo atual em diversos níveis tende a ir na contramão desta afirmação: a nível federal, não reajusta a tabela do imposto de renda e vê os paraísos fiscais continuarem a receber fortunas dos políticos corruptos e parte do empresariado. A nível dos estados, as políticas públicas de venda da máquina pública reduzem mais empregos do que criam. Nunca fez sentido para aqueles com mais renda colaborarem com os mais pobres simplesmente porque a cultura de privilégios impera nos corações e mentes.
Por essa razão, a partir do pensamento de Galbraith, vemos que agimos justamente ao contrário do que se deveria com os recursos públicos, a todo o momento solicitado para financiar empresas privadas. Galbraith dá o exemplo notável – pela simplicidade – do que ocorria nos Estados Unidos, onde a televisão privada fora financiada por recursos públicos enquanto que as escolas públicas foram abandonadas; substitua televisão por sistema bancário e os efeitos será o mesmo no Brasil atua, a mesma anomalia que denunciava o economista. Galbraith reclama que em uma visita as universidades de sua formação em um estado rico e “BILHÕES DE RECURSOS eram para produções de televisão moralmente depravadas”, ora, as universidades americanas viviam exatamente como vivem agora as nossas, vítimas da política de corte de verbas. Defensor incontestável da educação, que deveria ser “disponível a todos”, isso nunca significou o paradigma de investimento somente na produtividade econômica – não é exatamente assim que é pensada a reforma do ensino médio no pais? – mas, ao contrário, simplesmente, para Galbraith o investimento do estado só pode ter um critério:  para aumento da “experiência de vida”.
Galbraith também criticou o ataque a Previdência que ocorreu durante dois anos nos Estados Unidos como “guerra dos influentes contra os pobres”. Sua posição de defesa dos mais pobres e crítica dos projetos de reforma é notável, é o que para ele define o intelectual socialmente engajado, o que inclui a defesa dos serviços públicos e segurança para os mais pobres. Essa agenda dos “socialmente engajados”, curiosamente, teve o mesmo efeito no Brasil para as classes médias que as políticas de bem-estar tiveram nos Estados Unidos: “como se poderia esperar, elas se tornaram mais conservadoras em suas atitudes e expressões públicas. ” Não foi exatamente a emergência de uma sociedade conservadora no Brasil o que vimos a partir dos movimentos de 2013? Não foi exatamente o cenário de uma classe média recentemente enriquecida resumida na cena do casal com a empregada doméstica nas ruas e que amplamente circulou nas redes sociais à época? “Agora eles veem a ajuda aos menos afortunados como uma ameaça a seus amplos e muitas vezes crescentes rendimentos”, afirma o economista. Não poderia estar mais certo do quadro brasileiro atual.
Aparentemente, a análise de Galbraith explica ainda hoje conflitos do desenvolvimento interno brasileiro, mas talvez seja de pouca serventia para a análise do contexto internacional, onde entendo que ocorram as maiores diferenças entre sua época e a atualidade.  Galbraith previa um cenário internacional onde as potencias econômicas estariam associadas não em bases econômicas, mas em defesa de uma política de proteção social e assistencial “a preocupação pelo bem-estar humano não termina nas fronteiras nacionais. Deve-se estender aos pobres de todo o planeta: fome, doença e morte são causas de sofrimento humano onde que sejam experimentadas”. Mas a realidade teima em contrariar as expectativas de Galbraith, principalmente com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e com a disparada da candidatura Le Pen na França: o pior do sofrimento ainda está por vir.
Nos Estados Unidos, uma extensa onda de manifestações já critica as medidas xenofóbicas do presidente americano, bem como o fim da política de assistência à saúde dos mais pobres. O sofrimento não decorre dos conflitos internos, como previa Galbraith, mas da defesa exasperada dos interesses do Estado-Nação: os EUA já autorizaram a construção de um muro com o México. Para Galbraith, tudo isso significa que os países dominantes ignoram de uma vez por todas o compromisso que devem ter para pôr fim aos conflitos, suas medidas, ao contrário, os incentivam. Nesse caminho, é justamente a instituição que Galbraith via como de maior valor para esse papel, as Nações Unidas, que é fragilizada, com cortes orçamentários anunciados entre as primeiras medidas do governo Trump. Para o economista, não poderia haver pior posição: o Estado Unido, como país rico, abriu mão definitivamente da obrigação absoluta de ajudar. O discurso da ajuda internacional foi finalmente substituído pelo discurso conservador que diz que não se deve ajudar aos outros, somente a nós mesmos. Não foi isso que reiteradamente Trump vem afirmando? O problema é que nesse caminho, perde-se os investimentos em educação dos EUA em outros países: ”no mundo inteiro não existe população alfabetizada que seja pobre; e não existe população analfabeta que não seja pobre”, diz Galbraith.
Galbraith acusa os processos de urbanização como os responsáveis pelos problemas de saúde e pelo papel do dinheiro no acesso aos serviços necessários; na civilização agrícola, diz, ao contrário, não havia desemprego e a assistência dava-se naturalmente. A urbanização faz nascer a necessidade de serviços públicos e ser “socialmente engajado” neste meio significa estar consciente dessas contradições e manter o compromisso com a defesa da mudança “Nós, e não eles[ os não engajados], estamos acompanhando a história. Mas também devemos estar conscientes de nosso papel”.
 
 

"Saneamento" neoliberal e o desmonte do funcionalismo público

Andre Forastieri
“O Espírito Santo fez o dever de casa. O governador Paulo Hartung saneou o Estado. Equilibrou as contas públicas. É exemplo a ser seguido pelos outros Estados”. No ano passado esse era o discurso dos jornalistas, dos economistas, dos experts. Silenciaram nos últimos dias. Silenciaram também 87 pessoas, assassinadas desde a última sexta-feira.
A violência no Espírito Santo está diretamente ligada aos planos de austeridade impostos pelo governo estadual nos últimos anos. Como o crescimento da violência no Brasil – e do desemprego e do desespero – está diretamente ligada aos planos de austeridade impostos pelo governo federal desde 2014. Quando os arrochos nacional e local se somam, as vítimas se multiplicam.
O que os 10.300 policiais militares do Espírito Santo querem? É a PM com o mais baixo piso salarial do país, R$ 2460,00. A média do Brasil é R$ 3980,00. Eles não têm aumento há sete anos, e há três anos o governo estadual nem repõe as perdas da inflação. Os PMs também reivindicam a renovação da frota de veículos, a melhora das condições do hospital da polícia, e a compra de coletes à prova de bala, que estariam em falta.
É fácil de argumentar que não devia existir Polícia Militar, só civil. Mas vamos deixar isso para lá no momento, e reconhecer que o que os PMs do Espírito Santo pedem não é muito. É muito pouco: salário mais próximo da média nacional e condições mínimas para fazer seu trabalho, que é bem perigoso.
Em vez de negociar com a polícia militar, o governador pediu ao governo tropas do exército. Chegaram lá e tomaram tiros dos bandidos. Vitória segue paralisada, comércio e escolas fechadas, ônibus não circulam. Os turistas fogem das praias capixabas. Os corpos se acumulam no departamento médico legal, que não dá conta de tanta morte. A Polícia Civil está avaliando se adere à greve. E as esposas dos PMs seguem protestando nas portas dos quartéis.
Qual a proposta concreta do governo do Espírito Santo para a PM? Nenhuma. A questão é que se o governador cede aos PMs, terá que ceder aos policiais civis. E depois ao resto do funcionalismo.
O governador Paulo Hartung, do PMDB, começou essa política de arrocho já em 2015. Mesmo tendo os custos com funcionalismo bem abaixo do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. Naturalmente não faltou dinheiro para outras atividades do governo – desonerações a grandes empresas, obras eleitoreiras etc. Foi louvado, e até considerado um bom candidato à presidência da República.
Tem outra questão. Se o governo começa a ceder às demandas dos funcionários do Estado, daqui a pouco vai ter que ceder às demandas da população que é atendida pelo Estado. Do povão em geral, que precisa de giz na sala de aula e merenda no intervalo, vaga e leito no hospital, paz para ir e voltar do trabalho, e outras coisas simples assim. E isso é exatamente o que os administradores do país, dos estados e das cidades se recusam a nos dar. Não que nada disso seria “dado”, porque que a gente já paga bem caro por isso tudo.
Nos últimos tempos ouvimos muito o argumento de que “o Brasil está quebrado” – o país, os estados, as cidades – o que exigiria medidas duras. “Herança Maldita” que exige cortar na carne, no osso. Nos salários, aposentadorias, direitos.
Na verdade, a conta é outra. O Brasil não está quebrado. O que o Brasil não pode mais se permitir é ter 99% dos brasileiros pagando muitos impostos, e o 1% dos brasileiros mais ricos pagando quase nada de impostos. Nossos milionários pagam pouco imposto de renda como pessoa física, pagam pouco imposto de herança, e como pessoa jurídica pagam também pouquíssimo imposto. Além disso as grandes empresas têm toda espécie de benefícios do Tesouro Nacional. Empréstimos de pai para filho do BNDES e BB, dívidas perdoadas, “desonerações” etc.
Ontem o Espírito Santo já contava 75 assassinatos, depois de três dias de greve da PM. Ontem o Itaú, o maior banco do Brasil, publicou o seu balanço. No ano de 2016, com a maior recessão que o país já viveu, o Itaú lucrou R$ 22 bilhões. Se esse lucro fosse taxado em 50%, ainda assim seria um belíssimo lucro. O que dá para fazer com R$ 11 bilhões? Escola, estrada, esgoto.
Esse é só um de muitos exemplos possíveis. Se o Brasil não der um presente bilionário às empresas de telecomunicações, como quer o governo, também teremos um bom dinheiro para pagar policiais, professores, enfermeiras. É a Lei Geral das Telecomunicações, que está para ser aprovada, e transfere para Oi e outras teles um valor tão grande, que nem se sabe exatamente quanto é. O governo diz que é R$ 17 bilhões, o Tribunal de Contas da União diz que é R$ 105 bilhões…
E por aí vai.
Ainda podemos botar na conta o tanto que se desvia na corrupção, que sabemos não é pouco. E o que se sonega, que sabemos que é muito. Segundo a Procuradoria da Fazenda Nacional, a sonegação de impostos no Brasil pode chegar a R$ 500 bilhões por ano. Para você comparar: o Bolsa-Família custa R$ 27 bilhões por ano.
A próxima vítima será o Rio de Janeiro. O estado está para assinar um acordo com o governo federal que inclui um pacotão de arrocho para cima dos funcionários públicos do estado, inclusive policiais. Uma das exigências do governo é a privatização da Cedae, a companhia estadual de águas e esgotos, o que será feita por Pezão, vice de Sérgio Cabral…
As políticas de “austeridade” no mundo todo deram errado e estão dando muito errado aqui também. Em 2017 o Brasil não vai crescer nada. O que o poder público nos oferece são serviços públicos cada vez piores, chegando à insanidade de termos 87 mortos em quatro dias no Espírito Santo.
Na prática, os brasileiros pobres e da classe média sustentam as benesses dos brasileiros super ricos, a mamata dos sonegadores e a sujeira da corrupção. Então falta dinheiro para cobrir as necessidades básicas da população. Se a gente parar de sustentar os ricos, o Brasil equilibra as contas rápido.
E se além disso os ricos passarem a pagar a sua parte, o Brasil rapidamente vai ser tornar… rico.
Vamos encarar a realidade: tem dinheiro de sobra para o Brasil ser um país melhor para todos. Esta é a única pauta que importa, a pauta que precisamos impôr a cada dia, e também a cada nova eleição. Basta cobrar mais imposto de quem pode pagar mais, o que nunca aconteceu. Bater forte na sonegação e nos sonegadores, o que nunca aconteceu. E bater forte na corrupção e nos corruptores, o que começou a acontecer – mas só começou e agora, pelo jeito, parou.
Na prática, o que está sendo feito pelos nossos governantes, e apoiado pelos economistas, colunistas, especialistas, é o contrário do que precisa ser feito. O Espírito Santo de hoje é o Brasil de amanhã. E a próxima vítima é você”.
 

Sobre (auto)elogios de um brioso magistrado de piso

Eugênio Aragão
Ex-ministro da Justiça da Presidenta Dilma Rousseff, advogado e Professor Adjunto da Universidade de Brasília.
 
Li hoje que o Sr. Sérgio Moro, juiz federal de piso no Estado do Paraná, fez distribuir nota com um elogio público do sorteio do Ministro Edson Fachin para a relatoria dos feitos relacionados com a chamada “Operação Lava-Jato“.
Eis o teor da nota, chocante pelo estilo burocrático e canhestro, indigno de um magistrado e surpreendente num professor com doutorado:
“Diante do sorteio do eminente Ministro Edson Fachin como Relator dos processos no Supremo Tribunal Federal da assim chamada Operação Lava Jato e diante de solicitações da imprensa para manifestação, tomo a liberdade, diante do contexto e com humildade, de expressar que o Ministro Edson Fachin é um jurista de elevada qualidade e, como magistrado, tem se destacado por sua atuação eficiente e independente. Curitiba, 02 de fevereiro de 2017. Sérgio Fernando Moro, Juiz Federal”.
O juiz de piso escreveu uma carta de recomendação. Como o destinatário declarado, o Ministro Fachin, dela não carece, conclui-se que o verdadeiro destinatário é o próprio Sérgio Moro. Tal impressão não é desfeita pelas referências às “solicitações da imprensa” ou ao autoproclamado caráter “humilde” da iniciativa, desculpas esfarrapadas para seu autor aparecer. Nem é preciso dizer que o juiz desconhece seu lugar. Inebriou-o a celebridade construída às custas da presunção de inocência dos seus arguidos e da demonstração pública de justiceirismo populista.
Com a simplicidade e sabedoria do sertanejo do Pajeú, meu pai, de saudosa memória, ensinou-me que não se elogia um superior na hierarquia funcional. Fazê-lo pode parecer sabujice ou soberba. Elogio se faz a subalterno ou, quando muito, a colega. Um elogio do Sr. Sérgio Moro ao Ministro Fachin nada acrescenta à condição dest’último, que é, ou não, um “jurista de elevada qualidade” independentemente da opinião do juiz singular, pois o Sr. Moro não é igual nem superior ao Ministro por ele elogiado.
Quanto às “solicitações da imprensa”, melhor seria que o juiz singular não as tornasse públicas, pois se já é feio um juiz receber tais solicitações – tecer juízos sobre ministros do STF -, muito mais feia é a sua avidez em atendê-las. Um magistrado de piso não existe para julgar, para a mídia, os magistrados de instância superior. Ainda que lhe perguntem, não convém que responda. Suponhamos, só para argumentar, que o Sr. Moro considere o Ministro Fachin um desqualificado; será que “toma a liberdade” e dirá isso à imprensa? Claro que não, a não ser que seja doido varrido. Logo, dizer que o Ministro Fachin é qualificado sempre levantará a dúvida sobre a sinceridade do juízo, carente de alternativa assertiva. Por isso, dizem os antigos: em boca fechada não entra mosca!
Quanto à humildade, quem deve qualificar nossas atitudes como tais são os outros. Autoqualificá-las é, por excelência, uma autoexaltação e, portanto, a negação da humildade.
Segundo disseminada sabedoria popular, conselho bom é para ser vendido, não dado. Mas este ofereço de graça ao Sr. Moro: fale menos e trabalhe mais discretamente. Fale nos autos. Evite notinhas. Não jogue para a platéia. Não faça má política, mas administre a boa e cabal justiça. Defenda a autonomia do Judiciário e não aceite ser pautado pela imprensa, que não o ama, apenas o usa e o descartará quando não for mais útil. Se não acreditar em mim, pergunte ao colega Luiz Francisco Fernandes de Souza, aquele procurador tão assíduo nas páginas de jornais durante o governo FHC, hoje relegado ao ostracismo de um parecerista em instância de apelação.
Um juiz não deve ser um pop star. Na esteira do velho Foucault, o Judiciário deve cultivar a timidez e o recato atribuídos pela revista VEJA à Sra. Marcela Temer. Isso vale a fortiori para a justiça penal. Seu objetivo pós-iluminista não é a exposição de um bife humano esquartejável em praça pública, mas a suposta “recuperação” do cidadão que cai em sua malha. No Brasil, mui distante da Noruega, isso é uma quimera, mas é também a meta, sem a qual nunca poderemos sonhar com a redução do elevado grau de criminalidade. O imputado exposto é um imputado destruído, sem nada a perder e, portanto, de difícil reacolhimento social, com ou sem culpa. Conduzido “de baraço e pregão pelas ruas da vila”, exposto à execração pública no pelourinho, é mais provável que se considere injustiçado e não consiga ver legitimidade na atuação do seu juiz. Dê-se o respeito, Sr. Moro, para que todos possam respeitá-lo (e não apenas os membros do seu fã-clube, com a cachola detonada pelo ódio persecutório). Juízos ostensivos sobre magistrados de instâncias superiores não contribuem para tanto.
É bom lembrar, por último, ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que sobra tempo ao juiz Moro. Dedica-se o magistrado de piso a tertúlias com a imprensa, redação de notinhas, palestras no Brasil e no exterior, verdadeiras tournées de um artista buscando aplauso. Para tudo isso, recebeu, afora passagens e, quiçá, cachês ou diárias, o direito reconhecido pela corte regional, de funcionar, com exclusividade, nos processos da “Lava-Jato”, sem qualquer outra distribuição. Em outras palavras, nós contribuintes estamos pagando por esse exibicionismo, sem que sejamos compensados com serviço em monta equivalente. No mais, fere-se, com essa prática de privilégio, o princípio do juízo natural, ao dispensar-se, esse juiz, da distribuição geral da matéria de competência de seu ofício. O excesso de trabalho, com certeza, não é motivo crível para tratamento tão excepcional. Antes pelo contrário: como, a todo tempo, parece se confirmar, no seu caso, o aforismo “cabeça vazia é oficina do Diabo”, melhor seria devolver-lhe urgentemente a jurisdição plena por distribuição aleatória, para que se abstenha de notinhas tão degradantes para a magistratura.

Marisa Letícia, Lula, a mulher e o Brasil – um depoimento

Benedito Tadeu César
Só tive poucos e rápidos contatos com Marisa Letícia Lula da Silva, todos na campanha eleitoral de Lula à Presidência da República, em 1989, na qual participei como coordenador da assessoria de planejamento.
O primeiro, quando pedi para Denise Paraná Santos (que depois escreveria a biografia Lula, um brasileiro) acompanhar Marisa em uma entrevista de TV e, depois, para comprar um terno para Lula participar do debate dos presidenciáveis na TV Bandeirantes.
Para que Marisa aceitasse dar a entrevista, que fazia parte de uma série na qual foram entrevistadas todas as esposas dos candidatos a presidente,  Denise teve que conversar muito com ela e garantir que ela deveria ser apenas ela mesma: uma mulher simples, com ideias próprias, que se dedicava prioritariamente aos filhos e ao marido e que não teria que necessariamente ter respostas prontas sobre como Lula governaria o Brasil ou sobre qual seria o destino da Rússia pós Perestroika (então em curso). Ao final da entrevista, a caminho dá loja onde comprariam o termo de Lula, Marisa disse à Denise que aquela tinha sido a primeira vez que ela tinha ido a uma entrevista sem que tivessem lhe enchido de informações e recomendações sobre o PT, o Brasil e o socialismo.
O segundo encontro ocorreu dias depois, quando fui à casa de Lula e de Marisa para dali acompanhar Lula ao debate na Band. Lula não queria vestir o termo que Mariza e Denise, a meu pedido, tinham comprado para que ele fosse ao debate. Lula afirmava que ele era um operário, um metalúrgico, e que, por esse motivo, não deveria usar terno. Marisa insistia que ele era um operário-metalúrgico-candidato-à-presidente-da-República e que um presidente da República, mesmo operário-metalúrgico, quando exerce o mandato presidencial ou quando fala ao país usa terno e gravata e não a camiseta suada do trabalho. Nada o convencia, entretanto. Ele dizia que o terno azul claro, ideal para contrastar com o fundo do cenário e as luzes do estúdio, fazia com que ele esclarecesse com um periquito. Marisa, então, foi até a cozinha e chamou a vó (na verdade a mãe do seu primeiro marido e vó apenas de Marcos Cláudio), que arrumava a louça, para que ela olhasse Lula, vestido a contra gosto no terno e na gravata, e desse seu veredito. A pressão de Marisa e da vó foram decisivas: Lula vestiu terno pela primeira vez em um programa de TV e, nem por isso, deixou de ser o operário metalúrgico que sempre foi – que continuou sendo durante os dois mandatos na Presidência da República e que é até hoje.

SÉRIE As Flores do Mao – 2016: O golpe do Ano do Macaco de Fogo e a epidemia de Dengs

Walter morales aragão
A burguesia brasileira em 2016, ano do Macaco de Fogo pelo horóscopo chinês, esmerou-se em dar motivos para um reflorescimento de referências à teória e à geopolítica de Mao Tsé Tung, no âmbito do repertório à disposição das lutas da classe trabalhadora brasileira. E o fez com ações ora mais coerentes, ora mais contraditórias, em relação às linhas maiores do capital internacional, estas tão prejudiciais à imensa maioria da humanidade. E neste momento de crise violenta da globalização capitalista, sacudida pelo fracionamento da União Europeia e pela vitória  do nacionalismo de Trump. Tem-se, assim, num país de dimensões tão continentais quanto às da China, e com desigualdades sociais similarmente profundas àquelas do contexto de origem do maoísmo, uma sequência de movimentos da burguesia nativa os quais são sobremaneira propícios à conscientização da classe trabalhadora quanto aos limites do Estado burguês no Brasil.
O impedimento da presidenta Dilma Rousseff permite primeiramente uma verossímel classificação teórica do mesmo como golpe de estado parlamentar/midiático/empresarial e judicial. Episódio que fenomenicamente atualizou o pouquíssimo apreço efetivo das classes dominantes pela soberania popular, tão celebrada na formalidade do direito pátrio. De modo particularmente grosseiro e oportunista, as classes e frações de classes dominantes não tiveram sequer o decoro formalista de aguardar o cumprimento do mandato legítimo e o calendário eleitoral regular, como ocorreu, por exemplo, em conflito semelhante, na vizinha República Argentina. O afã pela aplicação de um programa ultra-neoliberal e anti-povo, com pretensões duradouras, não permitiu aqui essa civilidade cerimoniosa. Indecências e imputações de responsabilidades que, entre brutalidades de princípios e rigores de formalismo típico das tradições do Extremo Oriente, permitem associações à literatura, como por exemplo, ao conto de Jorge Luís Borges “O descortês mestre-de-cerimônia Kotsukê-No-Sukê”, do livro “História universal da infâmia”.
Alinhado à “conivência passiva” da gestão de Barack Obama e Hillary Clinton com os golpes de estado mais ou menos “suaves” que ocorreram ou foram ensaiados na América Latina (Honduras, Paraguai, Equador e Bolívia), no Egito, Ucrânia e na Turquia, como já apontaram vários analistas de relações internacionais, o que seria uma coerência relativamente ao neocolonialismo contemporâneo, o impedimento da Presidenta Dilma deixa agora as elites dominantes brasileiras em suspense diante do contraditório causado à globalização capitalista pela eleição de Donald Trump.
Por outro lado, em termos da tradição lesa-pátria da burguesia nativa, tem-se um conjunto de medidas de primeira hora, anunciadas e/ou já aprovadas, que reforçam aquele procedimento histórico. A mudança de regime da exploração do pré-sal e medidas como a adoção no governo de “softwares” de licença restrita ao invés dos liberados antes em uso, bem como a ampliação das possibilidades de aquisição de terras por estrangeiros, entre outras, o comprovam. Até mesmo as elites feudais e a burguesia do Império Chinês apresentaram mais resistência à dominação externa. E, mesmo assim, estas foram  responsabilizadas, durante o processo revolucionário, pelos prejuízos à nação advindos destas entregas. Esta fatura por algum nacionalismo objetivo poderá ser cobrada mais cedo do que pareceria provável, dada a crise já referida da globalização. A tragicomédia do travestimento nacionalista no Brasil – onde as cores nacionais foram adotadas pelos favorecedores da transnacionalização dependente – lembram criações clássicas da ópera chinesa tradicional.
E um terceiro ponto de referências extremo-orientais capaz de renovar um maoísmo brasileiro é a decisão do capital industrial de não fugir à luta com seu concorrente estatal-capitalista chinês. A ideia brilhante e lucrativa é reduzir o custo do trabalho no país, assemelhando-o ao dos chineses pela redução dos parcos ganhos indiretos que são os serviços e a previdência públicos. Sem, é claro, os ganhos nacionalistas que a República Popular oferece aos seus cidadãos. Há certo heroísmo patético nesta bravura industrial com o sangue dos outros. Tal reducionismo pode viabilizar, com suor e lágrimas, a indústria brasileira numa época de desindustrialização geral e capitalismo financeiro. Uma epidemia de Dengs. Resta observar como a economia de mercado interno, considerável no Brasil, reagirá diante desta matriz de viés exportador. Pode ocorrer uma revolta rápida dos donos dos bazares ligados a religiosos exaltados, à moda iraniana. Ou o retorno do movimento de massas após um afastamento protetivo, numa nova versão da Longa Marcha.

Os rumos do mundo: notas sobre a mídia, o relatório da OXFAM e a era dos super-ricos

Marília veríssimo Veronese
Diante dos horrores que vivemos no Brasil hoje, do sombrio futuro que se desenha, da ascensão conservadora que naturaliza a desigualdade – o relatório da OXFAM sobre o quadro geral das desigualdades no mundo, recentemente divulgado, traz informações contundentes e está sendo bastante comentado[1] -, tenho me perguntado sobre os rumos do mundo. Minha filha está em idade de “entrar no mercado de trabalho”. A expressão me causa calafrios, considerando que oito bilionários possuem a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas ou a metade mais pobre da humanidade, conforme o referido relatório. No Brasil, os seis maiores bilionários concentram a mesma riqueza que mais de 50% da população, ou mais de 100 milhões de pessoas. Nos últimos dois anos (2015-16), as dez maiores corporações privadas do mundo tiveram receita superior à de 180 países juntos.
Em Davos, as “autoridades” presentes garantem que se preocupam com este quadro… e se comprometem a tentar revertê-lo. Ufa, que alívio, né?! Imaginem se não se preocupassem e não se comprometessem!!!
No Brasil, a perda de direitos provocada pelos “pacotes” do governo golpista e ilegítimo é “comemorada” por quem perde os direitos trabalhistas, socioeconômicos etc., como se isso significasse alguma “economia” para o Estado. A mídia corporativa afirma repetidas vezes que um Estado deve ser gerido como uma unidade doméstica, “economizando e não gastando mais que ganha”. A falácia e o ridículo dessa comparação já foram apontados por diversos autores dos campos econômico e jurídico. Um deles, o economista Rober Ávila, explica que as funções do Estado dizem respeito a elementos fundamentais da vida em sociedade, como a segurança pública, o reequilíbrio distributivo e o estímulo à vida produtiva e saudável dos cidadãos. Não é racional deixar os cidadãos morrerem à míngua, sem emprego e sem serviços de saúde, para “equilibrar as contas”. Se fazem questão da comparação, seria mais ou menos como uma família dizer assim “querida, precisamos cortar despesas médicas. Nosso filho vai morrer, mas devemos ficar dentro do nosso orçamento, isso é o que importa”. Absurdos como esse são repetidos à exaustão nos jornais e na TV e ajudam a formar conceitos profundamente equivocados quanto ao papel do Estado na vida coletiva e na promoção da cidadania, bem como sobre inúmeras outras questões relevantes ao país.
Enquanto isso, segue o caos no Brasil. Aviões levando ministros da suprema corte caem, técnicos do TCU morrem afogados, o AVC de uma senhora serve para despertar e difundir o lixo chorumento que habita corações e mentes apodrecidos internet afora. Sobre isso, Jean Wyllys comentou hoje nas redes sociais que Reinaldo Azevedo, após estimular as hienas fascistas na internet e de jogá-las sobre tantas pessoas decentes (sobrou até pro Chico Buarque), agora pede que se contenham, fechando os comentários da notícia do aneurisma da Marisa Letícia e falando em “fascismo”, que casualmente ele mesmo ajudou a criar! É o quadro da dor sem moldura.
Mas enfim, quem nunca questionou os rumos do mundo com grave preocupação? Imaginemos um judeu na Alemanha da década de 1930… uma pessoa que prezasse a liberdade e a democracia no Brasil de 1964 ou no Chile de 1973… ou um estadunidense pacifista e beneficiário das políticas do welfare state no início dos anos de 1980 nos EUA. Apreensão total. Previsão de sofrimento e perdas. Então, nada de novo sob o sol.
Tenho lido muita coisa e, ao mesmo tempo, estado sem inspiração para escrever. O momento é semi-paralisante. Amigos, conhecidos, intelectuais, cidadãos – os que se preocupam com o mundo, claro, não os que vivem apenas para ganhar dinheiro, consumir loucamente no xópin e adquirir caminhonetes enormes e totalmente inadequadas para circular na cidade, apenas para provar seu poderio financeiro e ostentar – procuram saídas diversas desse labirinto sinistro em que nos metemos. Estão consternados, nós estamos. Alguns, segundo conversas e declarações, desacreditam do poder da mídia hegemônica para fazer – ou pelo menos fomentar – tanto estrago. Consideram que em tempos de internet, veículos comunicacionais como a revista Veja e o Jornal Nacional não detêm mais o poder que detiveram um dia. Discordo parcialmente deles: por certo não mais todo o poder de “informar” sem concorrência, mas ainda detêm muito poder.
O jornalista Lucio de Castro disse, com a autoridade de quem viveu no estômago da besta (redações importantes no país), que na escolha da pauta se define o que será “fato” e o que não será. Se são escolhidas dez pautas para detonar quem se quer detonar e nenhuma para explodir o bandido de estimação, o leitor no dia seguinte vai presumir que só tem escândalo daquele sujeito citado repetidas vezes, enquanto o outro é puro como um anjo, quando na verdade apenas foi poupado na pauta. E mostra como é enganosa a ideia de que “basta ler o jornal para saber do que está acontecendo”. Isso é, no mínimo, uma ingenuidade imensa.
Não há um lugar que eu frequente e tenha de ficar esperando – de salões de cabeleireiro a consultórios médicos, passando por bares e cantinas universitários – onde não haja uma televisão ligada na Globo. Faça o teste: preste atenção nisso. Se for pela manhã, depois dos jornais “noticiosos”, terá de aguentar Ana Maria Braga ou Fátima Bernardes. Se for a tarde, depois dos jornais do almoço, periga ter de encarar vídeo show ou sessão da tarde. E é aí que as pautas são definidas, é disso que o cidadão comum vai falar e nisso que vai acreditar.
Alguns locais, para dar um ar mais “sofisticado”, sintonizam na Globonews, e nos submetem aos horrores dos “comentaristas” e “especialistas” que só falam o que os entrevistadores – alinhados com a emissora, geralmente –  querem ouvir. Com raríssimas exceções, quando eventualmente estes são pegos de surpresa; e há alguns momentos bem interessantes e até engraçados dessa natureza. Selecionei três memoráveis, os únicos que tive notícia ultimamente, e colei os links na nota de rodapé para que quem não viu, assista. Vale a pena![2]. Tais momentos até poderiam ser compreendidos como uma tentativa de construção de efeitos de pluralidade discursiva – “olhem como somos plurais!” -, mas a consternação/embaraço dos entrevistadores parece apontar para um “deslize” da produção dos programas, mesmo, que não esperavam a “rebeldia” do entrevistado.
Nenhum fator explica sozinho, obviamente, um fenômeno da magnitude do caos que vivemos hoje no país. Afirmar isso seria de um simplismo bárbaro. São vários os atores sociais, individuais e coletivos, envolvidos no processo. Já temos lido exaustivamente sobre o caso, várias análises vão tentando dar conta de explicar o (quase) inexplicável.
Mas ainda acredito que a mídia corporativa continue tendo um papel central, prestando um desserviço, gerando ódios, falsos moralismos, conceitos equivocados e, pior de tudo, mentindo descaradamente, não só distorcendo. O caso do suposto “tríplex do Lula” rendeu manchetes e reportagens durante meses, e quando, ao final do inquérito, outras pessoas foram indiciadas – não encontraram provas suficientes de que estivesse envolvido – a notícia ficou restrita aos veículos chamados “alternativos”, que para mim também variam bastante nos quesitos qualidade e independência.
Os exemplos são inúmeros. O JN, por exemplo, que meus pais e tios consideravam a fonte principal de informação e atualização nos anos 70, 80 e 90 (“o repórter”; “o noticioso”), ainda é tido como tal por grande parte da população brasileira, manipulada diuturnamente por vieses e distorções variadas.
No livro “Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina”, Márcio Borges narra a história de seu amigo José Carlos, militante pela democracia que morreu sob tortura nas garras do Estado brasileiro ditatorial. E de como o JN mentiu desbragadamente para encobrir esse crime, do mesmo modo que parcela significativa da mídia brasileira antes, durante e depois do período da ditadura militar. Transcrevo aqui parte do texto do autor, e nas referências vocês podem ver o título completo da obra, da qual indico a leitura.
“Uma farsa estava sendo montada pelos órgãos de repressão, tanto os oficiais quanto os paramilitares (como a famigerada OBAN: operação Bandeirantes) – que recrutava jovens da classe média alta para treinamento antiguerrilha e caça aos “comunistas”. Na verdade, José Carlos já estava morto. Tinha falecido devido à crueldade das torturas de que fora vítima indefesa, nas masmorras da ditadura. Só que eles nunca admitiriam isso, evidentemente.  A primeira face da farsa teve a cara da censura e o vídeo da TV Globo. Eu estava com Marilton no apartamento que ele alugara em Copacabana e onde estava morando desde pouco tempo, recém-casado com a mineira Maria Carmem. Era hora do Jornal Nacional, mas só prestei atenção ao locutor Cid Moreira quando seu rosto foi subitamente substituído por uma foto 3×4 que tomou conta de toda a telinha e sua voz adquiriu um tom dramático e aterrador. Na foto reconheci imediatamente o rosto de José Carlos, enquanto a voz do locutor narrava para todo o Brasil uma mentira absurda, noticiando que nosso amigo tinha sido baleado e morto durante um tiroteio com a polícia, nos arrabaldes de… Recife, Pernambuco. Minha reação foi histérica e infantil. Dei um pulo da cadeira e comecei a bradar, brandindo os punhos na direção da imagem de Cid Moreira: — Mentira! Assassinos! Assassinos! Ele morreu em São Paulo! Torturadores assassinos!!! — e caí sentado, abatido pela revolta, pelo desespero, pelo medo, pela dor, tudo junto.”
Eu, que na época era criança ainda, me lembro bem dos “tons aterradores e graves” do Cid Moreira para narrar as coisas, fossem ou não mentirosas. E não tenho ilusões de que a realidade tenha mudado muito desde então. As ocultações continuam, os vieses manipuladores, a insistência com certas pautas e o abandono de outras, as marteladas diárias para criar “realidades” de acordo com os interesses midiáticos. E quais são esses? Os dos patrões, claro; no relatório da OXFAM, temos algumas pistas novamente.
A maximização do lucro, por certo, é o principal interesse das grandes corporações, midiáticas ou de outros setores. Ela se dá através de mecanismos como a evasão fiscal, o super-capitalismo dos acionistas (na década de 1970, no Reino Unido, 10% do lucro das empresas ia para os acionistas; hoje vai 70%) e o capitalismo da camaradagem (que inclui o controle dos estados-nação, usando o enorme poder e influência para garantir que regulações e políticas nacionais e internacionais sejam formuladas de maneira que possibilitem a continuidade dos lucros). O relatório conclui que estamos na era dos super-ricos, na qual a fachada enganosa camufla problemas sociais gravíssimos e muita corrupção. O estudo que gerou o relatório incluiu todos os indivíduos com patrimônio líquido acima de US$ 1 bilhão.
Os 1.810 bilionários (em dólares) incluídos na lista da Forbes de 2016 (dos quais 89% são homens), possuem um patrimônio de US$ 6,5 trilhões – a mesma riqueza detida pelos 70% mais pobres da humanidade. Só a África perde, todos os anos, US$ 14 bilhões em receitas em decorrência do uso paraísos fiscais por parte dos super-ricos – segundo cálculos da Oxfam, esse valor seria suficiente para prestar assistência de saúde para quatro milhões de crianças e empregar um número suficiente de professores para colocar todas as crianças africanas na escola. Ou seja: não há como defender a moralidade dessa situação indigna, a despeito dos esforços, inclusive de certa ex-esquerda (que gosta de falar em ex-querda), para anular a questão ético-moral a todo pano, usando Nietzsche e Foucault na empreitada, se necessário. Eles também gostam de botar a culpa de todos os males do Brasil, do mundo e da galáxia na conta do petê (Partido dos Trabalhadores), mas aí já é uma outra história.
Me limito aqui a comentar o relatório, relacionando-o com o papel da mídia na situação insustentável que ela ajuda a legitimar e sustentar. Enquanto louvam os super-ricos – dos quais os donos da mídia corporativa fazem parte – como seres plenos de mérito, espertos, espécie de “Midas” contemporâneos, criminalizam violentamente os movimentos sociais, e tem sido assim historicamente. Trecho de artigo sobre o tema, de autoria de Leopoldo Volanin, professor de história, dá conta dessa historicidade:
“A manchete estampada na Folha da Manhã de 26 de novembro de 1935, referindo-se a Intentona Comunista “Pernambuco e Rio Grande do Norte agitados por um movimento subversivo de caráter extremista”, já indicava um processo de lutas sociais e conflitos políticos e ideológicos entre organizações de grupos sociais oprimidos e os sistemas dominantes, detentores dos meios de comunicação. A Revista Veja de 26 de junho de 1985 traz em uma de suas manchetes “Férias ameaçadas – a supergreve nas escolas altera calendário”, apresentando negativamente a greve de professores para a população, omitindo, no entanto, dados fundamentais que os levaram à greve, como a desvalorização salarial do professor, o desgaste humano devido a quantidade de atividades que o professor se vê na contingência de realizar, o afetivo, entre outros”.
Aqui também os exemplos abundariam. Em relação aos movimentos sociais por terra no campo e por moradia nas cidades, a criminalização é intensa e diuturna na mídia hegemônica. O descaso com a função social da terra e da propriedade, a ausência de uma política de Estado séria nesses campos, que atendesse às necessidades da população mais pobre, é totalmente ignorada pelos veículos. Enquanto isso, os militantes que se organizam para fazer pressão para que se cumpra o que está dito na constituição federal são transformados em criminosos no senso comum do cidadão médio; este último, geralmente, leitor de jornais escritos e revistas semanais, além de telespectador de “noticiosos” de TV. Peguei os exemplos acima citados apenas para ilustrar que a coisa não vem de hoje, que já foi – e continua sendo – construído um imaginário conservador no Brasil, e que será muito difícil desconstrui-lo para erigir outro mais inclusivo e plural.
Isso ajuda a explicar aqueles seres ignóbeis que vemos nas redes sociais, xingando, ofendendo, banalizando o mal, desejando a morte de senhoras hospitalizadas em estado grave e muitos outros horrores, que praticam prazenteiros, certos de que são “gente de bem”. Que os céus me ajudem e que eu possa ficar segura, a salvo dessas gentes tão “distintas” quanto perigosas na sua tosca ignorância.
 
Referências:
ÁVILA, R. I. (2016). Não se administra um Estado como uma padaria. Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/nao-se-administra-um-estado-como-uma-padaria-por-rober-iturriet-avila/
BORGES, M. (1996). Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial.
CASTRO, L. (2017) Piovani: posso te contar umas coisas que vi nas redações? Disponível em: http://agenciasportlight.com.br/index.php/2017/01/24/piovani-posso-te-contar-umas-coisas-que-vi-nas-redacoes/
VOLANIN, L. (2010). Poder E Mídia: A Criminalização dos Movimentos Sociais no Brasil nas Últimas Trinta Décadas. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/760-4.pdf
OXFAM (2017). Uma economia para os 99%. Relatório disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacoes/uma-economia-para-os-99
 
[1] https://www.oxfam.org.br/davos2017
[2] https://www.youtube.com/watch?v=7ij4x7Dbvqo (Cartunista Carlos Latuff).
https://www.youtube.com/watch?v=K6kRpsoqeC8 (Professora Gilberta Acselrad).
https://www.youtube.com/watch?v=CxVnQxWraHs (Jornalista esportivo Tim Vickery).
 
 

A ideia de comunismo

Jorge Barcellos
Doutor em Educação
A reflexão da esquerda frente a ascensão da direita passa pela revisão de seus conceitos mais fundamentais como o de comunismo. Desde a publicação de L’idée du comunism (Lignes, 2010), coletânea das conferências realizadas em Londres em 2009 e publicada recentemente na França, o conceito continua sendo central para o pensamento de esquerda. Organizado por Slavoj Zizek e Alain Badiou, a obra é organizada em 16 capítulos entregues a fina flor da intelectualidade. Zizek é o famoso filosofo e crítico cultural esloveno, conhecido por sua leitura lacaniana da cultura popular. Na verdade, há um primeiro Zizek mais voltado para a psicanálise e o cinema, e um segundo Zizek, ainda praticamente desconhecido, voltado para uma prática da análise política propriamente dita – provavelmente reforçada por sua fracassada candidatura à Presidente da Eslovênia. Badiou também é um leitor de Lacan, mas a isto se acrescenta Nietzsche e toda a vivência do maio de 68 francês que o transformaram num dos mais atuais analistas revolucionários, ou como prefere Badiou, apenas alguém que deseja mostrar o potencial de inovação e transformação de cada situação. Para Yannis Stavrakakis, em Una esquerda lacaniana (FCE,2010, já esgotado), o mérito de desde novo lacano-marxismo é questionar, em curto-circuito, os pressupostos de funcionamento do Capital.
Ainda que pouco conhecido, L’idée de communism constitui um ponto de partida e renovação importante para a esquerda no século XXI. Como se sabe, desde a década de noventa a esquerda tem presenciado derrotas a nível mundial. Políticas sociais dos estados de bem-estar social retrocederam, a integração das economias socialistas ao mundo capitalista e a regressão dos movimentos de emancipação do terceiro mundo parecem sinalizar que o tempo da emancipação política radical chegou ao fim.  Mas não é bem isto que veem os autores da coletânea. Para eles a ideia do capitalismo liberal como a nova ordem natural sofreu reveses com os ataques de 11 de setembro e a crise financeira de 2008 e, por esta razão, a necessidade de repensar os fundamentos da emancipação política nunca foram tão atuais.
A primeira conclusão dos autores é que a esquerda como proposta de partido estalinista está enterrada. E também a nova esquerda, como se apresenta hoje a dita democrática, apenas propõe a reforma do sistema de pensamento, o que não é suficiente se não se pensar em reformar a estrutura da democracia representativa. É preciso outra esquerda que busque no que resta do comunismo, no horizonte de projetos de emancipação radical, os conceitos para orientar suas pesquisas e a ferramenta para expor seus fracassos políticos – da própria esquerda-  para construir novas perspectivas para a ação.  Esta discussão abre, sem dúvida, um campo de possibilidades políticas, o que faz seus autores valorizarem ainda mais o comunismo como conceito filosófico.
Esta forma de colocar o tema do comunismo surgiu primeiro com Alain Badiou, em sua duas de suas últimas obras “L’hipothese comunist “ (Lignes, 2009) e “De quoi Sarkozy est-il le nom” (Lignes, 2007) onde o autor, desejando enumerar alguns princípios básicos para ação política, defende a ideia de que não podemos confiar nas empresas para produzir solidariedade social já que a economia de mercado produz uma democracia atrofiada onde persistem as desigualdades indesejáveis. Para Badiou e Zizek, aceitamos com muita naturalidade que o capitalismo é nosso destino final: precisamos nos revoltar com o desperdício irracional de recursos, com o valor econômico dado às guerras, etc., etc. Para os autores, e aí está uma questão polêmica da obra, se as experiências reais comunistas foram sangrentas, não podem ser comparadas aos massacres levados a efeito pelo capitalismo, em sua fúria predatória pelo mundo inteiro. A situação dos povos africanos e asiáticos é apenas um exemplo.
sovietQuando o Seminário de que trata o livro foi realizado, em 2009, o Jornal The Guardian chamou a atenção para o fato de que se tratava de um evento mais “quente” que um jogo de futebol ou o show de uma cantora pop. A descrição tinha sua razão de ser. Realizada na Universidade de Birkbeck, em Londres, atraiu participantes de todos os continentes, Estados Unidos, da América Latina, África e Austrália, que foram ouvir os grandes pensadores de esquerda. Todos queriam respostas para seus problemas práticos, mas só ouviram dos organizadores que que se tratava de “uma reunião de filósofos que ia lidar com o comunismo como um conceito filosófico, defendendo uma tese precisa e forte: a partir de Platão, o comunismo é a única ideia política digna de um filósofo.”
Que à época houvessem tantos interessados em discutir a teoria do comunismo, é indicador da importância que o tema tem para a esquerda.  Convite a pensar que mantém inquestionável o valor da obra. Terry Eagleton parte do Rei Lear, de Shakespeare, para mostrar o valor da utopia, comparando a todo o momento com os Grundrisse, de Marx; Michel Hardt faz a crítica das estratégias neoliberais de privatização de indústrias para retomar, mais adiante, o conceito de propriedade comum tão caro ao marxismo; Tony Negri retoma os pressupostos do materialismo histórico que dizem que a história é a história da luta de classes para descobrir o valor da ética de esquerda baseada no valor do comum; Jacques Rancière, retoma da hipótese comunista de Alain Badiou para reforçar o valor de emancipação humana contida no conceito de comunista, bem diferente da ressignificação que o levou a ser tratado como um “monstro” do passado; Gianni Vattimo, num texto curto, enumera nove teses entre as quais a ideia paradoxal que em realidade, capitalismo e comunismo padecem da mesma dissolução metafísica, aproximando-se pelos seus sucessivos fracassos semelhantes. Os demais autores, integrantes da coletânea, ainda contribuem com suas análises específicas: Susan Morss, Peter Hallward, Jean Luc-Nancy, Alessandro Russo e Alberto Toscano tratam desde as formas do comunismo até a filosofia e a revolução cultural sob o regime. Talvez a curiosidade seja a presença de Minqi Li e Wang Hui, que apresentam as visões do extremo oriente, em especial sobre os acontecimentos recentes na China – faz falta aqui um breve resumo do currículo dos autores, tão comum em coletâneas do gênero.
Não há dúvida que o debate propriamente dito encontra-se nos textos dos organizadores. Badiou reitera a crítica a ideia de que o capitalismo seja o modelo de emancipação histórica para a humanidade inteira. Quer retomar o conceito do ponto de vista filosófico, afirmativo, como campo de construção de um projeto social. Na “Ideia do Comunismo “, que dá título à obra, afirma Badiou, estão presentes três elementos primitivos: o componente político, o histórico e o subjetivo. Após analisar cada um desses elementos, Badiou conclui pela necessidade de ressignificar a ideia de Comunismo, opinião que é compartilhada por  Zizek, por sua vez, no texto que encerra a coletânea. Partindo uma história de Franz Kafka, sobre Joséphine, a cantora, faz da sua análise uma metáfora da trajetória comunista, por um lado, e por outro, recolhe das perspectivas de Hannah Arendt, Habermas e Horkheimer a necessidade de relocalizar, na cultura comunista, o significado das atitudes subjetivas mais intimas.
Para os autores, ainda é preciso da ideia do comunismo para se viver “não vejo qualquer outro”, diz Badiou. E mais “Se temos de abandonar essa hipótese, então já não vale a pena fazer qualquer coisa no campo da ação coletiva. Sem o horizonte do comunismo, sem essa ideia, não há nada no histórico e político a tornar-se de qualquer interesse para um filósofo. ” A razão, para Badiou,   é que somente no comunismo podemos defender uma ideia de igualdade pura. Sempre haverá espaço para pensar na ideia de comunismo enquanto estivermos lutando contra a injustiça, e provavelmente, fazendo a crítica do Estado. O livro tem mérito. Mesmo sem oferecer uma agenda política imediata, ele é um elemento importante para todos os homens de ação. A ideia central é que não há emancipação política sem filosofia, e nesse sentido, o comunismo, ao estabelecer a igualdade como um padrão para políticas que possam vir a surgir, ajuda a diferenciar as más das boas políticas. Que os autores retornem a Marx e Hegel, o fazem na busca de um pensamento dialético para a construção de um novo projeto político. Para Zizek, não há mais dúvidas de que o Capital se tornou nossa vida real, e para ele vale a máxima de Lênin “Começar, desde o início, uma e outra vez”.

Então tá… 

Eugênio Aragão
Vamos todos fingir que é normal o presidente do Tribunal Superior Eleitoral pegar carona com um sedizente presidente da república (com letras minúsculas mesmo) para ir a Lisboa, supostamente para participar das cerimônias funerais do maior democrata português da contemporaneidade. É normalíssimo, porque o tal presidente do tribunal é quem vai pautar um processo que pode significar o fim do que se usou chamar, na mídia comercial, de “mandato” do sedizente presidente da república. O tal presidente de tribunal é inimigo notório da companheira de chapa do sedizente presidente que urdiu um golpe para derrubá-la. Mas, claro, tem toda isenção do mundo para julgar ambos.“Nada haverá de suspeito”, como diria o insuspeito jornalista Ricardo Noblat. Quem ousaria dizer o contrário?

A carona (ou boleia, como diriam nossos irmãos lusos) veio a calhar. É, antes de mais nada, uma bela viagem 0800, com todos custos cobertos por mim, por você, por nós, obsequiosos bobões. A ideia é só aproximar réu e julgador e – por que não? – usufruir um pouquinho do que a capital portuguesa tem de melhor a oferecer: as tabernas, o fado, as ginjinhas, as pataniscas de bacalhau ou os famosos pastéis de Belém. Nestes tempos bicudos, nada melhor que uma “escapadela” para enfrentá-los com maior disposição. Ninguém é de ferro. As exéquias do democrata lusitano certamente são a menor das preocupações do réu e de seu julgador, pois vê-los prestar suas últimas homenagens ao gigante da política portuguesa parece tão obsceno quanto fosse ver Lula prestá-las a Augusto Pinochet.
Vamos todos fingir que neste país chamado Brasil há um patriótico chefe do ministério público, que faz muito bem em ir a Davos. Lá vai cantar uma ode ao combate à corrupção que se usou chamar de sistêmica ou organizada pelas bandas de cá. Ou, quiçá, até de uma forma de governança. Isso também é normalíssimo, porque em Davos se reúnem bancos e fundos de envergadura global para traçar estratégias sobre novos investimentos e analisar a conjuntura política e econômica no planeta. Claro, faz sentido. Com as proezas ditas de si e de seu poderoso órgão acusador, vai atrair enorme interesse por investimentos nobres em seu país. Finjamos que grandes empresas adoram investir em economias tingidas de corrupção sistêmica, certificada pelo chefe da acusação.
O poderoso órgão de acusação, regiamente sustentado com nossos impostos, como é sabido também, sacrificou no altar da moral purgatória mais de um milhão de empregos e pôs fim a um projeto de desenvolvimento nacional e de uma sociedade inclusiva. Mas, claro, tudo com a melhor das intenções. Fez um nobre serviço à democracia do tal Brasil, permitindo ao réu a caminho de Lisboa instalar-se no poder sob as bênçãos de seu julgador caroneiro, para liquidar, num verdadeiro off-sale, os ativos econômicos do país, as jóias da família. Disso empresários em busca de lucros gostam. Mas esse deve ser o menor problema do chefe do ministério público, pois vê-lo em Davos parece tão obsceno quanto ver George Soros num Encontro Nacional dos Procuradores da República em Comandatuba.
Vamos todos fingir que temos um preocupado ministro da justiça que declara publicamente apoio ao governo do Amazonas para debelar, em seu sistema penitenciário, a guerra assassina entre facções de traficantes. Normalíssimo, oras. O azarado ministro, de boa-fé, não se lembrou ter negado o pedido desesperado de uma governadora, de uso da Força Nacional que, talvez, pudesse ter salvo a vida de trinta e poucos brasileiros em Roraima, massacrados na vindita de uma facção contra outra, que dizimara quase sessenta concidadãos em Manaus.
É aceitável, afinal, que o governador do Amazonas, destinatário do apoio do tal ministro da justiça, tenha sido financiado em sua campanha eleitoral pela empresa copiosamente remunerada para administrar a penitenciária onde trucidaram os quase sessenta brasileiros. Faz todo sentido, por isso, que pontifique: “nenhum dos mortos era santo!”, como se aplaudisse os padrões da administração penitenciária contratada de seu doador. E faz todo sentido que o tal governador se julgue Deus, para condenar os trucidados ao fogo eterno. Não é que ele mesmo poderia estar lá, se fossem levar a sério, no tribunal do julgador caroneiro, o imperativo de cassação de seu mandato por compra de votos? Deixá-lo falar de falta de santidade é tão obsceno quanto imaginar o cramunhão ser canonizado.
A literatura popular alemã contém antiquíssimo anedotário de autoria controvertida sobre uma cidadezinha chamada Schilda. Seus habitantes, os ingênuos Schildbürger, são os protótipos de néscios que fazem, com naturalidade, tudo de forma a nada dar certo. Inventaram um papel higiênico que se pode usar nos dois lados: a prova de sua eficiência está na mão… O Brasil de nossos fingimentos virou uma enorme Schilda. Fazemos os maiores absurdos, mas não perdemos a esperança ingênua de acertar. E não entendemos quem ouse não concordar.
Um julgador pegar carona com um réu a ser por ele julgado; um chefe do ministério público ir a Davos para ajudar a atrair investimentos numa economia que chama de podre, ou um ministro da justiça se esquecer de que negara meios a uma governadora para evitar um massacre, mas que agora, diz, vai dá-lo a um outro governador que faltou bater palmas para o banho de sangue no xilindró sob sua responsabilidade: tudo isso não é muito diferente do uso de papel higiênico nos dois lados. Mas quem fica com as mãos borradas somos nós que fingimos estar tudo bem.
Bem vindos à Schilda brasileira!