JOÃO SOUZA (1935-2022): Morre um gigante do jornalismo brasileiro

 João Souza, elegante, aprumado, cordial, digno, corajoso: tomba o príncipe etíope do jornalismo

Luiz Cláudio Cunha *

O caminhar era sereno, o tom de voz sempre aveludado, o gestual das mãos incontrolavelmente suave. Nada ali permitia um desassossego, uma grosseria, uma palavra rude, um atropelo, um trejeito de brutalidade. Assim foi o jornalista gaúcho João Borges de Souza até segunda-feira, 13 de junho passado, quando tombou mansamente aos 87 anos, num hospital da Grande Porto Alegre, vencido por uma parada cardiorrespiratória e pelo mal de Alzheimer, que há três anos dissolvia sua amorosa memória. Apesar disso, João Souza, como ele era conhecido, ficará para sempre na nossa lembrança como um dos gigantes do jornalismo brasileiro.

Alto, com 1m80 onde se acomodava um físico enxuto de 75 kg sem gorduras, João Souza desfilava sua elegância pelos gabinetes de políticos e salões dos palácios com o habitual terno de feitio impecável sempre combinando com a gravata ajustada, o que lhe dava o perfil de um lorde inglês importado para os pampas. O contraste dos cabelos precocemente grisalhos com o tom escuro da pele lhe conferia a altiva dignidade de um príncipe etíope, que chamava ainda mais a atenção por ser um dos primeiros negros do Rio Grande do Sul em cargo importante em redações dominadas secularmente por jornalistas que se consideravam brancos, herdeiros da alvura dos imigrantes alemães, italianos e portugueses.

Apesar disso, João não se considerava um intruso racial. Perguntado anos atrás, numa entrevista com três repórteres, se ele tinha sentido na pele o racismo estrutural do Rio Grande, ele respondeu que não. “Quando insistimos na pergunta”, lembra a jornalista Núbia Silveira, sua amiga e confidente de meio século, “ele nos fuzilou com o olhar, sem dizer nada, como se perguntasse: Não acreditam em mim?”.

Repórter sagaz, editor talentoso, líder sindical corajoso em tempos de ditadura, João Borges tornou-se uma referência de gentileza, firmeza e dignidade no seu perene e aberto confronto contra a brutalidade, a tibieza e a desonra que pervertem costumes e corporações nos tempos sombrios do arbítrio. Comandou em diferentes cargos o Sindicato de Jornalistas de Porto Alegre no período mais trevoso da ditadura militar, nos governos dos generais Garrastazú Médici e Ernesto Geisel, quando muitos jornalistas, em vez de entrevistar, eram compulsoriamente entrevistados por militares hostis da repressão na antessala dos cárceres ilegais.

Não me reconhece, camarada?

Por sua liderança e presença sempre do lado certo da História, João tem seu nome engastado em momentos memoráveis do jornalismo. Sem nunca ter frequentado universidade, um João quase adolescente abraçou o jornalismo, por devoção ao ofício e à ideologia, colaborando com a Gazeta Sindical, de São Paulo, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1956, aos 21 anos, trocou o amadorismo pela profissão, contratado como repórter do jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do PCB no Sul, que sobreviveu entre 1946 e 1958. Na época, muitos dos colegas de João alternavam a redação com horas ou dias vividos nas prisões políticas da capital gaúcha.

Quatro anos antes da chegada de João, a primeira redação do jornal comunista era ponto fixo de confusão. Na antiga Rua da Ladeira (atual General Câmara), uma transversal íngreme que ligava a praça do Palácio do Piratini à tradicional Rua da Praia (atual Andradas), no centro da capital, funcionava a Tribuna com o seu parque gráfico no porão. Para atrapalhar a circulação, a repressão fazia ali prisões, espancamentos, tumultos que marcavam cada edição do diário. Com as portas sempre fechadas, para conter a polícia, elas se abriam apenas para sair algum militante com discurso furibundo, que distraía a polícia para longe, enquanto pacotes do jornal eram rapidamente desviados para militantes em pontos seguros da Rua da Praia, uma quadra abaixo.

Numa obra clássica sobre o jornalismo “subversivo” no Estado, A imprensa Operária do Rio Grande do Sul 1873-1974, o jornalista João Batista Marçal conta detalhes que o jovem João Souza viu de perto. A polícia, com ideia fixa, não estranhava o número elevado de grávidas em elevado estado de gestação que costumava sair daquele endereço, mesmo nos momentos mais conturbados do cerco policial. Na verdade, eram militantes quase virginais saindo dali com resmas de jornais impressos enrolados na falsa barriga. Algumas eram amigas ou conhecidas de João.

O repórter e pupilo Paulo de Tarso Riccordi contou ao jornalista Lourenço Cazarré, nascido em Pelotas como João Souza, uma história que ressalta o lado bem-humorado do amigo. No começo dos trepidantes anos 1960, João estava na rua, cobrindo uma manifestação de protesto. Ele estava tão próximo da notícia que, em dado momento, começou a levar bordoada de um guarda da Polícia de Choque da Brigada Militar, que fazia a repressão. João identificou o agressor, na hora, como integrante clandestino do partido.

– O que houve, camarada? Não estás me reconhecendo? – reclamou o jornalista.

Sem cessar a pancadaria, agora menos intensa, o guarda respondeu com a discrição possível:

– É claro que estou, camarada. Mas preciso baixar a borracha porque os meus comandantes já andam desconfiados de mim, estão achando que sou comuna ou brizolista…

E o guarda fingia com o cassetete, enquanto João fingia que apanhava.

Da conturbada Tribuna Gaúcha, João migrou no final de 1954 para o matutino A Hora, um empreendimento de empresários trabalhistas vinculados a João Goulart. Pretendia ocupar o vazio deixado pelo Diário de Notícias, o principal jornal dos Diários Associados de Chateaubriand, incendiado em agosto pelo povo enfurecido com o suicídio de Getúlio Vargas. O jornal definhou e morreu, por inanição, em março de 1962. Antes de acabar A Hora¸ João migrou para a Última Hora gaúcha, no início de fevereiro de 1960, que seria lançada duas semanas depois, participando dos números zeros experimentais do jornal revolucionário de Samuel Wainer, sempre antipatizado pela direita e pelos militares por sua visceral ligação com Getúlio Vargas. Foi, certamente, o primeiro repórter a cobrir o movimento sindical, uma novidade em jornal, fora da imprensa comunista que João integrou.

João resistiu lá mesmo com o turbilhão do golpe de 1964, que fechou o jornal esquerdista de Wainer, renascido como a Zero Hora direitista de Ary de Carvalho. João sobreviveu no novo jornal como repórter e editor de política, até ser demitido em meados de 1965, acusado de integrar uma célula do PCB na redação de ZH sob o comando de João Aveline. Com a ajuda do amigo Tarso de Castro, João exilou-se um tempo na Secretaria de Saúde, como assessor de imprensa, até ressurgir como editor de política do novo jornal que Breno Caldas estava criando, no final da trepidante década de 1960, para disputar as bancas com Zero Hora, seu maior concorrente.     

Tem rolo, chama o João

João não queria o velho ranço conservador da Caldas Júnior, mas buscava o novo. E o novo era a Folha da Manhã, a ousada tentativa de renovação de Breno Caldas, o dono da empresa. Lançado em 1969, sob a direção do ex-capitão Erasmo Nascentes, que chamou João para ser seu editor de política, desde a primeira edição. O jornal só ganhou um fôlego renovador em 1972, quando Nascentes passou a direção para o jornalista José Antônio Severo, líder de um projeto avançado que trazia inovações gráficas, uma linguagem mais moderna, grandes reportagens, jornalismo investigativo e uma postura mais crítica da realidade, novidades numa empresa conhecida por seu conservadorismo e alinhamento com o regime, que gozava da simpatia dos outros dois jornais da casa, o Correio do Povo e a Folha da Tarde.

O novo jornal era o filho rebelde, o matutino malcomportado da casa. Lá, o progressista editor político João Souza, aos 37 anos, sentia-se em casa, ao lado de gente nova, talentosa, de sangue quente. Em momentos distintos, João teve ao seu lado nomes brilhantes que viriam a formar uma seleção da imprensa brasileira – Elmar Bones, Rosvita Saueressig, Caco Barcellos, Jefferson Barros, Yara Rech, Luís Fernando Veríssimo, Núbia Silveira, Edgar Vasques, Assis Hoffmann, Gilberto Pauletti, Luiz Carlos Merten, Xico Vargas, José Antônio Vieira da Cunha, Carlos Alberto Kolecza, Juarez Fonseca, José Onofre, Geraldo Canalli e Carlos Urbim, entre outros.

Apesar de tanto talento concentrado, o jornal entrou em crise, dirigido na sequência por Ruy Carlos Ostermann e Walter Galvani, que sucederam a Nascentes e Severo. Após o auge de sucesso do início dos anos 1970, o projeto renovador da FM – que reforçou seu tom investigativo e denunciador sob o comando de Ostermann – entrou em crise, até sucumbir uma década depois, a partir de um conflito interno com Breno Caldas. O jornal acabou fechando em 1980, com apenas 11 anos de vida. João e outros remanescentes foram deslocados para a Folha da Tarde.

A Caldas Júnior cercada pela polícia: o dono, Breno Caldas, cruza o piquete grevista vaiado como ‘caloteiro’

Lá, João precisou usar de sua experiência sindical para conduzir um dos episódios mais graves da imprensa gaúcha: a greve, primeira e única, que levou ao fim a maior empresa jornalística do Estado, a Caldas Júnior de Breno Caldas. Durante 56 dias, entre dezembro de 1983 e fevereiro de 1984, os jornalistas e gráficos do Correio do Povo e da Folha da Tarde esbravejaram por atrasos de sete meses nos salários. Um recorde de paralisação, em tempos em que a duração média de uma greve no setor privado não passava de três dias, graças ao rigor da Lei 4.330 da ditadura, que os líderes sindicais tachavam de “lei antigreve”.

A decisão de fazer a greve foi tomada na noite de segunda-feira, 12 de dezembro, numa assembleia de 300 pessoas que lotou a ‘oficina de chumbo’, um salão de 100 metros quadrados, no segundo andar do prédio do jornal, que marcava a transição de uma era: muitos foram demitidos a partir de julho, quando a modernização do parque gráfico do jornal trocou a composição a quente, com chumbo, para a fotocomposição, a frio.

No dia seguinte, a sede da Caldas Júnior amanheceu cercada por tropas da Brigada Militar para conter os piquetes grevistas, que tentavam bloquear os caminhões com o jornal impresso. O dono, Breno Caldas, teve que atravessar o piquete de funcionários, vaiado e chamado de ‘caloteiro’.                                                                                                              

A densa tese de mestrado da historiadora Clarice Gontarski Esperança –  A greve da oficina de chumbo – o movimento de resistência dos trabalhadores da Caldas Júnior – , aprovada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007, conta detalhes inéditos desse conflito. O advogado dos grevistas, Luís Burmeister, revela a importância de João Souza, que havia sido presidente do Sindicato dos Jornalistas entre 1974 e1978. “A militância era enlouquecida. Eram tempos da Libelu, a Liberdade e Luta, uma corrente de origem estudantil, trotskista. Aí, os caras que achavam que a Libelu era meio devagar criaram a Avalu, Avançar a Luta”. O jeito foi chamar sindicalistas mais experientes, alguns ligados ao PCB. E chamaram o João: “Quem fazia a moderação da coisa era o João Souza, um cara muito jeitoso e muito habilidoso, ao velho estilo de ficar por trás das coisas, mas ser uma palavra importante. Quando tinha algum rolo, que precisava decidir alguma coisa, o que fazer amanhã, a gente chamava o João Souza”, lembra Burmeister na tese de Esperança.

A greve, moderada por João, também demitido pela empresa, acabou vitoriosa. Foi declarada legal pela Justiça do Trabalho. Na passeata da vitória, após tantos dias de tensão, puxava o cordão o mais ilustre funcionário do Correio do Povo – o poeta Mário Quintana, o editor da página literária dos sábados, o lendário ‘Caderno H’. Apesar da fama, o poeta recebia uma merreca de salário, cerca de 192 mil cruzeiros, o equivalente a menos de dois salários mínimos atuais. Na flor dos seus 78 anos, o poeta desfilou sorridente no desfile vitorioso da greve, com o inseparável cigarro entre os dedos, sorrindo como uma criança. Quem o via ali, lembrava de uma advertência de Quintana: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”.

Quintana lê o boletim da greve, a passeata da vitória, o poeta na vanguarda:  a Caldas Jr. acaba sem poesia

Dois Paulos, um mentiroso

Na carteira de João, também. Além do jornalismo, ele se preocupava com os princípios éticos da profissão. Como presidente do sindicato, percorria com destemor e altivez os corredores dos quarteis militares ou da Polícia Federal, sempre que um jornalista detido pela ditadura precisava de seu conforto e apoio.

Quando nem a família tinha acesso, era o João, munido de sua autoridade e prestígio, que conseguia o contato pessoal que dava mais esperança para os familiares angustiados pelo desaparecimento. João amparava seus colegas, dentro e fora dos cárceres da repressão.

João Souza, Paulo Riccordi e Paulo Brossard: João provou que o Paulo mentiroso não era o repórter…

Em 1974, editor de política da Folha da Manhã, ele escalou o repórter Paulo de Tarso Riccordi para entrevistar o novo senador eleito, Paulo Brossard. Era o personagem central de uma fragorosa derrota da ditadura, quando a oposição – reunida no MDB –  consagrou-se conquistando 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, além de arrematar 161 das 364 cadeiras da Câmara dos Deputados. Entrevista feita e publicada, Brossard apoquentou-se com o que leu no jornal. Procurou Breno Caldas para queixar-se do repórter, negando o que havia dito. O dono da empresa não hesitou. Acreditou no amigo e determinou a demissão de Riccordi.

João esperou o retorno do repórter, para provar que ele estava certo. A entrevista, feita na fazenda de Brossard, em Bagé, fora gravada em várias fitas cassetes. “João levou a Breno Caldas o meu bornal de lona lotado com dez fitas gravadas”, contou Riccordi a Núbia Silveira. E assim a verdade do repórter sobreviveu à mentira do futuro senador.

Às vezes, era mais importante que os jornalistas protegessem João, nosso presidente, em vez do contrário. Em dezembro de 1975, Audálio Dantas, o presidente do sindicato paulista ligou para mim, autor desse texto, então chefe da sucursal em Porto Alegre da revista Veja. O II Exército, em São Paulo, acabava de divulgar uma nota, sustentando a falsa versão de ‘suicídio’ do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI, na verdade morto sob tortura. Botar o sindicato em confronto direto com o Exército daria o pretexto para sua intervenção. Assim, os próprios jornalistas criaram um movimento nacional para exigir a verdade no IPM militar. Audálio não poderia pedir que João fizesse isso no Sul, para não correr o mesmo risco. Ligou para mim e me encarregou da coleta de assinaturas, um episódio contado aqui pelo JÁ:

João Souza é apenas um dos 1.004 signatários do histórico manifesto “Em nome da Verdade”. Somente 11 dos 25 sindicatos de jornalistas do país protestaram contra a morte de Vlado.

A entidade gaúcha, presidida por João, foi uma das primeiras a se manifestar.

Nos tempos de Médici e Geisel

Sou testemunha de dois episódios que mostram a dignidade e a coragem de João Souza na defesa dos jornalistas.

Em 1974, poucas semanas antes passar o bastão de ditador para o sucessor, o general Emílio Garrastazu Médici fez uma última visita, de caráter sentimental, ao seu Rio Grande natal na condição de presidente. Não lembro qual o programa daquela sua incursão, mas, quase um mês antes, com a antecedência recomendável, apresentei o burocrático pedido de credenciamento que se exigia da imprensa para cobrir eventos da Presidência da República. Esse procedimento era sempre comandado pelo QG do III Exército (atual Comando Militar do Sul).

Naquela ocasião, contrariando o que acontecera em visitas anteriores, fui informado de que minha credencial havia sido negada. Foi uma surpresa. Até então eu era, nos padrões da segurança do regime, um repórter confiável, segundo os arquivos nada confiáveis do SNI do regime: não tinha militância política, não participara da luta armada, não era terrorista, nem jogara pedra ou bomba na polícia….

Enfim, eu era um zero à esquerda, limpo como uma folha em branco. Aquele veto era apenas um exemplo do poder arbitrário do regime militar, que abonava ou bania quem e quando quisesse, segundo o humor da hora. Vi naquela surpreendente rejeição uma forma de peitar os militares com a ajuda de meu prontuário absolutamente anódino e inofensivo.

Resolvi questionar o veto, coisa que jornalista sensato ou bem-comportado não costumava fazer naqueles tempos chumbados.

Apresentei meu plano a duas instâncias inevitáveis. Uma, a direção da Veja, que topou o desafio. A outra foi o Sindicato de Jornalistas, então presidido por João Souza, o ícone da categoria. Foi uma conversa evidentemente confidencial, com a qual busquei sua bênção e a cobertura da nossa entidade de classe. João topou o confronto, com a firmeza e a serenidade de sempre, vendo ali o pretexto ideal para que os jornalistas questionassem os critérios volúveis e estúpidos que os militares usavam, de forma aleatória, para controlar e intimidar a imprensa, que vivia sob o tacão do AI-5.

Minha ideia era linear: contestar o veto, para que o III Exército tentasse justificar minha surpreendente exclusão do time de credenciados, aproveitando o precedente de que eu tinha sido autorizado a cobrir visitas presidenciais anteriores, sem qualquer objeção. Se o QG, como de hábito, respondesse que o veto estava mantido, sem maiores explicações, para um repórter abusado como eu, nosso próximo passo seria cobrar a credencial na Justiça.

Estávamos dispostos a ir até ao Supremo Tribunal Federal para escancarar o mau-humor e o caráter discricionário dos militares. Nas nossas estimativas, seria difícil para o Exército justificar o arbítrio. Ganhando no Supremo, a gente estaria denunciando esse abuso específico contra a imprensa, um detalhe no oceano de violências com que a ditadura tentava manietar brasileiros de todas as categorias. Era um detalhe menor, mas era o que podíamos fazer para incomodar o governo de plantão. João ficou animado com a oportunidade, e me deu seu integral apoio: o Sindicato dos Jornalistas me proporcionaria a mais ampla cobertura jurídica.

Se aquele caso fosse adiante, seria um dos primeiros embates no STF da luta permanente entre Ditadura x Imprensa, que se aprofundaria a seguir.

João e eu chegamos a avaliar os próximos passos. Concordamos no nome que o sindicato contrataria para nos representar na Justiça: Werner Becker, um dos mais importantes advogados do Rio Grande do Sul, com atuação frequente e vitórias eloquentes no STF. Era pessoa de nossa confiança, minha e do João.

Cinco anos depois, Werner seria o advogado que o Sindicato dos Jornalistas colocaria à minha disposição para nos defender, a mim e ao fotógrafo JB Scalco, testemunhas involuntárias que fomos do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lilián Celiberti e seus dois filhos em Porto Alegre, em novembro de 1978, numa operação clandestina binacional da Operação Condor. O braço nacional da Condor era comandado pelo delegado do DOPS e torturador Pedro Seelig, chefe de Didi Pedalada e João Augusto da Rosa, identificados e denunciados pelos repórteres de Veja.

Em 1979, Werner, conhecido por sua verve e inteligência, foi interpelado pelo advogado Oswaldo Lia Pires, que defendia Seelig e seus comparsas no processo aberto pela Justiça Federal. Ao cruzar com Werner, numa das primeiras audiências, Lia Pires teve a má ideia de ser engraçadinho com nosso advogado:

– Ué, dr. Werner, nunca vi testemunha com advogado!

O nosso defensor rebateu na pleura:

– Quando polícia vira bandido, dr. Lia Pires, testemunha precisa de advogado…

Voltando a 1973. Daquela vez, contudo, nem precisamos chamar o Werner para nos assessorar em nossa insidiosa e subversiva manobra – por culpa do próprio Exército.

De repente, não mais que de repente, a sucursal da Veja, recebeu um telefonema do QG do III Exército informando que minha credencial estava liberada para a cobertura da visita de Médici, quando faltavam duas ou três semanas para a viagem presidencial.

Sem qualquer explicação ou esclarecimento, como acontecera no anúncio do veto, o comando do Exército nos comunicou a liberação da credencial. É da índole dos regimes autoritários não justificar seus atos e decisões, para não ter depois que explicar o que aconteceu ou deixou de acontecer. Assim, ganhei de novo a credencial perdida – e vi desaparecer a oportunidade de consumar nossa emboscada jurídica contra os militares.

João e eu ficamos frustrados pela chance desperdiçada.

João Souza foi a única pessoa, fora da redação de Veja, que soube, compartilhou, estimulou e se preparou para nossa iminente batalha jurídica. Não sei, até hoje, o que levou os militares a vetarem e, depois, liberarem minha credencial. Por razões óbvias, esse não era um tema que João e eu abordássemos em nossas conversas ao telefone, foco inevitável dos grampos de escuta ilegal que a repressão do regime espalhava com volúpia e paranoia – especialmente em sucursais de jornalistas e em sindicatos não apelegados.

Conto isso pela primeira vez, aqui no OBSERVATÓRIO e no jornal JÁ, para mostrar a importância de João Souza, como figura pétrea de dignidade, firmeza e coragem que nos inspirava e dava confiança naqueles tempos tão desesperançados e desconfiados.

Em novembro de 1976, o regime militar enfrentava o seu primeiro grande teste eleitoral após a derrota na eleição anterior, de 1974, que elegeu Brossard. Para dar um retrato nacional da eleição daquele ano, Veja escolheu para sua cobertura 20 grandes cidades interioranas, já que os cidadãos das capitais, pelos humores do regime, não tinham a chance de escolher seus prefeitos.

A cidade gaúcha selecionada pela revista foi minha terra natal, Caxias do Sul, segundo maior colégio eleitoral do Estado. Empenhado pessoalmente na vitória da Arena, o partido da ditadura, o general-presidente Ernesto Geisel estivera lá duas vezes antes do pleito. Não adiantou.

O candidato do MDB, Mansueto Serafini, ganhou com a maior votação individual do Estado, 43 mil votos, doze mil a mais do que o candidato de Geisel, o arenista Victor Faccioni.

Entusiasmados, os caxienses foram às ruas para festejar: mais de dez mil pessoas e um cortejo de quatrocentos automóveis que entupiram a centralíssima avenida Júlio de Castilhos na tarde de quinta-feira, 18 de novembro.

Eu estava lá, com o fotógrafo Ricardo Chaves, o Kadão, para documentar o festejo. De repente, dois grandes jipes militares, cada um com onze soldados armados de fuzis-metralhadoras e baionetas caladas, começaram a abrir caminho trafegando lentamente e acintosamente entre a multidão. Era a carranca verde-oliva da ditadura atravessando a avenida e a alegria popular – como fazia desde 1964.

Na frente da prefeitura, eu me postei acintosamente diante dos veículos militares e anotei suas placas. Um soldado desceu do jipão, me interpelou, pediu muitas explicações e minutos depois Kadão e eu fomos detidos, sob os olhares de dezenas de jornalistas que cobriam a festança do povo.

Colocados na carroceria descoberta do jipe, fomos levados para o quartel do 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos (3º GAAAc). O comandante daquela unidade, coronel Eugênio de Almeida Baptista, nos recebeu de pé, cara fechada, no alto de uma pequena escadaria que dava acesso ao saguão principal da caserna. Tinha os braços cruzados sobre o peito, o nariz empinado e batia o pezinho direito no chão, sinalizando no coturno sua enorme irritação.

– Vocês são todos uns ordinários e sem-vergonhas! A vontade que eu tenho agora é de enfiar a mão na cara de vocês! – fuzilou-nos à queima-roupa, mal-educado, sem sequer se apresentar.

– Boa tarde – retruquei. – Como é seu nome?

Empreguei um estudado tom baixo e sereno que desarmou o valentão. Em suma, puxei o tapete dele.

Depois que o comandante se identificou com nome e posto, apresentei-me:

– Coronel, meu nome é Luiz Cláudio Cunha. Sou jornalista e chefe da sucursal da revista Veja. Qual é o problema com a gente?

O coronel, talvez surpreso com minha identificação, amansou um pouco. Mas, ainda visivelmente irritado, perguntou por que eu anotara as placas das suas preciosas viaturas.

Expliquei que a aparição imprevista daqueles veículos bélicos em uma festa popular necessariamente deveria estar registrada na minha reportagem. Daí a anotação.

– Eles estavam lá para controlar a turba… – tentou justificar o militar.

– Turba não, coronel – interrompi. – Massa. O que há lá no centro da cidade é apenas uma massa de gente pacífica, alegre, comemorando uma vitória democrática. Seus jipes estavam ali só para atrapalhar.

– Neste caso, eu boto todas as viaturas do quartel aqui no pátio para o senhor anotar as placas… – disse ele, desafiante.

– Não precisa, coronel. Só me interessam aquelas duas que se infiltraram na festa. Aliás, não sei nem por que estou aqui, em vez de estar cobrindo a comemoração. Eu estou preso, coronel?

– Na-não! – gaguejou ele. – Estamos apenas co-conversando…

– Bem, sendo assim, estou perdendo meu tempo. Eu não vim a Caxias para conversar com o senhor. Vim para cobrir a eleição e seu resultado. Já que me tirou do meu local de trabalho, o senhor poderia, por favor, me mandar de volta para lá antes que os festejos acabem – pedi, com a petulância e o atrevimento que me cabiam.

Antes de me liberar, o coronel solicitou-me que não divulgasse as placas das suas viaturas.

– Repare bem: estou pedindo, não proibindo.

E, antes de nos devolver ao centro da cidade – dessa vez transportados no seu carro particular, uma Variant verde, quase oliva –, o coronel me apresentou mais uma solicitação:

– E, por favor, fale a verdade!

Quando voltamos ao centro já corria por lá a notícia de nossa detenção. Em Porto Alegre, preocupado com nossa segurança física, João Souza, o diligente presidente do sindicato, denunciou nossa “prisão”, comunicada a ele pelos coleguinhas de Caxias do Sul. E, de imediato, acionou o governador Synval Guazzelli, no Palácio Piratini.

Pouco depois, João recebeu a notícia tranquilizadora: Kadão e eu já estávamos trabalhando no meio da “turba” que tanto inquietava o coronel.

Mas aquela festa ficou marcada por grave incidente, provocado pelos militares.

O vitorioso Mansueto Serafini desfilou em um DKW amarelo, saudado por foguetes e escolas de samba e acompanhado pelos operários que saíam das fábricas no final da tarde. Fez a volta na praça e foi carregado pela multidão por cinco quadras, até o edifício onde morava. Só não discursou porque os companheiros o lembraram da ordem expressa do coronel Baptista:

– Não transforme a passeata da vitória num comício político!

Mas aquela festa ordeira acabou em violenta desordem. Súbito, com a ajuda de vinte homens da Brigada Militar, a tropa do Exército entrou em choque com a multidão, distribuindo cacetadas e lançando oito bombas de gás. Dois vereadores do MDB e mais de vinte pessoas foram atendidas nos hospitais. Minutos depois as emissoras de rádio e TV e os jornais foram proibidos de noticiar a confusão.

A reportagem de capa da Veja da semana seguinte falou a verdade, como pedia o coronel: relatou toda a confusão provocada pela “turba” fardada – e ainda publicou as placas dos dois jipes enxeridos (EB-21-18-488 e EB-21-15-467).

Algumas semanas depois, sem choro nem vela, o coronel Baptista foi exonerado e transferido. Nunca mais se ouviu falar dele.

Mas é preciso falar sempre de João Souza, que nos momentos mais tensos sempre foi uma presença serena, firme, inabalável, digna, consciente do que devia fazer e do que não podia se eximir. Ele nos representava e nos protegia.

Esse foi João Souza, orgulho da raça.

Da raça dos jornalistas.

 

*Luiz Cláudio Cunha é jornalista, autor de Operação Condor – O Sequestro dos Uruguaios [Ed. L&PM, 2008, Porto Alegre]   –   cunha.luizclaudio@gmail.com

 

­­

Deixe uma resposta