PEC 241/55: a necessidade de ousar na discussão de alternativas

Ricardo Dathein
Professor da Faculdade de Economia/UFRGS
Um dos problemas da esquerda é uma certa falta de ousadia nas propostas econômicas. Isso se refletiu em todos os governos petistas e também aparece atualmente em declarações e em documentos críticos. Isso também esteve na raiz dos fracassos, pois sem um projeto econômico global, que dê consistência a medidas específicas, acaba-se gerando uma lógica de medidas discricionárias, inclusive em termos de políticas de desenvolvimento, e em desconexão com a política macroeconômica.
No excelente documento “Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil” aparecem alguns destes problemas. Por exemplo, quando se pergunta quem perde com o projeto de austeridade do governo, a resposta é “a população mais pobre, isto é, aqueles que são os principais beneficiários dos serviços públicos”. Observe-se que a pergunta é sobre “quem perde”, e não sobre “quem mais perde”. Esse foco no prejuízo aos pobres pode ser um problema na luta política.
Ora, as próprias políticas sociais não deixam de ser subsídios ao setor empresarial, pois significam que o governo está arcando com um custo que, de outra forma, teria que ser assumido pelos próprios trabalhadores, o que exigiria maiores salários (e custos para as empresas), ou então com a redução da qualidade do trabalho (o que também é um custo para as empresas). Mas, além disso, as medidas significarão cortes severos de investimentos (em infraestrutura, por exemplo), de forma que também desse modo os custos aumentarão para as empresas. E os investimentos públicos são uma forma de acrescer a demanda para as empresas e de aumentar a própria taxa de lucro (como ocorre em todos os países que mais crescem no mundo e como foram no período Lula, mesmo que fracamente). Ou seja, os cortes de gastos significarão enorme prejuízo para as empresas, assim como para as prefeituras e para a população em geral, além de certamente para a população mais pobre também pela via dos menores investimentos públicos e pelo menor crescimento econômico.
O documento “Austeridade e retrocesso” mostra como o aumento consistente e altamente benéfico dos gastos sociais foi sustentável enquanto a carga tributária aumentou e enquanto a economia cresceu, mas surgiu uma crise com conflito distributivo quando isso não mais se compatibilizou. O grande aumento salarial (em dólares, tendo em vista a taxa de câmbio) prejudicou, efetivamente, setores industriais exportadores. Isso revela a incapacidade de nossa economia gerar crescimento sustentável de produtividade derivada de inovações e investimentos produtivos. Assim, a única alternativa percebida por nossa elite é o corte de salários e gastos sociais, para com isso recuperar seus níveis de rentabilidade. Mas, nesse contexto, pensar que simplesmente eliminar a austeridade e reduzir os juros seria suficiente é ilusão. A ênfase do documento em mostrar que a crise está fortemente correlacionada com a virada da política econômica, em janeiro de 2015, não é suficiente e nos leva a equívocos. Explica o curto prazo, mas não um desempenho estrutural medíocre há muito tempo, e a incapacidade de nossa economia produzir mudanças estruturais necessárias para garantir a sustentabilidade do crescimento e, com isso, a própria hegemonia política.
Quando o documento “Austeridade e retrocesso” faz propostas em relação à “insensatez do superávit primário”, cita a possibilidade de variantes, como “metas fiscais ajustadas ao ciclo econômico”, “meta de resultado fiscal estrutural”, “bandas fiscais” ou “retirar todo investimento público do cálculo do superávit primário”. Essa última alternativa, por exemplo, é muito problemática, pois admite que o “arrocho” deve ficar sobre os gastos correntes. Mas o que são esses gastos correntes, se não gastos com educação, saúde e segurança, em geral via pagamento de salários. Portanto, são outra forma de investimentos públicos, não diretamente em capital físico, mas que também geram maior potencial de crescimento econômico, além de maior bem-estar social.
Ora, o que devemos defender é a eliminação desse tipo de medidas (como metas de superavit primário), e não sua atenuação. A ideia de que devemos “amarrar nossas mãos” e fazer a “lição de casa” significa eliminar nossa liberdade e admitir nossa incapacidade. Que na Europa existem essas medidas, mas de forma atenuada, não é argumento que deveríamos usar. A Europa hoje é um exemplo de fracasso de políticas econômicas, e não exemplo a ser citado ou copiado, portanto.
A mesma discussão já ocorria durante os governos petistas, que mantiveram a política do chamado “tripé macroeconômico” (taxa de câmbio flutuante, metas de inflação e metas de superávit primário). Esse conjunto de políticas é contraditório com as políticas de desenvolvimento econômico e há comprovação empírica de que não gera melhor desempenho econômico em relação a países que não os adotam. Mesmo assim, o debate em geral centrou-se apenas em propor metas atenuadas.
Também neste caso deve-se propor seu abandono. Desde 1999 estas políticas são adotadas, sempre com fracos resultados, sempre impedindo a adoção de forma mais forte de políticas de desenvolvimento que, essas sim, poderiam resultar em melhor equilíbrio de contas públicas e sustentabilidade das políticas sociais.
O documento “Austeridade e retrocesso”, em sua última parte, coloca muito bem a discussão sobre a estrutura tributária brasileira, com propostas que se negam a ficar restritas aos temas da agenda neoliberal. Até porque, em primeiro lugar, deve-se considerar que as medidas atuais vêm de um governo ilegítimo. Assim, não aceitar barganhas tem um cunho preliminarmente político. Em segundo lugar, qualquer barganha neste contexto vai resultar em uma solução péssima. É como se hoje tivéssemos uma proposta pior que às impostas à Grécia, e que sua atenuação, para ficar no nível da Grécia, pudesse ser considerado um avanço!
É importante também se levar em conta o problema do crescimento demográfico. Na estimativa do documento “Austeridade e retrocesso” o gasto do governo federal (sem juros) se reduziria de cerca de 20% do PIB em 2016 para 16% em 2016 e 12% em 2036. Mas o problema é muito maior, pois a população vai continuar crescendo. A partir das estimativas da ONU (Department of Economic and Social Affairs, Population Division. World Population Prospects: The 2015 Revision), em 2026 e em 2036 os gastos sociais federais teriam se reduzido em 6,5% e 10,3% reais por habitante, respectivamente. Isso só não é pior porque há uma estimativa de forte redução da taxa de crescimento demográfico. Além disso, o percentual de pessoas com mais de 65 anos passará, em relação à população total, de 7,8% (16,3 milhões) em 2015 para 15,6% (36,4 milhões) em 2035. Ou seja, 20 milhões de pessoas a mais nessa faixa etária. E o percentual de pessoas com mais de 80 anos passará de 1,5% (3,1 milhões) em 2015 para 3,6% (8,4 milhões) em 2035, ou 5,3 milhões de pessoas a mais, com fortes necessidades de atendimento de saúde.
O que produz a incerteza atual, no Governo Temer, também é a total falta de uma estratégia de desenvolvimento, em uma sociedade partida, considerando-se que, apenas com a redução do tamanho do Estado, o mercado terá capacidade de tomar seu lugar. Ainda mais em um país subdesenvolvido isso é uma grande ilusão. Não quer dizer que não possa haver, em algum momento, uma retomada econômica, mas que deve permitir apenas uma trajetória de crescimento “normal”, medíocre, algo como 2% ao ano. A imposição constitucional do Estado mínimo transformará o Brasil talvez na experiência mais radical de neoliberalismo do mundo, condenando-o à decadência social e econômica. A situação é tão surrealista que talvez a elite esteja cavando sua sepultura. Não é uma ação inteligente, nem sob uma perspectiva política conservadora. Por outro lado, temos que considerar que propostas muito restritas, como redução de taxas de juros e fim da austeridade não são suficientes, assim como apenas um crescimento impulsionado por consumo e aumentos de salários. Necessária é uma estratégia de desenvolvimento concomitantemente produtiva e social, que produza coesão social, com a dinâmica produtiva baseada em forte impulso de investimentos públicos e em inovações. Essa discussão aparentemente será feita ao longo da próxima jornada política.
 

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