Guto Leite – Professor de Literatura Brasileira (UFRGS), poeta e compositor, parte do coletivo Frente de Professores da Letras em Defesa da Democracia
De início esclareço o leitor que não vou tentar repetir as tão frequentes e imprescindíveis análises que vêm sendo feitas por historiadores, jornalistas, cientistas sociais, filósofos etc.[1]. Sou somente um professor de literatura e conto com a segurança desse lugar, recusando voos mais altos. Pretendo, contudo, indicar alguns aspectos da atual conjuntura que não têm surgido nos textos que leio ou novas facetas de aspectos comumente abordados, no intuito de tentar construir uma visão mais complexa do golpe de Estado, refletir um pouco sobre nossa posição e responsabilidade diante do ocorrido, como pessoas que pensam o processo, e aventar algumas saídas para recuperarmos as bases mínimas de um debate democrático.
Vale dizer, primeiramente, que mais uma vez, como no golpe de 64[2], a burguesia brasileira preferiu o conforto subordinado ao capital internacional aos riscos de uma disputa por maior autonomia decorrente de arranjo interno. Isso torna evidente que são muito estreitas as possibilidades de conciliação entre classes e do modo como foi feito até hoje no país, notadamente a partir do governo Lula, ficamos à mercê de uma reviravolta brutal que não só nos tome os direitos obtidos, mas avance no aumento da assimetria. CLT, Previdência, SUS, Enem; está tudo em jogo. O combate à corrupção e uma reforma política efetiva são alguns dos instrumentos que poderiam agir nessas relações em favor dos mais oprimidos, no entanto a elite brasileira está sempre atenta na manutenção de seus privilégios. Fica claro também que Dilma não errou mais ou menos do que outros presidentes, ou mais paradoxal do que isso, seu erro político foi certa intransigência a aspectos fisiológicos do Estado brasileiro. Em síntese: seu erro foi seu acerto, ou vice-versa. Não tão intransigente quanto a outras conciliações, como em relação ao agronegócio e às comunidades indígenas ao lucro dos bancos, ao defender autonomia do Ministério Público – afinal, ela não deve, nem Teme – ou bloquear as influências de Eduardo Cunha em Furnas, ela se tornou elemento estranho ao universo político nacional, cercando-se de aliados que não lhe bastaram no processo de impedimento. Que golpes de Estado passem por dentro da constituição cordial da República brasileira, também parece evidente na observação de quantos governos eleitos conseguiram completar seus mandatos. Fica, portanto, a dúvida se estamos falando do fim de um projeto de esquerda ou do fim de um projeto de República, já que alianças pragmáticas, sempre mais fortes do que oposições, demonstraram que mais cedo ou mais tarde fazem a serpente quebrar o ovo.
Diferente de 1964, no entanto, dessa vez o conluio externo-interno contava com a máquina da grande mídia para se impor, aliás, boa parte dela, formada justamente quando da flagrante obstrução autoritária anterior. Essa terceira perna midiática foi fundamental porque construía consensos e fazia querer a derrubada da presidenta, como publicidade política, ou simplesmente propaganda, aos moldes do que houve na Rússia, na Alemanha ou nos Estados Unidos em quadros semelhantes. Milhares de pobres diabos canarinhos foram às ruas achando que queriam estar ali e que falavam por si – uma parte desses experimentam agora aquela sensação conhecida de propaganda enganosa, constrangendo-se ou silenciando suas participações. Cabe acrescentar que o papel da mídia no golpe está ligado a, pelo menos, dois pontos importantes do Brasil pós-1985 e, também, do capitalismo, razoavelmente a partir do mesmo marco. No primeiro caso, parte da conta precisa ser paga pelo regime civil-empresarial-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, provocando transformações importantes no Ensino Básico, como também na composição geral do imaginário do brasileiro – houve tempo que em certos horários a Globo contava com Ibope de 100%![3]. Em geral, essa geração que hoje tem entre 20 e 50 anos, aproximadamente, portanto, formada entre a Reforma Educacional de 1971 e o Governo Fernando Henrique Cardoso, é pouco educada politicamente, nacionalista, familista e religiosa, facilmente influenciável por discursos que mobilizem esses valores, que se esquivem da realidade material para manipuláveis abstrações. No segundo caso, parte da ilusão contemporânea constrói-se por certa liberdade absoluta do sujeito diante do mercado, visto que esse mercado, ultrarramificado, se movimenta com bastante facilidade para atender às mais variadas demandas[4]. Assim, não basta dizer o que deve ser feito, mas é necessário que o consumidor, também das notícias, acredite ser autor e protagonista daquela ideia. Creio não ser necessário mergulhar nas relações entre narcisismo, superficialidade, espetáculo, fetichismo, falso gozo e angústia permanente para analisar os fogos de artifício ouvidos quando da grotesca sessão do Congresso de votação do impeachment[5].
Discriminados esses nós, avancemos um pouco pela dimensão internacional da intervenção em nossa democracia. Não hesito em dizer que há um duplo despiste sobre a palavra “impeachment”. Evidentemente não é impeachment. Não houve crime de responsabilidade e, se houve algum eventual equívoco da presidenta, ele não justifica a perda de mandato. Só canalhas, ingênuos ou ineptos defendem a tese de impedimento. Os senadores “julgaram” pela volta da impunidade, com o fim da Lava-Jato, e/ou por sinecuras para si ou para os seus, apoios eleitorais etc. Indo adiante, defendo, entretanto, que também a palavra “golpe” não é suficiente. Trata-se de um ataque do capital internacional, centrado nos EUA, às nossas riquezas, nomeadamente: Pré-sal, Aquífero Guarani, Amazônia, mercado consumidor, entre outros. Por isso, tampouco é golpe, mas “guerra”. A palavra mais precisa é guerra. Estamos assistindo à nova maneira de se fazer guerra a uma nação, modus operandi que já tinha sido testado com sucesso em nações menores – desestabilização, cooptação de agentes públicos do executivo, do legislativo e do judiciário, mudança conveniente de governo; tudo absolutamente “dentro dos ritos legais”. Se essa atualização do software da violência resulta de aumento de tecnologia ou de perda de uma hegemonia global clara por parte dos Estados Unidos, é um tanto cedo pra dizer. Mas vale a reflexão, novamente, de Chomsky, nos alertando de que os Estados podem conseguir impedir a ação das instituições em que resistem os modelos de servidão e escravidão do passado, as grandes corporações[6]. A metáfora do linguista é intrigante: de certa maneira o Estado nacional é uma jaula que nos protege da selva das corporações. Com o êxito do ataque, seremos explorados para a manutenção dos privilégios dos mais ricos em escala global – sendo um “país classe média”, digamos –, e internamente os mais pobres serão explorados primeiro para a manutenção dos privilégios da elite, mas, acreditem, também chegará a hora a classe média manobrada.
Como citei no parágrafo anterior, já toco no assunto: é nítido que a justiça brasileira – juízes, advogados e promotores –, da porta da cadeia ao STF, está aparelhada, sem nem mesmo precisarmos aludir ao treinamento de juízes e promotores nos EUA há alguns anos. Não é preciso que todos ajam tendenciosa ou politicamente. Aqueles que o fazem são numerosos o bastante para afirmarmos, angustiados, que atualmente não há justiça no Brasil. Pode parecer que não, mas a Constituição é algo bastante tênue e deve contar com uma confiança coletiva de que ela está sendo respeitada. Se vazam escutas telefônicas, fazem conduções coercitivas arbitrárias, manipulam depoimentos, alargam ou encurtam tempos de prisão conforme interesses específicos, que crimes realmente não podem ser praticados? Ou então: se há tamanha e notória impunidade de políticos e juízes, por que eu devo ser o único a seguir a lei? Não temos histórico de guerra civil – como vaticinou o Senador Requião há alguns dias –, mas a instabilidade que um regime de exceção provoca não é de se desprezar.
Por fim, o último aspecto que eu gostaria de comentar antes de algumas conclusões é que a parte progressista da comunidade internacional está atenta e preocupada com a ruptura na democracia brasileira. Se é possível essa intervenção no Brasil, com que nação não seria possível fazer o mesmo? Ou uma segunda pergunta: em que medida um ataque à democracia brasileira – a quarta maior do mundo em número de eleitores (oxalá tivéssemos o mesmo número de leitores!) – não coloca em risco a viabilidade da democracia no capitalismo moderno, isto é, desvela certa incongruência explícita entre capitalismo e democracia plena: não é desejável formar cidadãos emancipados numa sociedade que trabalha a partir de produtores e consumidores, afirmou Adorno há um pouco mais de quarenta anos; fazer pensar e fazer comprar seguem lógicas contraditórias. Complementarmente, com a operação do capital nacional e internacional na política, começa a se desenhar a sensação de que é mais importante meu poder de compra do que meu poder de voto, ou melhor, de que ao comprar é que estou realmente votando, estou votando nas marcas e empresas, já que governantes podem ser substituídos caso contrariem interesses do mundo do capital. A se verificar qual será o tamanho dessa perturbação no já turbulento sistema capitalista contemporâneo[7].
Espero ter conseguido apontar que, em certo sentido, não havia nada que pudéssemos, nós, ter feito, para evitar o colapso que se deu – alguém precisa bancar a crise sistêmica do final dos anos 2000 afinal! Mesmo para o governo Lula, a janela de realização era bastante exígua. Conheço alguns bastidores que indicam concessões importantes feitas pelo ex-presidente antes mesmo de seu primeiro mandato e daí dependeria de Lula ter efetuado uma guinada mais brusca e cirúrgica, amarrando firme a elite no financiamento do bem-estar social brasileiro, algo difícil de se exigir a posteriori. Os dois mandatos de Lula avançaram bastante dentro do modelo de que dispunham, ponto. Talvez, mas seria difícil, pudessem alterar aspectos estruturais desse modelo, ponto. Mas isso não significa que não haveria um ataque, talvez até mais violento, às riquezas brasileiras – desde o começo dos anos 2000 já sabíamos que grandes reservas deste século estavam por aqui. Em 2010, o governo Dilma herda todos esses imbróglios e sem contar com os quadros do PT para apoiá-la integralmente, como era o caso do Lula. Não tão amalucadamente, creio que Dilma tenha começado a perder a presidência antes mesmo do primeiro mandato, mas quando já se sabia de sua candidatura, ali por 2009, pela retidão, pela impossibilidade de fazer conchavos, pela intransigência à corrupção. Isolada, torna-se sacrificável para que se “delimite onde está”, como disse o Senador Jucá, em gravação.
Ao mesmo tempo, não dá para negar que o espelho em que não quisemos nos ver – televisionado desde o final de 2014, em sessões da Câmara, Senado, STF – é resultado de um abandono da cena política de estadistas preparados. Houve debandada de intelectuais, sindicalistas incorruptíveis, líderes populares etc. da arena democrática (sinal de esgotamento desse modelo?). Isso somado ao projeto de extermínio de lideranças à esquerda é que faz Eduardo Cunha ser considero um “gênio” político. Suas habilidades perversas são inquestionáveis, mas não seria o mesmo quadro com políticos da estatura de Brizola ou Ulysses Guimarães ainda em atividade. Se o que passou nos canais públicos é um inferno, o inferno somos nós, também em nosso recolhimento para outras áreas do debate público, como a universidade, os jornais etc.. Creio que seja imperativo retomarmos esses espaços de representação. Reclamar da qualidade de nossos políticos é antes reclamar de nossas escolhas.
Para além disso, me parece, cabe continuar fazendo política noutros espaços sim. Dentro dos limites éticos da profissão de cada um, abrir sempre a porta aos oprimidos, fechar sempre a porta aos opressores. Não é mais tempo de isonomia. Não há como haver um governo golpisto como o de Temer – entendo que pmdbista não quer ser chamado de golpista pelo “a” final, seguindo decorativo da legítima presidenta – com uma base plenamente libertária, democrática. E não se enganem: Temer é só o boneco vaidoso de interesses maiores, como o da grande mídia brasileira, do capital nacional, do capital internacional, como procurei demonstrar. Ser radical e revolucionário cotidianamente, fechando a porta para os de cima, abrindo a porta para os de baixo, desvelando as injustiças e assimetrias, promovendo cultura e educação, ocupando as ruas, as plenárias e os plenários, praticando a boa e velha desobediência civil. Estou com Guilherme Boulos, o golpe está apenas começando, e a luta também. Vamos à luta!
[1] Dentre várias boas leituras, sugiro duas recentes: “O golpe de Estado de 2016 no Brasil”, do cientista social Michael Löwy, e uma entrevista ao filósofo Anselm Jappe; ambas no blog da Boitempo.
[2] Acompanho a análise de Roberto Schwarz em “Cultura e política 1964-69”.
[3] Vale conferir o documentário Muito além do Cidadão Kane, de Simon Hartog.
[4] Sugiro o documentário “Requiem for the American Drem”, pela excelente síntese de nossos tempos feita por Noam Chomsky.
[5] Mas recomendo sempre as reflexões do psicanalista da USP, Christian Dunker, a respeito da composição do Brasil contemporâneo, especialmente em Mal-estar, sofrimento e sintoma.
[6] Também recomendo as relações aventadas por Paulo Arantes entre o modelo de servidão nazista dos campos de concentração e certas práticas neoliberais em “Sale boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história”.
[7] Recomendo a leitura do artigo “Como vai acabar o capitalismo?”, do sociólogo Wolfgang Streeck, ou do livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, do historiador da arte Jonathan Crary.