João Alberto Wohlfart – Professor de Filosofia
Num contexto de ruptura institucional e num país mergulhado numa ditadura parlamentar-jurídico-midiática, é preciso questionar acerca do papel das religiões neste contexto. O velho filósofo Karl Marx, novamente odiado pelos golpistas, afirmou em seu tempo que a religião é o ópio do povo. No contexto do século XIX, o filósofo observou que em tempos de crise econômica, de fome e de miséria, a religião aparece como um consolo porque volta os olhos para outro mundo e impede a leitura e interpretação da realidade.
A religião oficial desembarcou em terras brasileiras com os primeiros colonizadores. Isto não significa dizer que os povos originários não tivessem religião, mas ela foi negada e reprimida. Os colonizadores do velho continente implantaram em terras brasileiras o colonialismo, o imperialismo, a religião oficial, a cruz e a espada. Todos estes componentes foram aqui estabelecidos num casamento perfeito que deveria durar eternamente. Esta condição para o Brasil e para a América Latina seria uma condição imutável inscrita na mente e na vontade divina, portanto os homens e mulheres mortais não deveriam sequer pensar em modificá-la.
Um intelecto minimamente esclarecido e com posicionamento crítico diante do cenário nacional e internacional que se desenha aos nossos olhos, deve olhar com outros olhos a postura da religião oficial diante dos séculos de escravagismo que obscureceram a História do Brasil. A religião oficial abençoou o escravagismo como algo natural, necessário e como uma lei natural inscrita no interior da própria sociedade. Sabe-se que os índios e os negros eram tidos como uma espécie humana de qualidade inferior, razão pela qual seria legítima a sua escravidão. Como se não bastasse, os índios eram tidos como uma raça sem alma e vistos como selvagens e incivilizados.
Considerando um longo caminho histórico de casamento da Religião com a monarquia patriarcal, ela sempre esteve do lado da monarquia, do patriarcalismo, do colonialismo, do racismo etc. Na época do Brasil Colônia e Império, as bênçãos divinas foram abundantemente derramadas para a sustentação de tal estrutura social e como expressão máxima de introdução da cultura e da Religião europeia. Foi preciso neutralizar a cultura indígena e africana, consideradas pecaminosas e supersticiosas por natureza, para implantar e impor a doutrina verdadeira e os costumes do centro do mundo. Ainda no tempo cronológico do século XX, os negros não eram admitidos à casta do sacerdócio católico porque eram considerados incapazes de assumir as virtudes de santidade de tal condição.
Parece evidente de que as religiões pressupõem uma visão dualista de mundo, de homem e de sociedade. Alguns são os detentores da graça divina, enquanto outros são naturalmente incapazes e impotentes para tal dádiva. Alguns levam uma vida de perfeição segundo a lógica da alma e do espírito, enquanto outros são submetidos às inclinações da carne e do corpo. Alguns são religiosos abertos à graça divina, enquanto outros se deixam arrastar pela lógica do pecado e do mundo. Com estes requisitos, a religião sacramentou uma estrutura social absolutamente imutável e constituída segundo a vontade divina. Trata-se de uma espécie de racionalidade fundamental, de contornos teológicos e religiosos, que naturaliza o patriarcalismo, o colonialismo, o racismo e do machismo. E como Deus é o protótipo da ordem masculina, as mulheres não passam de reprodutoras e contaminadoras do sagrado.
De uma longa história chegamos ao cenário atual. Em outro artigo destacamos um hiato neste tempo histórico quando a Igreja Católica, em pleno tempo de ditadura militar, adotou outra postura ao denunciar as atrocidades da ditadura e ao assumir a causa da transformação social como carro-chefe de sua ação evangelizadora. Mas, depois de duras repressões advindas do centro do catolicismo, ela abandonou a causa da transformação social, de forma que na atualidade é irrelevante a sua ação neste universo.
Como a Religião Católica se tornou imperceptível no processo de transformação social, com forte refluxo para a sacristia e para os templos, este espaço passou a ser ocupado por outras religiões, especialmente neopentecostais. Estas religiões têm dupla incidência, pois estão presentes em todas as esferas da política, especialmente no congresso nacional, e nas bases populares. A ação delas em várias instâncias da política, da economia e da sociedade é determinante no refluxo conservador e neoliberal. Os grupos religiosos neopentecostais que somam forças gigantescas de manipulação das massas e de composição de um quadro político nacional ultraconservador, têm como expressão final o enriquecimento de uma pequena elite e a exclusão de massas sociais das benesses do desenvolvimento econômico.
Com estas colocações, como interpretar hoje a frase do velho Karl Marx segundo a qual a “religião é o ópio do povo”? Não é uma simples frase, ela reflete a posição do filósofo diante catolicismo do século XIX. Esta posição de Marx enfureceu muita gente à sua época, em tempos posteriores e na atualidade. No presente, novamente pesa uma fúria mortal contra o pensador, porque a sua crítica contra a estrutura da sociedade capitalista e contra a sua lógica interna é radical. As contradições apontadas por Marx ao capitalismo são basicamente as mesmas que na atualidade estão falindo o capitalismo, a sociedade humana e o sistema vida do Planeta Terra.
Uma análise cuidadosa do cenário brasileiro atual indica que a postura de Karl Marx é de suma atualidade. A evidência imediata da atualidade desta posição é o retorno de fundamentalismos religiosos fanáticos e ultraconservadores, inclusive católicos. Há posições extremamente fechadas que não abrem brechas para diálogo, nem com outras religiões, nem entre religiões e nem com outras posições filosóficas. Mas o universo social está coberto por uma espécie de névoa religiosa, que não apenas fecha os olhos do povo diante do golpe e da ditadura, mas os legitima autoritariamente. Por trás de tantos discursos religiosos moralistas e devocionistas, há uma concentração diabólica de uma ideologia que impõe autoritariamente a ordem ditatorial estabelecida. Os fiéis religiosos mais santos e retos em sua prática religiosa, também oriundos de quadros católicos, falam religiosamente contra a corrupção, mas a repõe e a potencializam em dimensões muito mais gigantescas.
É um fenômeno curioso que em tempos de ditadura, de ruptura institucional, de perda de direitos historicamente conquistados e de entrega do país para o grande capital, seja um tempo de efervescência religiosa. Os autoritarismos e fundamentalismos religiosos são intensamente evidenciados e pronunciados contra os movimentos sociais, contra a democracia, contra as maiorias historicamente excluídas, contra os trabalhadores. As religiões estão na base de articulação política do atual estágio de desenvolvimento do neoliberalismo, que tem como dogmas fundamentais a privatização da economia, a retirada do Estado, a financeirização da economia, a superconcentração de renda e a massiva exclusão social. Há uma proximidade evidente entre a dogmatização econômica e a dogmatização religiosa, em posturas autoritárias que tem a mesma plataforma fundamentalista.
Percebe-se, facilmente, que posturas religiosas tipicamente angelicais, devocionais, com os seus discursos fundamentalistas, escondem a afirmação do projeto golpista neoliberal e a condenação de qualquer movimento de transformação social. Na atualidade, temas como democracia, movimentos populares, reforma agrária, soberania nacional, libertação quase não entram nas religiões e não fazem parte do discurso religioso. As religiões, inclusive a Católica, incorporam em suas agendas temáticas autoritárias, ortodoxas e ultraconservadoras, como a condenação das esquerdas, dos movimentos feministas, e das questões de gênero, etc.
A crítica de Marx contida na frase “a religião é o ópio o povo” é muito forte e de permanente validade. Todas as religiões incorrem na tendência de mediocrizar e infantilizar os seus fiéis e integrar o poder opressor. Em momentos de crise, de desintegração social e de miséria pública, a religião ofusca a realidade e impede a sua transformação. Na maioria dos países com incidência das ditaduras militares, estes trágicos acontecimentos foram amplamente encobertos pelas religiões. No momento atual, autoritarismos jurídicos, parlamentares, midiáticos, econômicos e políticos têm um fundo de dogmatismo e fundamentalismo religioso. As múltiplas formas de moralismos sociais amplamente difundidos na atualidade pela burguesia dominante têm uma sustentação religiosa. Os grandes retrocessos na economia, na política e na área social são amplamente amparados por fanatismos religiosos, como é o caso da bancada evangélica do congresso nacional. O juridicismo social que criminaliza os movimentos sociais difunde uma onda de condenação comparável à condenação das almas ao inferno no apogeu do domínio da inquisição católica.
O fenômeno religioso é uma faca de dois gumes. Pode representar uma força de libertação e de transformação social. Pode, também, contribuir com a alienação social, com a perda da consciência crítica, com a legitimação do poder econômico estabelecido e sustentar ditaduras. Na atualidade, muitas denominações religiosas são aliadas do sistema econômico e exploram os fiéis com proselitismos religiosos. Hoje o Papa Francisco é a voz profética de um novo mundo e de uma nova sociedade, mas os seus quadros hierárquicos e fiéis de base estão pouco sintonizados. Salvaguardando estes casos isolados, as religiões não têm perfil de denúncia das injustiças e de luta pela transformação social.