A moralização dos pobres

 Marilia Verissimo Veronese
Doutora em Psicologia Social pela PUCRS. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS
As classes médias e altas estão sempre prontas a uma cruzada pela moralização dos pobres. Para elas, existe o bom pobre e o mau pobre: o primeiro é humilde, servil, respeitoso com “os de cima”, aceita trabalhar à exaustão por uma remuneração baixíssima, não reclama da sua condição. Está sempre agradecido/a pelo (pouco) que lhe concedem os mais aquinhoados.
Se ganha roupas que saíram do armário de seus patrões (mais para liberar espaço do que para aquecer alguém), fica agradecido e deixa-os com a sensação agradável de serem boa gente, gente caridosa. Toma o elevador de serviço, exclusivamente, e concorda que mobilidade social só através de muito trabalho duro (sem, obviamente, comentar que trabalha duríssimo a vida toda e a mobilidade raramente vem). Se for religioso e atribuir à vontade de deus a desigualdade social, tanto melhor! E se contar como, na favela ou periferia onde reside, alguns de seus vizinhos são preguiçosos e não gostam de serviço pesado, passam o dia a tomar cerveja fiada no boteco e por isso é que não vão pra frente, ganha o prêmio de “pobre ideal”! Ninguém comenta que ele/a trabalha duro pra caramba e também mora ali, não conseguindo se mudar para mais perto do trabalho. E toma ônibus lotado e demorado todo dia.
As mães de filhos de pais diferentes são apontadas como responsáveis pelo abandono dos homens com quem se envolveram, afinal, “não se deram ao respeito”. Se, desesperada e exausta, ela apela para um aborto clandestino na oitava gravidez e morre de hemorragia, dirão: “Bem feito. Assassina”. Poucos falam do homem que a abandonou, e ninguém comenta que a filha ou esposa do patrão também já fizeram aborto, pagando 5.000 reais na clínica chique do doutor rico que sai nas colunas sociais; para essas, afinal, está liberado. E segue a hipocrisia. As classes abastadas são protegidas por vários privilégios, como uso de sofisticados – e caros – recursos jurídicos para evitar a imputabilidade de crimes*. Não por acaso as prisões estão cheias de pobres. Tolamente, acredita o senso comum que pobre comete mais crime. Tsc, tsc, tsc… a ingenuidade beira a idiotice, às vezes.
Enfim, o bom/a boa pobre entra quietinho/a pela porta dos fundos, limpa a privada da madame e não reclama nunca. Faz hora extra sem receber pagamento extra nem adicional noturno, vai no sábado “quebrar um galho” lavando a louça na festa pela qual receberá pouco e… pronto! Medalha no peito pelos serviços prestados à ideologia justificadora da realidade social baseada numa falsa meritocracia – que na verdade é muito mais por herança do que por esforço. E não me refiro somente à herança em bens ou dinheiro, casas e carros; mas também a herança de um capital social/cultural e de um preparo para “vencer na vida” que começa quando se está ainda dentro do útero materno. Desde então, em classes favorecidas socioeconomicamente, já está sendo planejado para o bebê que vai nascer um futuro, uma formação cuidadosa e segurança afetivo-financeira. Isso tudo será transmitido pelo afeto, no cotidiano, antes da idade escolar. O valor atribuído pelo sujeito a si mesmo – ou suas expectativas em relação ao que pode alcançar na vida – são construídos nesse processo, desde muito cedo, interiorizadas nas disposições profundas de cada um/a (o habitus de Pierre Bordieu).
A outros/as, porém, caberá um lugar desqualificado e desprotegido no mundo, na divisão social do ensino formal e do trabalho. Apesar da abissal diferença entre a qualidade das escolas que frequentarão, haverá quem diga que o sucesso escolar só depende do aluno e do esforço pessoal nos estudos. Começando a trabalhar cedo, sem tempo para aprimorar-se e submetido a uma dura rotina, será mesmo que o pobre disputará com o rico, por exemplo, uma vaga na universidade em igualdade de condições? Eu acredito que a resposta é um rotundo NÃO. Ah, mas “cotas” é discriminação, repetirão solenemente, acreditando-se paladinos da justiça e da igualdade de oportunidades.
Existem exceções? Por certo que sim. Existe mesmo quem não queira trabalhar ou esforçar-se, entre os pobres (e entre os ricos!); assim como existem os heróis que conseguem a mobilidade social pelo trabalho duríssimo e muito sacrifício (caminhou 10 km após o trabalho, à noite, para estudar… carregou pedras, chorou sangue e venceu na vida… e outras histórias, narradas sob som de violinos, que trazem lágrimas aos olhos das gentes de boa-fé que não tiveram de passar por isso). Mas a condição de exceção desses heróis – “o marido da prima da minha vizinha era engraxate e agora é empresário bem-sucedido e blábláblá…” – confirma a regra que rege a reprodução das desigualdades materiais e imateriais. E a imensa maioria deverá seguir seu destino de “vida de gado”, servindo aos interesses dos de cima e sendo cordatos, puros, servis e humildes.
Caso não aceitem ocupar esse lugar e mostrem seu descontentamento de várias formas, legais e ilegais, aí se transformarão nos “maus pobres”. São aqueles que não têm um comportamento “certinho” como descrito acima. Bebem, vão a bailes funks, tem comportamento sexual livre (esse último ponto, como desqualificação, vale especialmente para as mulheres, claro). Não aceitam trabalhar arduamente numa atividade que consome a saúde, remunera mal e exige horas em transportes coletivos apinhados de gente. Não admitem humilhações, reagindo a elas; vão à praia em lugares “de gente de bem”, atrapalhando o lazer destas com sua “feiura de pobre” e o potencial “perigo” que representam. Falam alto, fazem “barraco”, não “se enxergam”. Podem até vender droga para os filhos das elites que adoram se chapar ou mesmo fazer arrastão em Ipanema, no Leblon e outros lugares reservados aos bem aquinhoados da sociedade. Pobre bom é pobre que faz fila pra receber sopão, de cabeça baixa, lá na periferia onde “é seu lugar”.
Mas pobre politizado também pode ser um mau pobre. Caso exija direitos básicos – como acesso à terra, trabalho e moradia e se una a movimentos sociais, – é demonizado pela “ousadia” e chamado de “vagabundo” que quer mamar nas tetas do Estado ou de algum empresário ou fazendeiro rico, “direito”. Curioso que estes últimos, ao receberem polpudos incentivos fiscais por parte do Estado, ao terem suas dívidas perdoadas, ao sonegarem impostos necessários à manutenção dos serviços públicos essenciais, não são tidos como sanguessugas de nada. Ao contrário, teriam “direito” por serem “dos grandes” que “chegaram lá”. Alguém já viu panela batendo para a não reconhecida corrupção presente no rentismo, que corrói o orçamento nacional via juros da dívida e vampiriza a riqueza produzida por todos que é concentrada por poucos?* Não. As panelas só batem quando a mídia corporativa fala em corrupção, especialmente de quem tentou minorar ao menos um pouco a desigualdade que castiga o país há cinco séculos. E que seja bem espetacularizada, para lavar a alma do pessoal rico e fino de camisa da CBF, que pode se achar novamente super honesto.
Nos anos 80 foi cunhado o Termo “Belíndia”: poucos vivendo como na Bélgica, muitos vivendo como na Índia. Aliás, isso me lembra uma história, contada alegremente por um sujeito bon-vivant, em casa de parentes, após uma viagem dele ao belo país asiático. Relatava, encantado, que hospedado em casa de amigos, ao chegarem de um passeio as 4 horas da manhã, com fome, os donos da casa acordaram os empregados para fazerem sanduíches. “Eles estão aqui para isso”, justificaram os patrões. O hóspede abastado adorou, achou o máximo da gentileza e hospitalidade!
Eu só teria a dizer pra ele o seguinte: Quer um sanduíche as 4 da manhã, mané? Vai pra cozinha e faz! Trabalhador tem direito a uma noite de sono para descansar da jornada. Escravidão é uma coisa profundamente imoral e indigna, e quem contribui conscientemente com ela, ou com uma situação análoga, idem. Condições degradadas e humilhantes de existência humana têm quase sempre a participação ou aquiescência das “gentes de bem”, por que será?
E não são só os pobres que têm sua avaliação severa feita por essas “pessoas de bem”. Os gays (LGBTs em geral) também são hierarquizados pela sua atitude diante da sociedade. O bom gay é discreto; “fica na dele/a”; não fala da sua orientação sexual, não reivindica igualdade, não deseja trocar carinhos com o parceiro/a em público, não “ofende” os bons costumes pretendendo formar família, adotar crianças que eventualmente héteros abandonaram ou não puderam cuidar. Caso seja militante, ocupe a esfera pública, demande iguais condições de vida e cidadania, lute por direitos civis e dignidade, pelo direito de vivenciar plenamente sua identidade de gênero e orientação sexual, será demonizado, difamado e, em casos extremos, agredido ou até morto. A expectativa de vida entre os travestis é de 35 anos, dá pra acreditar? Enquanto a média da população brasileira gira em torno de 75 anos! Claro que há aí profundas desigualdades territoriais, de classe, sexo, gênero, origem étnico-racial (em Alagoas, por exemplo, é de 66 anos). Mas 35, nem na república dos Sarney ou dos Collor. Afirmam alguns, convictos – embora sem provas – que não há nada disso, que é só mimimi, que há uma ‘ditadura gay’ em curso etc.
A compreensão dos processos históricos que geram as desigualdades, a solidariedade ampliada (não só para “iguais”, familiares e amigos), a aceitação da igualdade na diferença como valor central, a promoção da justiça e de um projeto mais generoso de sociedade, aberto a tod@s, parecem horizontes distantes demais do Brasil atual. O “laboratório” desse país é visto nas mídias e redes sociais e em vários contextos que frequentamos diariamente.
Pesquisando nesse laboratório real e virtual (que também é concreto), concluo que muitas pessoas que se consideram a nata da sociedade ajudam a reproduzir, nos seus modos de vida, injustiças, segregações, elitismos, falsas meritocracias e muito sofrimento humano. A verdade que lhes escapa é que são sacolé de ki-suco se achando sorvete italiano de alta qualidade, para usar uma metáfora que eles provavelmente entenderiam. Porque sutileza e sensibilidade não é mesmo com eles. E agora a pior notícia: os sacolés podem ser qualquer um/a de nós, “bons cidadãos e tementes a deus”.
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  • CATTANI, Antonio. Sofismas da riqueza. In: CATTANI, Antonio; OLIVEIRA, Marcelo (orgs). A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre: Tomo, 2012.

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