Glênio Perez

Jornalista, político, poeta e ator, Glênio Perez destacou-se na oposição legal ao regime militar e na soli­dariedade aos presos políticos. Eleito três vezes vereador em Porto Alegre, teve seu mandato cassado no começo de 1977. Colaborando nos principais jornais do estado e em diversas revistas, foi também executivo de grupo de mídia e organizador de eventos culturais. Fundador do PDT, foi eleito vice-prefeito da cidade, cujo largo central leva hoje seu nome. Mesmo sob severa perseguição, publicou “Caderno de noticias”.

Glênio Perez

Interrogatório
Como fazes
para exercer teu ofício?
Beijas também tuas crianças
quando vais para o trabalho?
E quando acordas de noite,
lembras o que foi teu dia?
Que gosto é que tem a carne
nos braços de tua mulher?
Quando a cobres com teu corpo
e ela geme – te perturbas?
Tua mãe passando o ferro
para passar tua roupa
não te inquieta ante o perigo
do choque ou da queimadura?
Quando ficas muito tempo de pé
num só lugar não te cansas?
Dormes num quarto sem ar
ou frio como uma geladeira?
Apagas todas as lâmpadas
para descansar teus olhos?
Comes, sempre, muito bem
mesmo com tanto trabalho?
E qual a sensação
de receber mensalmente
a paga do teu serviço?
Tu amas, comes e dormes
apesar do teu ofício?
De que barro te fizeram
– torturador –
afinal?
 
Rua Pantaleão
Permitam que relembre aqui uma rua
Pantaleão Teles
– hoje Washington Luiz.
Havia um bonde amarelo
que imitava Porto Alegre
com sua Rua Pantaleão:
quando chegava na Bento
(Martins) dava volta
virava o bancos de costas
para não ver o putedo…
E a Pantaleão, ali, firme:
um bordel ao lado doutro
prostitutas marinheiros
soldados e estudantes
os barcos
Ponte de Pedra
carro-motor
futebol
sobre um campo de carvão
da Usina do Gasômetro.
Um dia a puta chamou:
– você menino moreno
compra uma ceva pra mim?
comprei voltei entrei nela
– a primeira da minha vida.
Quando um lençol de cimento
cobriu a Pantaleão Teles
pensei que a prostituição acabara em Porto Alegre.
Para logo descobrir
que a antiga Pantaleão
é agora muitas ruas
da cidade
e do Brasil.
 
Tomara que tu morras
Se grita o meu poema
a fome dos roubados
morram ele
e seu tema
na hora da comida.
Podre realidade
a que esculpe esta poesia
da qual sou intérprete
e inimigo.
– Tomara que tu morras
Com meus versos.
Não quero ser poeta
de torpezas.
 
Retrato de pintor
Permiti
senhoras e senhores
que vos apresente
a mais amável
a mais terna
compreensiva
E sofrida pessoa que conheço
já está morta
(pior para a cidade
que vai morrendo
sem memória de Edgar Koetz
seu amante e pintor)
tão delicado de gestos
tão desligado na terra
do que não fosse a beleza do perene
no coração do homem libertado.
Por exemplo: foi a última pessoa que deu festa
para saudar o nascimento de uma flor
no vaso de lata de azeite no seu pátio
e que certa vez no Jockey passou fome
recusando-se à disputa do buffet.
Ele achava
– era artista o meu amigo –
que a todo homem corresponde
naturalmente
o direito de comer.
Edgar amava com suas cores
mulheres de ateliê
casas nas ruas
o rio
as praças as crianças
mas o traço principal de sua grandeza
era a suprema delicadeza em cada gesto
tanto que um dia
chegando de repente
Vi Edgar a conversar com as tintas.
Ele dizia:
– Desculpai que vos misture
Senhoras
Ocorre que já está amanhecendo
E eu tenho de pintar
A Aurora.
 
Uma canção para a noite do exilado
É preciso mais:
é absolutamente necessária
alguma experiência de saudade
acrescentada à possível sensação
de uma planta arrancada pelo caule
E não seria demais
a lembrança dos seios que perdemos
da mãe e das amadas para o tempo
Para entender-se o exílio
há que um dia ter-se dormido
sob um lençol de céu
que não é nosso
e sobre uma terra-
colchão que não é ventre
Ave submarina
um ser fora do cosmos
árvore no ar
barco no chão
ou feto na proveta
assim morrem na vida
os exilados.
Muitos há suspirando pelo fim
– tarifa que lhes cobram para a volta –
outros contam o tempo em grãos de angústia
chorados na ampulheta da saudade
Mas sabemos:
estão todos acordados
enquanto nós
os exilados que ficamos
fazemos para eles
a cama do regresso.
 
Aquarela do Brasil
Honório Nardin
esse teu quadro
me faz um mal
ao coração
que nem te conto.
Ou conto, sim:
— Na moldura, entardece
(há quanto tempo o sol não amanhece?)
na praça o dia morre
uma menina corre
rodando um aro
na areia do jardim.
Que mal me faz agora
Honório
o teu poema em cores
que foi sempre
paraíso de amostra na parede.
Porque essa praça
de teu quadro, Honório
me lembra outras
longe, neste mundo
onde, na hora morna
em que a luz reflui,
brincam crianças que não têm país.
Pequeninos brasileiros exilados
pelas praças do mundo em debandada
que existem
correm
brincam
— como as nossas –
mas são filhos e netos de exilados
não conhecem o céu que lhes pertence
nem as praças e a terra que são suas.
 
Brava Gente
Mulheres
sois perigosas
guerrilheiras desarmadas
De noite agitais o sono
pesadelo dos tiranos
de dia agitais o lenço
da paz pelos torturados
— De onde tirais a força
para lutar com palavras
e fé contra as ditaduras?
Por certo do vosso ventre
onde se gera a criança
livre que o mundo terá
Quando não houver exílios
nem prisioneiros de ideias
algozes espancadores
espiões da violência
exploradores de homens
– que fareis, bravas mulheres?
Descansareis da guerrilha
pela Anistia no mundo
embalando em vossos braços
os filhos da Liberdade.
 
História para cordel
Senhor Doutor Sobral Pinto
que gosta de escrever cartas
aos poderosos do dia
defendendo os inocentes
fique sabendo
por estas mal traçadas linhas
que não creio em suas fotos
nem na certidão de idade.
— Por favor, não se apoquente
(Epa, isso é palavra de antanho
e antanho também já era…)
não se põe aqui em dúvida
a certeza do que diz
e a beleza do que faz.
Ocorre que há muito é noite
no Brasil: quatorze anos
(nem na Antártida é tão longo
o sono do amigo Sol)
e o senhor sempre na sua
gritando pela Justiça
mostrando os torturadores
criticando as ditaduras.
Por isso não acredito
nessa idade que lhe dão.
É uma pena que eu não seja
um poeta de cordel
para contar num livreto
essa história nunca vista
de quem – por ser justo e bom –
vai ficando cada dia
por condão de sua madrinha
a Senhora Liberdade
em vez de velho –
mais moço.
 
Memória
o escuro
da sala
teu nome
na tela.
Tua lembrança
nas palmas
das mãos
que se encontram.
Teu martírio lembrado:
teu nome no filme.
Teu nome
na tela
ilumina
a memória
do teu sofrimento.
A censura não pode
cortar a lembrança
de um tempo de horror
que se pode escrever
com muitas palavras
ou com teu nome
Vladimir Herzog
 
Nem favela
Um dia
Velha Restinga
visitei o teu colégio
— Tu sabes o que achei?
piolho e sarna
Restinga
nos cabelos das crianças.
Elas não passam na escola
como os meninos que comem.
Já nascem com a cabecinha
lesionada pela fome.
Velha Restinga
ainda doem
teu barro nos meus sapatos
e a memória dos casebres
residência da miséria.
Te falta tudo
Restinga
porque nem favela és
te falta um morro de pobres
para ter ricos aos pés.
Mas não te falta um dancing
com meninas de dez anos
nem cachaça nos balcões
das tendas e armazéns.
Tens demais algumas coisas
brigas facadas pobreza
tristeza e merda nas ruas.
Mas tu e eu bem sabemos
quanto te sobra Restinga:
indiferença e injustiça
bem mais velhas do que tu.
 
No exílio, em Berlim
O metrô
de Berlim Ocidental
há muito tempo
serve aos alemães
leva crianças aos colégios
empregados às fábricas
funcionários para os escritórios
e certamente
amantes e amadas
para a hora do amor.
Numa tarde
de maio de 1976
o metrô de Berlim
passou por cima
do corpo de Maria Auxiliadora
estudante
exilada
no Chile
e na Alemanha.
Dora Dorinha ou Doralice
mineirinha
agora no exílio
para sempre.
 
Para Sônia Prisioneira
Sônia: dez anos!
Quase quatro mil dias na prisão.
tu estavas livre
presa à enfermaria
dos hospitais
onde trocavas
teu amor aos outros
pela escassa ração
de pão aos teus.
Bendito pão
– pois ganho em liberdade –
dividindo o que tinhas
para dar.
Cada noite
te pagava a faina
com beijos
da tua filha
E da tua mãe.
Não do marido
que teu homem fora
também jogado
às lajes da prisão.
 
Quando o rio mudar de rumo
Um dia esse rio que passa
o braço das suas águas
na cintura da cidade
e depois vai ser lagoa
e dormir enfim no mar
por artes de seu destino
de ser caminho no tempo
vai navegar para trás.
As suas águas que levam
barcos e homens aos peixes
também são de retornar:
foram rio-lagoa-mar
serão mar-lagoa-rio
E esse rio vai ser mais
do que foi desde que é rio:
uma avenida de águas
para a volta dos banidos
regresso dos exilados.
E a Senhora dos Navegantes
vai bendizer o Guaíba
como o faz em fevereiro
enquanto o povo fará
– por então ser soberano –
a festa de Iemanjá
estender-se o ano inteiro.
 
Raul Sendic
Uma grossa parede
de vidro entre nós dois
no Presídio Central del Uruguay
Era um tempo de respeito
aos prisioneiros
e parecias cansado
não ferido
Estava contigo
a Topolanski
Uma feia campeã
de pontaria
e outros mais
tupamaros
na prisão.
Te vi, Sendic
com esse jeito
de tímido colono
dos que preferem
por dentro ser leão.
Quanto tempo, Sendic,
desde aquilo?
Houve a libertação
Do cônsul brasileiro
um túnel em Punta Carretas
para a liberdade
a morte de Mitrioni
e esse pesado véu
da ditadura
que desceu também sobre vocês
no Uruguai.
Caíste com um tiro
na boca em Ciudad Vieja
e nunca mais se ouviu
falar de ti.
Em que tumba
ou masmorra
te enterraram?

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