JOÃO SOUZA (1935-2022): Morre um gigante do jornalismo brasileiro

Luiz Cláudio Cunha *

O caminhar era sereno, o tom de voz sempre aveludado, o gestual das mãos incontrolavelmente suave. Nada ali permitia um desassossego, uma grosseria, uma palavra rude, um atropelo, um trejeito de brutalidade. Assim foi o jornalista gaúcho João Borges de Souza até segunda-feira, 13 de junho passado, quando tombou mansamente aos 87 anos, num hospital da Grande Porto Alegre, vencido por uma parada cardiorrespiratória e pelo mal de Alzheimer, que há três anos dissolvia sua amorosa memória. Apesar disso, João Souza, como ele era conhecido, ficará para sempre na nossa lembrança como um dos gigantes do jornalismo brasileiro.

Alto, com 1m80 onde se acomodava um físico enxuto de 75 kg sem gorduras, João Souza desfilava sua elegância pelos gabinetes de políticos e salões dos palácios com o habitual terno de feitio impecável sempre combinando com a gravata ajustada, o que lhe dava o perfil de um lorde inglês importado para os pampas. O contraste dos cabelos precocemente grisalhos com o tom escuro da pele lhe conferia a altiva dignidade de um príncipe etíope, que chamava ainda mais a atenção por ser um dos primeiros negros do Rio Grande do Sul em cargo importante em redações dominadas secularmente por jornalistas que se consideravam brancos, herdeiros da alvura dos imigrantes alemães, italianos e portugueses.

Apesar disso, João não se considerava um intruso racial. Perguntado anos atrás, numa entrevista com três repórteres, se ele tinha sentido na pele o racismo estrutural do Rio Grande, ele respondeu que não. “Quando insistimos na pergunta”, lembra a jornalista Núbia Silveira, sua amiga e confidente de meio século, “ele nos fuzilou com o olhar, sem dizer nada, como se perguntasse: Não acreditam em mim?”.

Repórter sagaz, editor talentoso, líder sindical corajoso em tempos de ditadura, João Borges tornou-se uma referência de gentileza, firmeza e dignidade no seu perene e aberto confronto contra a brutalidade, a tibieza e a desonra que pervertem costumes e corporações nos tempos sombrios do arbítrio. Comandou em diferentes cargos o Sindicato de Jornalistas de Porto Alegre no período mais trevoso da ditadura militar, nos governos dos generais Garrastazú Médici e Ernesto Geisel, quando muitos jornalistas, em vez de entrevistar, eram compulsoriamente entrevistados por militares hostis da repressão na antessala dos cárceres ilegais.

Não me reconhece, camarada?

Por sua liderança e presença sempre do lado certo da História, João tem seu nome engastado em momentos memoráveis do jornalismo. Sem nunca ter frequentado universidade, um João quase adolescente abraçou o jornalismo, por devoção ao ofício e à ideologia, colaborando com a Gazeta Sindical, de São Paulo, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1956, aos 21 anos, trocou o amadorismo pela profissão, contratado como repórter do jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do PCB no Sul, que sobreviveu entre 1946 e 1958. Na época, muitos dos colegas de João alternavam a redação com horas ou dias vividos nas prisões políticas da capital gaúcha.

Quatro anos antes da chegada de João, a primeira redação do jornal comunista era ponto fixo de confusão. Na antiga Rua da Ladeira (atual General Câmara), uma transversal íngreme que ligava a praça do Palácio do Piratini à tradicional Rua da Praia (atual Andradas), no centro da capital, funcionava a Tribuna com o seu parque gráfico no porão. Para atrapalhar a circulação, a repressão fazia ali prisões, espancamentos, tumultos que marcavam cada edição do diário. Com as portas sempre fechadas, para conter a polícia, elas se abriam apenas para sair algum militante com discurso furibundo, que distraía a polícia para longe, enquanto pacotes do jornal eram rapidamente desviados para militantes em pontos seguros da Rua da Praia, uma quadra abaixo.

Numa obra clássica sobre o jornalismo “subversivo” no Estado, A imprensa Operária do Rio Grande do Sul 1873-1974, o jornalista João Batista Marçal conta detalhes que o jovem João Souza viu de perto. A polícia, com ideia fixa, não estranhava o número elevado de grávidas em elevado estado de gestação que costumava sair daquele endereço, mesmo nos momentos mais conturbados do cerco policial. Na verdade, eram militantes quase virginais saindo dali com resmas de jornais impressos enrolados na falsa barriga. Algumas eram amigas ou conhecidas de João.

O repórter e pupilo Paulo de Tarso Riccordi contou ao jornalista Lourenço Cazarré, nascido em Pelotas como João Souza, uma história que ressalta o lado bem-humorado do amigo. No começo dos trepidantes anos 1960, João estava na rua, cobrindo uma manifestação de protesto. Ele estava tão próximo da notícia que, em dado momento, começou a levar bordoada de um guarda da Polícia de Choque da Brigada Militar, que fazia a repressão. João identificou o agressor, na hora, como integrante clandestino do partido.

– O que houve, camarada? Não estás me reconhecendo? – reclamou o jornalista.

Sem cessar a pancadaria, agora menos intensa, o guarda respondeu com a discrição possível:

– É claro que estou, camarada. Mas preciso baixar a borracha porque os meus comandantes já andam desconfiados de mim, estão achando que sou comuna ou brizolista…

E o guarda fingia com o cassetete, enquanto João fingia que apanhava.

Da conturbada Tribuna Gaúcha, João migrou no final de 1954 para o matutino A Hora, um empreendimento de empresários trabalhistas vinculados a João Goulart. Pretendia ocupar o vazio deixado pelo Diário de Notícias, o principal jornal dos Diários Associados de Chateaubriand, incendiado em agosto pelo povo enfurecido com o suicídio de Getúlio Vargas. O jornal definhou e morreu, por inanição, em março de 1962. Antes de acabar A Hora¸ João migrou para a Última Hora gaúcha, no início de fevereiro de 1960, que seria lançada duas semanas depois, participando dos números zeros experimentais do jornal revolucionário de Samuel Wainer, sempre antipatizado pela direita e pelos militares por sua visceral ligação com Getúlio Vargas. Foi, certamente, o primeiro repórter a cobrir o movimento sindical, uma novidade em jornal, fora da imprensa comunista que João integrou.

João resistiu lá mesmo com o turbilhão do golpe de 1964, que fechou o jornal esquerdista de Wainer, renascido como a Zero Hora direitista de Ary de Carvalho. João sobreviveu no novo jornal como repórter e editor de política, até ser demitido em meados de 1965, acusado de integrar uma célula do PCB na redação de ZH sob o comando de João Aveline. Com a ajuda do amigo Tarso de Castro, João exilou-se um tempo na Secretaria de Saúde, como assessor de imprensa, até ressurgir como editor de política do novo jornal que Breno Caldas estava criando, no final da trepidante década de 1960, para disputar as bancas com Zero Hora, seu maior concorrente.     

Tem rolo, chama o João

João não queria o velho ranço conservador da Caldas Júnior, mas buscava o novo. E o novo era a Folha da Manhã, a ousada tentativa de renovação de Breno Caldas, o dono da empresa. Lançado em 1969, sob a direção do ex-capitão Erasmo Nascentes, que chamou João para ser seu editor de política, desde a primeira edição. O jornal só ganhou um fôlego renovador em 1972, quando Nascentes passou a direção para o jornalista José Antônio Severo, líder de um projeto avançado que trazia inovações gráficas, uma linguagem mais moderna, grandes reportagens, jornalismo investigativo e uma postura mais crítica da realidade, novidades numa empresa conhecida por seu conservadorismo e alinhamento com o regime, que gozava da simpatia dos outros dois jornais da casa, o Correio do Povo e a Folha da Tarde.

O novo jornal era o filho rebelde, o matutino malcomportado da casa. Lá, o progressista editor político João Souza, aos 37 anos, sentia-se em casa, ao lado de gente nova, talentosa, de sangue quente. Em momentos distintos, João teve ao seu lado nomes brilhantes que viriam a formar uma seleção da imprensa brasileira – Elmar Bones, Rosvita Saueressig, Caco Barcellos, Jefferson Barros, Yara Rech, Luís Fernando Veríssimo, Núbia Silveira, Edgar Vasques, Assis Hoffmann, Gilberto Pauletti, Luiz Carlos Merten, Xico Vargas, José Antônio Vieira da Cunha, Carlos Alberto Kolecza, Juarez Fonseca, José Onofre, Geraldo Canalli e Carlos Urbim, entre outros.

Apesar de tanto talento concentrado, o jornal entrou em crise, dirigido na sequência por Ruy Carlos Ostermann e Walter Galvani, que sucederam a Nascentes e Severo. Após o auge de sucesso do início dos anos 1970, o projeto renovador da FM – que reforçou seu tom investigativo e denunciador sob o comando de Ostermann – entrou em crise, até sucumbir uma década depois, a partir de um conflito interno com Breno Caldas. O jornal acabou fechando em 1980, com apenas 11 anos de vida. João e outros remanescentes foram deslocados para a Folha da Tarde.

A Caldas Júnior cercada pela polícia: o dono, Breno Caldas, cruza o piquete grevista vaiado como ‘caloteiro’

Lá, João precisou usar de sua experiência sindical para conduzir um dos episódios mais graves da imprensa gaúcha: a greve, primeira e única, que levou ao fim a maior empresa jornalística do Estado, a Caldas Júnior de Breno Caldas. Durante 56 dias, entre dezembro de 1983 e fevereiro de 1984, os jornalistas e gráficos do Correio do Povo e da Folha da Tarde esbravejaram por atrasos de sete meses nos salários. Um recorde de paralisação, em tempos em que a duração média de uma greve no setor privado não passava de três dias, graças ao rigor da Lei 4.330 da ditadura, que os líderes sindicais tachavam de “lei antigreve”.

A decisão de fazer a greve foi tomada na noite de segunda-feira, 12 de dezembro, numa assembleia de 300 pessoas que lotou a ‘oficina de chumbo’, um salão de 100 metros quadrados, no segundo andar do prédio do jornal, que marcava a transição de uma era: muitos foram demitidos a partir de julho, quando a modernização do parque gráfico do jornal trocou a composição a quente, com chumbo, para a fotocomposição, a frio.

No dia seguinte, a sede da Caldas Júnior amanheceu cercada por tropas da Brigada Militar para conter os piquetes grevistas, que tentavam bloquear os caminhões com o jornal impresso. O dono, Breno Caldas, teve que atravessar o piquete de funcionários, vaiado e chamado de ‘caloteiro’.                                                                                                              

A densa tese de mestrado da historiadora Clarice Gontarski Esperança –  A greve da oficina de chumbo – o movimento de resistência dos trabalhadores da Caldas Júnior – , aprovada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007, conta detalhes inéditos desse conflito. O advogado dos grevistas, Luís Burmeister, revela a importância de João Souza, que havia sido presidente do Sindicato dos Jornalistas entre 1974 e1978. “A militância era enlouquecida. Eram tempos da Libelu, a Liberdade e Luta, uma corrente de origem estudantil, trotskista. Aí, os caras que achavam que a Libelu era meio devagar criaram a Avalu, Avançar a Luta”. O jeito foi chamar sindicalistas mais experientes, alguns ligados ao PCB. E chamaram o João: “Quem fazia a moderação da coisa era o João Souza, um cara muito jeitoso e muito habilidoso, ao velho estilo de ficar por trás das coisas, mas ser uma palavra importante. Quando tinha algum rolo, que precisava decidir alguma coisa, o que fazer amanhã, a gente chamava o João Souza”, lembra Burmeister na tese de Esperança.

A greve, moderada por João, também demitido pela empresa, acabou vitoriosa. Foi declarada legal pela Justiça do Trabalho. Na passeata da vitória, após tantos dias de tensão, puxava o cordão o mais ilustre funcionário do Correio do Povo – o poeta Mário Quintana, o editor da página literária dos sábados, o lendário ‘Caderno H’. Apesar da fama, o poeta recebia uma merreca de salário, cerca de 192 mil cruzeiros, o equivalente a menos de dois salários mínimos atuais. Na flor dos seus 78 anos, o poeta desfilou sorridente no desfile vitorioso da greve, com o inseparável cigarro entre os dedos, sorrindo como uma criança. Quem o via ali, lembrava de uma advertência de Quintana: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”.

Quintana lê o boletim da greve, a passeata da vitória, o poeta na vanguarda:  a Caldas Jr. acaba sem poesia

Dois Paulos, um mentiroso

Na carteira de João, também. Além do jornalismo, ele se preocupava com os princípios éticos da profissão. Como presidente do sindicato, percorria com destemor e altivez os corredores dos quarteis militares ou da Polícia Federal, sempre que um jornalista detido pela ditadura precisava de seu conforto e apoio.

Quando nem a família tinha acesso, era o João, munido de sua autoridade e prestígio, que conseguia o contato pessoal que dava mais esperança para os familiares angustiados pelo desaparecimento. João amparava seus colegas, dentro e fora dos cárceres da repressão.

João Souza, Paulo Riccordi e Paulo Brossard: João provou que o Paulo mentiroso não era o repórter…

Em 1974, editor de política da Folha da Manhã, ele escalou o repórter Paulo de Tarso Riccordi para entrevistar o novo senador eleito, Paulo Brossard. Era o personagem central de uma fragorosa derrota da ditadura, quando a oposição – reunida no MDB –  consagrou-se conquistando 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, além de arrematar 161 das 364 cadeiras da Câmara dos Deputados. Entrevista feita e publicada, Brossard apoquentou-se com o que leu no jornal. Procurou Breno Caldas para queixar-se do repórter, negando o que havia dito. O dono da empresa não hesitou. Acreditou no amigo e determinou a demissão de Riccordi.

João esperou o retorno do repórter, para provar que ele estava certo. A entrevista, feita na fazenda de Brossard, em Bagé, fora gravada em várias fitas cassetes. “João levou a Breno Caldas o meu bornal de lona lotado com dez fitas gravadas”, contou Riccordi a Núbia Silveira. E assim a verdade do repórter sobreviveu à mentira do futuro senador.

Às vezes, era mais importante que os jornalistas protegessem João, nosso presidente, em vez do contrário. Em dezembro de 1975, Audálio Dantas, o presidente do sindicato paulista ligou para mim, autor desse texto, então chefe da sucursal em Porto Alegre da revista Veja. O II Exército, em São Paulo, acabava de divulgar uma nota, sustentando a falsa versão de ‘suicídio’ do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI, na verdade morto sob tortura. Botar o sindicato em confronto direto com o Exército daria o pretexto para sua intervenção. Assim, os próprios jornalistas criaram um movimento nacional para exigir a verdade no IPM militar. Audálio não poderia pedir que João fizesse isso no Sul, para não correr o mesmo risco. Ligou para mim e me encarregou da coleta de assinaturas, um episódio contado aqui pelo JÁ:

João Souza é apenas um dos 1.004 signatários do histórico manifesto “Em nome da Verdade”. Somente 11 dos 25 sindicatos de jornalistas do país protestaram contra a morte de Vlado.

A entidade gaúcha, presidida por João, foi uma das primeiras a se manifestar.

Nos tempos de Médici e Geisel

Sou testemunha de dois episódios que mostram a dignidade e a coragem de João Souza na defesa dos jornalistas.

Em 1974, poucas semanas antes passar o bastão de ditador para o sucessor, o general Emílio Garrastazu Médici fez uma última visita, de caráter sentimental, ao seu Rio Grande natal na condição de presidente. Não lembro qual o programa daquela sua incursão, mas, quase um mês antes, com a antecedência recomendável, apresentei o burocrático pedido de credenciamento que se exigia da imprensa para cobrir eventos da Presidência da República. Esse procedimento era sempre comandado pelo QG do III Exército (atual Comando Militar do Sul).

Naquela ocasião, contrariando o que acontecera em visitas anteriores, fui informado de que minha credencial havia sido negada. Foi uma surpresa. Até então eu era, nos padrões da segurança do regime, um repórter confiável, segundo os arquivos nada confiáveis do SNI do regime: não tinha militância política, não participara da luta armada, não era terrorista, nem jogara pedra ou bomba na polícia….

Enfim, eu era um zero à esquerda, limpo como uma folha em branco. Aquele veto era apenas um exemplo do poder arbitrário do regime militar, que abonava ou bania quem e quando quisesse, segundo o humor da hora. Vi naquela surpreendente rejeição uma forma de peitar os militares com a ajuda de meu prontuário absolutamente anódino e inofensivo.

Resolvi questionar o veto, coisa que jornalista sensato ou bem-comportado não costumava fazer naqueles tempos chumbados.

Apresentei meu plano a duas instâncias inevitáveis. Uma, a direção da Veja, que topou o desafio. A outra foi o Sindicato de Jornalistas, então presidido por João Souza, o ícone da categoria. Foi uma conversa evidentemente confidencial, com a qual busquei sua bênção e a cobertura da nossa entidade de classe. João topou o confronto, com a firmeza e a serenidade de sempre, vendo ali o pretexto ideal para que os jornalistas questionassem os critérios volúveis e estúpidos que os militares usavam, de forma aleatória, para controlar e intimidar a imprensa, que vivia sob o tacão do AI-5.

Minha ideia era linear: contestar o veto, para que o III Exército tentasse justificar minha surpreendente exclusão do time de credenciados, aproveitando o precedente de que eu tinha sido autorizado a cobrir visitas presidenciais anteriores, sem qualquer objeção. Se o QG, como de hábito, respondesse que o veto estava mantido, sem maiores explicações, para um repórter abusado como eu, nosso próximo passo seria cobrar a credencial na Justiça.

Estávamos dispostos a ir até ao Supremo Tribunal Federal para escancarar o mau-humor e o caráter discricionário dos militares. Nas nossas estimativas, seria difícil para o Exército justificar o arbítrio. Ganhando no Supremo, a gente estaria denunciando esse abuso específico contra a imprensa, um detalhe no oceano de violências com que a ditadura tentava manietar brasileiros de todas as categorias. Era um detalhe menor, mas era o que podíamos fazer para incomodar o governo de plantão. João ficou animado com a oportunidade, e me deu seu integral apoio: o Sindicato dos Jornalistas me proporcionaria a mais ampla cobertura jurídica.

Se aquele caso fosse adiante, seria um dos primeiros embates no STF da luta permanente entre Ditadura x Imprensa, que se aprofundaria a seguir.

João e eu chegamos a avaliar os próximos passos. Concordamos no nome que o sindicato contrataria para nos representar na Justiça: Werner Becker, um dos mais importantes advogados do Rio Grande do Sul, com atuação frequente e vitórias eloquentes no STF. Era pessoa de nossa confiança, minha e do João.

Cinco anos depois, Werner seria o advogado que o Sindicato dos Jornalistas colocaria à minha disposição para nos defender, a mim e ao fotógrafo JB Scalco, testemunhas involuntárias que fomos do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lilián Celiberti e seus dois filhos em Porto Alegre, em novembro de 1978, numa operação clandestina binacional da Operação Condor. O braço nacional da Condor era comandado pelo delegado do DOPS e torturador Pedro Seelig, chefe de Didi Pedalada e João Augusto da Rosa, identificados e denunciados pelos repórteres de Veja.

Em 1979, Werner, conhecido por sua verve e inteligência, foi interpelado pelo advogado Oswaldo Lia Pires, que defendia Seelig e seus comparsas no processo aberto pela Justiça Federal. Ao cruzar com Werner, numa das primeiras audiências, Lia Pires teve a má ideia de ser engraçadinho com nosso advogado:

– Ué, dr. Werner, nunca vi testemunha com advogado!

O nosso defensor rebateu na pleura:

– Quando polícia vira bandido, dr. Lia Pires, testemunha precisa de advogado…

Voltando a 1973. Daquela vez, contudo, nem precisamos chamar o Werner para nos assessorar em nossa insidiosa e subversiva manobra – por culpa do próprio Exército.

De repente, não mais que de repente, a sucursal da Veja, recebeu um telefonema do QG do III Exército informando que minha credencial estava liberada para a cobertura da visita de Médici, quando faltavam duas ou três semanas para a viagem presidencial.

Sem qualquer explicação ou esclarecimento, como acontecera no anúncio do veto, o comando do Exército nos comunicou a liberação da credencial. É da índole dos regimes autoritários não justificar seus atos e decisões, para não ter depois que explicar o que aconteceu ou deixou de acontecer. Assim, ganhei de novo a credencial perdida – e vi desaparecer a oportunidade de consumar nossa emboscada jurídica contra os militares.

João e eu ficamos frustrados pela chance desperdiçada.

João Souza foi a única pessoa, fora da redação de Veja, que soube, compartilhou, estimulou e se preparou para nossa iminente batalha jurídica. Não sei, até hoje, o que levou os militares a vetarem e, depois, liberarem minha credencial. Por razões óbvias, esse não era um tema que João e eu abordássemos em nossas conversas ao telefone, foco inevitável dos grampos de escuta ilegal que a repressão do regime espalhava com volúpia e paranoia – especialmente em sucursais de jornalistas e em sindicatos não apelegados.

Conto isso pela primeira vez, aqui no OBSERVATÓRIO e no jornal JÁ, para mostrar a importância de João Souza, como figura pétrea de dignidade, firmeza e coragem que nos inspirava e dava confiança naqueles tempos tão desesperançados e desconfiados.

Em novembro de 1976, o regime militar enfrentava o seu primeiro grande teste eleitoral após a derrota na eleição anterior, de 1974, que elegeu Brossard. Para dar um retrato nacional da eleição daquele ano, Veja escolheu para sua cobertura 20 grandes cidades interioranas, já que os cidadãos das capitais, pelos humores do regime, não tinham a chance de escolher seus prefeitos.

A cidade gaúcha selecionada pela revista foi minha terra natal, Caxias do Sul, segundo maior colégio eleitoral do Estado. Empenhado pessoalmente na vitória da Arena, o partido da ditadura, o general-presidente Ernesto Geisel estivera lá duas vezes antes do pleito. Não adiantou.

O candidato do MDB, Mansueto Serafini, ganhou com a maior votação individual do Estado, 43 mil votos, doze mil a mais do que o candidato de Geisel, o arenista Victor Faccioni.

Entusiasmados, os caxienses foram às ruas para festejar: mais de dez mil pessoas e um cortejo de quatrocentos automóveis que entupiram a centralíssima avenida Júlio de Castilhos na tarde de quinta-feira, 18 de novembro.

Eu estava lá, com o fotógrafo Ricardo Chaves, o Kadão, para documentar o festejo. De repente, dois grandes jipes militares, cada um com onze soldados armados de fuzis-metralhadoras e baionetas caladas, começaram a abrir caminho trafegando lentamente e acintosamente entre a multidão. Era a carranca verde-oliva da ditadura atravessando a avenida e a alegria popular – como fazia desde 1964.

Na frente da prefeitura, eu me postei acintosamente diante dos veículos militares e anotei suas placas. Um soldado desceu do jipão, me interpelou, pediu muitas explicações e minutos depois Kadão e eu fomos detidos, sob os olhares de dezenas de jornalistas que cobriam a festança do povo.

Colocados na carroceria descoberta do jipe, fomos levados para o quartel do 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos (3º GAAAc). O comandante daquela unidade, coronel Eugênio de Almeida Baptista, nos recebeu de pé, cara fechada, no alto de uma pequena escadaria que dava acesso ao saguão principal da caserna. Tinha os braços cruzados sobre o peito, o nariz empinado e batia o pezinho direito no chão, sinalizando no coturno sua enorme irritação.

– Vocês são todos uns ordinários e sem-vergonhas! A vontade que eu tenho agora é de enfiar a mão na cara de vocês! – fuzilou-nos à queima-roupa, mal-educado, sem sequer se apresentar.

– Boa tarde – retruquei. – Como é seu nome?

Empreguei um estudado tom baixo e sereno que desarmou o valentão. Em suma, puxei o tapete dele.

Depois que o comandante se identificou com nome e posto, apresentei-me:

– Coronel, meu nome é Luiz Cláudio Cunha. Sou jornalista e chefe da sucursal da revista Veja. Qual é o problema com a gente?

O coronel, talvez surpreso com minha identificação, amansou um pouco. Mas, ainda visivelmente irritado, perguntou por que eu anotara as placas das suas preciosas viaturas.

Expliquei que a aparição imprevista daqueles veículos bélicos em uma festa popular necessariamente deveria estar registrada na minha reportagem. Daí a anotação.

– Eles estavam lá para controlar a turba… – tentou justificar o militar.

– Turba não, coronel – interrompi. – Massa. O que há lá no centro da cidade é apenas uma massa de gente pacífica, alegre, comemorando uma vitória democrática. Seus jipes estavam ali só para atrapalhar.

– Neste caso, eu boto todas as viaturas do quartel aqui no pátio para o senhor anotar as placas… – disse ele, desafiante.

– Não precisa, coronel. Só me interessam aquelas duas que se infiltraram na festa. Aliás, não sei nem por que estou aqui, em vez de estar cobrindo a comemoração. Eu estou preso, coronel?

– Na-não! – gaguejou ele. – Estamos apenas co-conversando…

– Bem, sendo assim, estou perdendo meu tempo. Eu não vim a Caxias para conversar com o senhor. Vim para cobrir a eleição e seu resultado. Já que me tirou do meu local de trabalho, o senhor poderia, por favor, me mandar de volta para lá antes que os festejos acabem – pedi, com a petulância e o atrevimento que me cabiam.

Antes de me liberar, o coronel solicitou-me que não divulgasse as placas das suas viaturas.

– Repare bem: estou pedindo, não proibindo.

E, antes de nos devolver ao centro da cidade – dessa vez transportados no seu carro particular, uma Variant verde, quase oliva –, o coronel me apresentou mais uma solicitação:

– E, por favor, fale a verdade!

Quando voltamos ao centro já corria por lá a notícia de nossa detenção. Em Porto Alegre, preocupado com nossa segurança física, João Souza, o diligente presidente do sindicato, denunciou nossa “prisão”, comunicada a ele pelos coleguinhas de Caxias do Sul. E, de imediato, acionou o governador Synval Guazzelli, no Palácio Piratini.

Pouco depois, João recebeu a notícia tranquilizadora: Kadão e eu já estávamos trabalhando no meio da “turba” que tanto inquietava o coronel.

Mas aquela festa ficou marcada por grave incidente, provocado pelos militares.

O vitorioso Mansueto Serafini desfilou em um DKW amarelo, saudado por foguetes e escolas de samba e acompanhado pelos operários que saíam das fábricas no final da tarde. Fez a volta na praça e foi carregado pela multidão por cinco quadras, até o edifício onde morava. Só não discursou porque os companheiros o lembraram da ordem expressa do coronel Baptista:

– Não transforme a passeata da vitória num comício político!

Mas aquela festa ordeira acabou em violenta desordem. Súbito, com a ajuda de vinte homens da Brigada Militar, a tropa do Exército entrou em choque com a multidão, distribuindo cacetadas e lançando oito bombas de gás. Dois vereadores do MDB e mais de vinte pessoas foram atendidas nos hospitais. Minutos depois as emissoras de rádio e TV e os jornais foram proibidos de noticiar a confusão.

A reportagem de capa da Veja da semana seguinte falou a verdade, como pedia o coronel: relatou toda a confusão provocada pela “turba” fardada – e ainda publicou as placas dos dois jipes enxeridos (EB-21-18-488 e EB-21-15-467).

Algumas semanas depois, sem choro nem vela, o coronel Baptista foi exonerado e transferido. Nunca mais se ouviu falar dele.

Mas é preciso falar sempre de João Souza, que nos momentos mais tensos sempre foi uma presença serena, firme, inabalável, digna, consciente do que devia fazer e do que não podia se eximir. Ele nos representava e nos protegia.

Esse foi João Souza, orgulho da raça.

Da raça dos jornalistas.

 

*Luiz Cláudio Cunha é jornalista, autor de Operação Condor – O Sequestro dos Uruguaios [Ed. L&PM, 2008, Porto Alegre]   –   cunha.luizclaudio@gmail.com

 

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A banalidade do mal na erosão ética da política

Luiz Cláudio Cunha*

O vento constante que soprava do mar sobre a cidade de Osório, no litoral gaúcho, distante apenas 15 km das ondas do Oceano Atlântico, amenizou a temperatura de 30° na manhã daquele sábado ensolarado, 10 de abril de 2021. Isso permitiu que o encontro informal dos três políticos da cúpula do MDB gaúcho fosse ainda mais descontraído, trocando o hábito sufocante do paletó e gravata do asfalto pelos adereços mais confortáveis da praia — sandálias, bermuda, tênis, camiseta e calça jeans.

Foi uma longa, relaxada conversa de quatro horas coroada por um almoço, na casa de veraneio do presidente do partido no Rio Grande do Sul, o deputado federal Alceu Moreira, que recepcionou o prefeito da capital gaúcha, Sebastião Melo, e o secretário-geral do MDB, o deputado estadual Gabriel Souza, que também preside a Assembleia Legislativa. Ao final, o secretário Souza resumiu o teor do encontro para o repórter Paulo Egídio com uma frase crua e cínica que resume a inevitável decadência moral daquele que foi o mais prestigiado partido da história política gaúcha: “OK ter filiados adeptos ao bolsonarismo, mas o MDB nunca foi bolsonarista. O apoio ao Bolsonaro foi um momento tático eleitoral de 2018”, confessou candidamente o presidente da Assembleia gaúcha.

A frase foi publicada na edição virtual de domingo, 11, da mais importante colunista política do Estado, Rosane de Oliveira, no jornal de maior prestígio do Sul, a Zero Hora, sob um título ameno como a temperatura da praia: “Em almoço no litoral, líderes do MDB gaúcho concordam em posicionar o partido ao centro”. Apesar da gravidade da confissão, não se registrou nenhum abalo sísmico no Estado, que engoliu em seco, sem qualquer reação, rejeição ou indignação a palavra que, mais do que tudo, soava como uma autoconfissão.   

Os chefes maiores do MDB sulista admitiam ousadamente, enfim, que era OK ter adeptos do bolsonarismo entre seus filiados, uma brutal contradição em termos que deveria envergonhar a sigla que carrega, na sua longa história, a honra de ter combatido e resistido à ditadura sempre louvada pelo capitão que arrebatou devotos e adesões irrestritas dentro da legenda. Ninguém do partido reclamou, nem se sentiu injuriado pela gentil admissão de que, OK, um filiado do MDB velho de guerra agora, de repente, poderia ser um assumido bolsonarista!…

Assustadoramente normal

O prefeito, o presidente do partido e o seu secretário-geral, nas suas levianas reflexões – tão despojadas quanto os trajes praianos que vestiam – exprimiam na essência a “banalidade do mal”, expressão definida seis décadas atrás pela filósofa e pensadora política Hannah Arendt (1906-1975), em seu trabalho de maior repercussão como jornalista: a série de cinco artigos que publicou, entre fevereiro e março de 1963, na renomada revista The New Yorker, sobre o juízo em Jerusalém em 1962 do tenente-coronel Adolf Eichmann, sequestrado dois anos antes na Argentina pelo serviço secreto de Israel. Coordenador e gerente do Holocausto nazista que exterminou seis milhões de judeus, ele foi julgado num processo de cinco meses, condenado e enforcado na madrugada de 1º de junho de 1962. O conjunto de cinco artigos foi transformado, no ano seguinte, no livro mais popular da ativa vida intelectual de Arendt: Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal.    

Hanna Arendt viu em Eichmann o que Pedro Simon não viu em Jair Bolsonaro: a banalidade do mal

Ao saber do iminente julgamento de Eichmann, Arendt se ofereceu à revista para cobrir o processo que testaria, na prática, a teoria por ela desenvolvida em seu primeiro e mais aclamado ensaio, As origens do totalitarismo, de 1951. Ali, examinava as raízes do Nazismo e do Stalinismo e os fundamentos de “uma nova forma de governo”, o Totalitarismo, que diferia essencialmente das outras três formas conhecidas de opressão – o despotismo, a tirania e a ditadura. Em Jerusalém, Arendt imaginava ter a chance de ver a justiça administrada ao homem de perfil totalitário sobre o qual ela havia escrito.

Mais do que uma pensadora original, Hanna Arendt era, também, uma sobrevivente do Holocausto gerenciado por Eichmann. Judia alemã de nascimento, escapou duas vezes das garras da Gestapo. Na Berlim radicalizada de 1933, no alvorecer do nazismo, denunciada por um livreiro por propaganda contra o Reich, ela e a mãe foram presas por oito dias. Dali escapuliu e procurou refúgio em Paris, mas acabou presa outra vez e internada no sul da França, em Gurs, um antigo centro de refugiados da Guerra Civil Espanhola que, sob a ocupação nazista, virou um campo de concentração para judeus não-franceses e inimigos do regime colaboracionista de Vichy. Quando conseguiu escapar dali, junto com a mãe e o marido, Arendt cruzou a Espanha rumo a Lisboa, de onde alcançou sua nova pátria em Nova York, em maio de 1941.

Duas décadas depois, ao publicar seu relato sobre o impacto de ver Eichmann ao vivo no tribunal, Arendt confessou ter ficado impressionada, certamente surpresa, com a inesperada imagem de vulgaridade e o comportamento daquele homem meio calvo, que parecia apenas um medíocre burocrata, até brando, em contraste com o horror dos crimes terríveis de que foi acusado. “Eichmann era terrivelmente, assustadoramente normal”, espantou-se ela.[1]

Essa insidiosa, maligna banalidade anotada nos anos 1960 acabou se infiltrando, contaminando, conspurcando em 2018 um dos lugares mais admirados do Brasil pela força de seu povo, pela beleza de sua terra, pelo valor de sua história política, econômica e cultural: o Rio Grande do Sul.

A naturalidade do Bem

Delimitada pelo Império no início do Século 19, a velha Capitania de São Pedro alçou-se duas décadas depois à Província e, com a República, transformou-se em Estado, hoje com números superlativos. Sexto mais populoso do país — com mais de 11 milhões de habitantes (equivalente a uma Bélgica) espalhados por 281 mil km² (do tamanho do Equador) onde se espraiam os pampas de largos horizontes, os campos verde-amarelo mansamente ondulados de milho e soja e as suaves colinas da serra perfumadas pelos vinhedos, hortênsias e flores de bergamota —, o Rio Grande do Sul ostenta índices invejáveis para um país tão desigual. Tem a 4ª melhor taxa de alfabetização (comparável a Singapura), é o 7º com mais estudantes de nível superior completo (quase 10% da população), alcança a 4ª posição em renda per capita (Porto Alegre é a 2ª capital, só atrás de Vitória) e atinge o 4º posto no ranking do PIB nacional.

Aos habitantes originais das tribos Charrua e Minuano juntaram-se os africanos e portugueses, mesclados com os castelhanos que porejavam pelas fronteiras com os vizinhos do Cone Sul, reforçados pela linhagem laboriosa dos imigrantes italianos e alemães que começaram a chegar da Europa no final do Século 19.  Esse caldeirão de sangue, talento, interesses e culturas tão diversas gerou um povo guerreiro e afirmativo que explica o protagonismo dos gaúchos em movimentos, levantes, rebeliões e sagas que moveram, para a frente, a história do Estado e do Brasil em dois séculos.

As revoluções Farroupilha (1835-1845), Federalista (1893-1895) e a de 1923 colocaram o Estado ou parcelas dele, em tempos distintos e por razões diferentes, em ousado confronto com as oligarquias locais, a hegemonia federal do Rio de Janeiro e as leis da época que favoreciam o continuísmo no poder e a dependência econômica. A Revolução de 1930, iniciada no Sul, tirou o país do atraso da Velha República do café-com-leite, e a brava Campanha da Legalidade de 1961 conteve o Exército golpista em Brasília e garantiu a posse constitucional de João Goulart na crise entornada pela ébria renúncia de Jânio Quadros.

A Revolução Farroupilha e a Campanha da Legalidade: dois séculos de gente que reclama, briga e não se agacha

Essa linda, guerreira história de mais de 200 anos dominados pela naturalidade do bem de repente foi confrontada, humilhada pela banalidade do mal que prevaleceu na eleição presidencial de 2018 no Rio Grande do Sul. Pela maioria dos votos válidos, 63,2% (3,9 milhões de eleitores), o capitão Jair Bolsonaro teve quase o dobro de seu opositor no segundo turno, o professor de ciência política da USP Fernando Haddad, com 36,7% (2,2 milhões). O tosco e abrutalhado capitão venceu o advogado – mestre em Economia e doutor em Filosofia – em 407 dos 497 municípios gaúchos. Porto Alegre, a 3ª capital do país com menor taxa de analfabetismo (2,18%, atrás de Florianópolis e Curitiba), deu a vitória a Bolsonaro em todas as dez zonas eleitorais da cidade.

O capitão candidato, que no início parecia apenas uma excrescência folclórica e nostálgica do passado autoritário de 21 anos, acabou dominando corações e mentes da maioria dos 8,3 milhões de eleitores gaúchos. O resultado final no Rio Grande foi a nona maior vitória estadual de Bolsonaro, que venceu as eleições do segundo turno em 21 capitais e 16 dos 27 Estados brasileiros, incluindo os três do extremo sul, os de maior nível de escolaridade. Em Santa Catarina, que tem a capital mais alfabetizada do país, o capitão arrebatou sua segunda maior vitória nacional, com 75% dos votos, três de cada quatro eleitores. No primeiro turno, quando recebeu quase 50 milhões de votos no Brasil, Bolsonaro desconcertou os dois principais candidatos a governador no Sul – Eduardo Leite (PSDB), que teve 35,9%, e José Ivo Sartori (MDB), que tentava a reeleição, com 31,1%.

O frankenstein eleitoral

Ambos reafirmaram a “posição antipetista”, e tentaram atrair o voto bolsonarista – um recatado, outro arreganhado.

Leite foi cuidadoso: “Os gaúchos votaram na maioria em Bolsonaro, e eu respeito isso. Sei que apoiá-lo seria um gesto natural de quem deseja vencer esta eleição. Mas não quero vencer a eleição e perder a alma. Eu tenho uma posição firme: não arredar pé dos meus princípios e valores. Lamento que ele não tenha feito uma autocrítica sobre frases e pensamentos que não respeitam a democracia e a existência pacífica e natural de outros seres humanos”. E mais não disse, nem fez o candidato tucano no resto da campanha.

Sartori foi mais escancarado, irrestrito: “O apoio a Bolsonaro dialoga com a necessidade de combate permanente à corrupção, apoio à Lava-Jato, mais segurança e um novo pacto federativo. Não é hora de omissão”. Sartori, arrebatado, jogou-se no colo do capitão já no dia seguinte ao primeiro turno de 7 de outubro, tentando sugar sem rebuço a simpatia e o apoio explícito dos 3,3 milhões de gaúchos (52% dos votos válidos) que optaram por Bolsonaro.

Ao contrário de Leite, que não falou mais no capitão no segundo turno, Sartori rasgou as vestes da compostura e colou-se como uma craca no áspero rochedo de Bolsonaro. Tentando um equilíbrio instável na onda conservadora com o seu jacaré de arrivismo, o governador chegou ao extremo de juntar sua imagem à de Bolsonaro nos cartazes de campanha, gerando um horrendo frankenstein eleitoral que não deixava nenhuma margem de hesitação: ‘Sartonaro’.

Sartori: no cartaz do terrível  frankenstein eleitoral e com o silêncio que abençoou o mal

O malabarismo não deu certo. O jacaré de Sartori perdeu o equilíbrio em seu balouçante, oportunista adesismo, e afundou na derrota por pouco mais de 420 mil votos (53,6% a 46,3%). O outro grande perdedor foi o líder maior do MDB gaúcho, o ex-senador Pedro Simon, mentor político de Sartori, um professor de filosofia que Simon arrebanhou para a política e para o MDB em 1976. Carinhosamente chamado de ‘Gringo’, como são conhecidos os imigrantes de origem italiana da serra gaúcha, Sartori ganhou dez das 13 eleições que disputou – incluindo duas para prefeito de Caxias do Sul, terra natal de Simon, e uma para governador. Sua devoção e subordinação ao mentor político, contudo, não lhe permitiam a iniciativa e a ousadia de assumir por conta própria o truque do “Sartonaro” sem o assentimento prévio do velho senador.

As digitais do envergonhado apoio de Simon ao capitão, assim, são perceptíveis a olho nu nos grandes cartazes de campanha que, sem qualquer objeção do líder máximo do MDB sulista, nivelaram para sempre a figura decente e cordial de Sartori e o retrato do ríspido e indecente Bolsonaro. A preferência de Simon ficou dissimulada até duas semanas antes do segundo turno, em 28 de outubro, quando ele concedeu uma desastrada entrevista ao principal jornal gaúcho, a Zero Hora. Numa afirmação surpreendente, de grande repercussão, o maior líder do MDB anunciou seu “apoio crítico” a Bolsonaro, um escorregão que colocou em xeque a biografia do ex-senador e tornou gelatinoso o seu pétreo compromisso com a ética.

Emparedado por Carlos Rollsing, um jovem e talentoso repórter de 35 anos, o veterano político então com 88 anos chegou ao extremo de implorar pelo que é impossível a um jornalista sério: não fazer a pergunta que deve ser feita. Um trecho desse patético confronto:

Rollsing Pelo o que entendi da sua manifestação, o senhor vai acatar a decisão do MDB gaúcho de apoiar  Bolsonaro, mas fico em dúvida se o senhor vai apoiar ele pessoalmente e se vai votar nele. Como será?

Simon – Eu vou ficar fora da campanha. Não participo.

Rollsing O que o senhor vai fazer então? O que significa apoiar criticamente?

Simon – Eu não sei, respeito a decisão do partido, está feito, mas eu fico fora da campanha.

Rollsing – Não é um apoio explícito então?

Simon – É um apoio crítico.

Rollsing – E o que significa um apoio crítico?

Simon – Não vou participar da campanha. Vou fazer essas análises de um e de outro lado, que eu acho que devem ser feitas.

Rollsing Mas o senhor vai votar no candidato Bolsonaro

Simon – Não me faz essa pergunta (risos). Eu peço, por favor, que não me faça essa pergunta.

O claudicante, errático desempenho do ex-senador diante do repórter incisivo mostra suas vísceras na resposta seguinte, que prova o desconcerto interior que já consumia Simon em dúvidas e remorsos:

RollsingO senhor acha que esse apoio ao Bolsonaro agora, que tem saudosismo da ditadura e já relativizou atos como a tortura, é coerente com a história do senhor e do MDB?

Simon – Não. Acho que hoje, realmente, eu fico me perguntando o que o doutor Ulysses estaria fazendo…

Rolssing, o repórter incisivo, faz a pergunta certeira: Pedro Simon, acuado, implode a ética e afronta a História

É realmente deplorável ouvir o ex-combativo senador Simon se fazer essa pergunta, inadmissível para quem conviveu intimamente com o principal líder do MDB por mais de um quarto de século, no coração da política nacional, inclusive como o estratégico coordenador da campanha das Diretas-Já (1983-84). Simon lembra como ninguém daquela tarde de 5 de outubro de 1988, fecho glorioso de um ano e meio de debates até chegar à promulgação da nova Constituição. Ali, Ulysses trovejou: “Traidor da Constituição é traidor da pátria… Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações”.

Simon deveria lembrar, portanto, que a figura aberrante a quem dava o seu surpreendente “apoio crítico” em 2018 era o capitão Jair Bolsonaro que, em vez de amaldiçoar, louva sempre que pode a ditadura que Ulysses e os homens do Bem mais odiavam. O candidato que ganhava o apoio de Simon lamentou várias vezes que sua louvada ditadura tenha torturado e matado de menos, que mais gente deveria ter sido morta, e confessou, triunfal, que torturadores notórios eram os seus heróis e os autores de seus (poucos) livros de cabeceira. Nos seus 32 anos de presença ativa no Senado ao longo de quatro mandatos, desde 1979, Simon coincidiu boa parte de sua vida no Congresso com os sete baldios mandatos de Jair Bolsonaro na Câmara, eleito deputado federal sete vezes consecutivas a partir de 1990. Já deveria então, sem qualquer apoio, ser um crítico severo de Bolsonaro!

No fígado do capitão

Bolsonaro nunca deixou de ser um ilustre desconhecido do baixíssimo clero da Câmara, um parlamentar irrelevante, quase inútil, que conseguiu aprovar apenas dois projetos e uma emenda em 28 anos ordinários de Parlamento. A emenda do capitão-deputado autorizava o uso da fosfoetanolamina, a polêmica “pílula do câncer”, sintetizada na década de 1980 por um químico do interior paulista denunciado por curandeirismo pela Universidade de São Paulo (USP), em 2016. Um ano antes, a Academia Brasileira de Ciência condenou o uso da droga em seres humanos.

Apesar disso, a visão populista de deputados e senadores acabou aprovando uma lei incauta que liberava o uso da pílula, sem qualquer avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A carreira milagreira da “pílula do câncer” só acabou dissolvida por decisão do Supremo Tribunal Federal, que arquivou o pedido de liberação. Nessa jornada brancaleônica, o capitão Bolsonaro foi um demagogo defensor do clamor popular contra a ciência, antecipando o papel atual de charlatão, como garoto-propaganda da cloroquina e outras sandices terapêuticas que ele prescreve com o fervor de um cientista maluco.

Mesmo com essa enxovalhada folha corrida, o capitão bobalhão ganhou o valioso “apoio crítico” de Pedro Simon. Numa reunião com empresários em 2017 em Porto Alegre, local de residência do ex-senador, Bolsonaro já ensaiava sua candidatura presidencial apresentando sua maior virtude: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”. Admirador confesso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório comandante do maior centro de tortura de São Paulo, o DOI-CODI da rua Tutoia, na ditadura, ainda assim Bolsonaro recebeu a estranha adesão do ex-senador, mesmo sendo o admirado autor de um texto de forte repercussão publicado pelo jornal O Globo em 28 de abril de 2010. Nesse dia o STF julgava uma ação da OAB que dizia o óbvio: a anistia do Governo Figueiredo não podia se aplicar aos crimes de tortura – imprescritíveis – praticados pelos agentes da repressão durante o regime militar.

O título do artigo de Simon atingia o capitão no fígado: “Não se anistia o nazismo. Nem a tortura”. Numa advertência clara, que cabia com perfeição na ficha de Brilhante Ustra, o herói torturador de Bolsonaro, Simon escreveu:

Ninguém, neste país, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram. É um crime, portanto, sem pai nem mãe.

Anistia não é esquecimento, é perdão. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país.

O nazismo não merecia a amnésia, muito menos a anistia. A tortura, também. […]

Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo. É uma obrigação moral e ética de um país que deve olhar sem medo para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.

Vamos lavar e cicatrizar nossas feridas, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.[2]

Pedro Simon e seu crítico apoio, o capitão e seu torturador predileto, o coronel Brilhante Ustra

Não se sabe se Simon, ao melhor estilo FHC, esqueceu o que escreveu, ou obliterou o que pensava. O fato é que o texto foi tão notável que, logo após ser recebido na redação no Rio de Janeiro, o gabinete do senador recebeu em retribuição um telefonema agradecido do então diretor de redação de O Globo, Ascânio Seleme, que elogiou: “Parabéns, senador, pelo senso de oportunidade e pela contundência do artigo”. Dezoito anos depois, ao declarar seu inesperado apoio crítico ao capitão que sempre defendeu a morte, a tortura e os seus executores, o ex-senador mostrou aos seus admiradores que tinha perdido o senso de oportunidade, a contundência e a coerência.

A admiração de velhos companheiros da luta contra a ditadura foi gravemente atingida pela súbita conversão de Simon ao Jair Messias da violência e da estupidez. Um dos mais chocados foi um histórico fundador do MDB, o advogado João Carlos Bona Garcia, que ingressou na guerrilha aos 17 anos, dois anos após o golpe de 1964, como militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), integrada entre outros por Carlos Lamarca e Dilma Rousseff. Participou de duas ações da VPR no Sul atacando carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Bona Garcia acabou preso, torturado e, no final de 1970, banido do país quando 70 prisioneiros políticos foram libertados depois do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher no Rio de Janeiro.

Em três décadas, os caprichos da história viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo. Na democracia, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos militares e desterrado pela ditadura virou subchefe da Casa Civil do governador Pedro Simon, em 1986, e chefe da Casa Civil doze anos depois do governador Antônio Britto. Em 1998, o ex-assaltante de banco tornou-se executivo de banco: foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do RS. O ex-preso político Bona Garcia, naquele mesmo ano, foi indicado juiz da justiça militar gaúcha e, em 2002, o ex-torturado alcançou a presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul.

A vida não é só eleição

As reviravoltas da vida não fizeram Bona Garcia, como Simon, perder o sentido de orientação política, nem desnortearam seus princípios éticos, nem turvaram sua memória. Em 15 de outubro de 2018, quatro dias após a perturbadora entrevista de Simon à Zero Hora, Bona Garcia contrariou o seu amigo e companheiro de partido para não contrariar sua própria consciência e sua história.

Condenando o que chamou de “cheque em branco do MDB” ao capitão, Bona Garcia, mesmo fazendo críticas ao PT, abriu o seu voto em Fernando Haddad. E deu uma explicação ao repórter Luís Eduardo Gomes, do site Sul21, que certamente encharcou Simon de vergonha. Disse Bona Garcia, em tons proféticos:

Acho que a vida não se restringe a uma eleição. Porque você vai estar dando um cheque totalmente em branco a um candidato que todo mundo conhece, suas posições sempre foram muito ruins para a democracia — uma pessoa racista, preconceituoso em relação às mulheres, apoiou e apoia ainda a ditadura militar que houve no País, apoiou e apoia a tortura, defende os torturadores. Todo mundo conhece isso.

O Bolsonaro tem anos e anos de vida parlamentar e todo mundo conhece a posição que ele tem, o que ele pensa sobre todos os problemas da vida nacional.

Do passado, do presente e do que pensa para o futuro.

Ele pode agora, como é época de eleição, vestir uma roupagem de conciliador, prometer unir o País, porque ele também quer votos.

Então, ele vai se apresentar como um moderado para ter os votos do pessoal mais de centro.

Agora, a vida dele não é essa. O posicionamento dele não é esse.

O que ele vai fazer, sabe-se lá o que é.

Mas você não pode comprar o Bolsonaro pelo que ele foi a vida toda.[3]

Simon ficou com Bolsonaro, Bona Garcia e Brum Torres ficaram com a ética

Uma nova e lamentada baixa nas fileiras históricas do MDB veio com o protesto veemente de outro fundador do partido, o filósofo João Carlos Brum Torres, que foi secretário estadual de Planejamento dos Governos Antônio Britto (1995-1999) e Germano Rigotto (2003-2007). Mestre em Filosofia pela Universidade de Paris, doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade de Berkeley (EUA), Brum Torres mostrou, aos 72 anos, o que Simon não demonstrou aos 88: consciência política.

Cinco dias após a desastrada entrevista do ex-senador, e um dia após o público puxão de orelhas de Bona Garcia, Brum Torres avançou o sinal e, em protesto veemente, anunciou sua desfiliação do MDB, o único partido de sua vida.

Saiu com requintes de crueldade, explicando:

Vou sair porque achei grotesco o MDB sair correndo para se atirar nos braços de Bolsonaro. 

Pode ter sido pragmatismo eleitoral, mas para tudo existe limite.

Um homem que escolhe como livro de cabeceira a obra de um torturador como Brilhante Ustra contraria os princípios nos quais eu acredito.[4]

Pedro Simon levou 32 anos para construir, em quatro mandatos consecutivos de senador em Brasília, uma merecida mística de campeão da ética, de crítico do regime militar, de inimigo da corrupção, de arauto contra a impunidade, de pregoeiro da luta contra todas as injustiças, escorado em fundas convicções católicas e sincera devoção franciscana.

O show do ectoplasma

Ninguém definiu melhor o dramático, teatral contorcionismo gestual de Simon na tribuna, no palanque e nas palestras do que o seu velho parceiro de política, Ulysses Guimarães, na “Ode ao Campeão”, publicada em um livro biográfico:

Há bons oradores, populares ou parlamentares.

Simultaneamente, bom no palanque e bom na tribuna, no Brasil só conheço um: Pedro Simon.

No palanque, fica em transe.

Dá ‘show’, mágica sessão de ectoplasma.

Possesso, funde-se com a multidão, rege o silêncio e o aplauso.

Fala com a goela, com os olhos, com as mãos, com o tórax convulso, baila com as pernas. Campeão da tribuna e do microfone.[5]

Simon, por Ulysses: “show, ectoplasma, transe, possesso, fala com a goela, os olhos, as mãos, o tórax convulso”

Em dezembro de 1976, ainda como deputado estadual e presidente do MDB gaúcho, Simon fez o discurso mais emotivo e forte do enterro de João Goulart, na volta derradeira a São Borja, sua terra natal, doze anos depois do golpe militar de 1964 — o golpe sempre louvado pelo capitão que Simon abençoou como candidato em 2018. Único presidente da História brasileira a morrer no exílio, Jango incomodava até mesmo num caixão.

“Jango era um grande estorvo para os militares, eles não queriam que ele voltasse nem morto. Jango era querido pelo povo. Havia uma multidão espontânea acompanhando seu caixão quando chegou a São Borja. A multidão se amontoou, baixou o caixão do carro funerário e o levou para a igreja, desafiando aos militares que queriam enterrá-lo às pressas. O povo não parecia ter medo”, lembrou Simon 37 anos depois do enterro ao repórter Darío Pignotti, do jornal argentino Página 12.

Simon revelou ao jornal de Buenos Aires que, antes do sepultamento apressado, procurou o comandante do III Exército em Porto Alegre, general Fernando Belfort Bethlem, solicitando uma autópsia no corpo do presidente. O general, sem dar maiores explicações, recusou o pedido.[6] Hoje, o Brasil ainda espera pela autópsia do voto de Simon em Bolsonaro, capaz de dissecar as vísceras que revelem as razões mais entranhadas dessa carcomida opção eleitoral do velho senador.

Simon em São Borja, 1976, no enterro de Jango:  o auge da emoção. Gen. Bethlem: sem autópsia

Como naquele dia sombrio em São Borja, os brasileiros se acostumaram anos depois a acompanhar semanalmente em Brasília, pelas imagens da TV Senado, as teatrais, performáticas exibições de Simon na tribuna do Senado, falando sobre tudo e sobre todos. Geralmente discursava às segundas e sextas-feiras, quando os outros senadores ainda não tinham chegado ou já haviam deixado a capital, e o microfone era destravado para as longas, fluviais intervenções do senador gaúcho, liberado da ditadura do relógio e das restrições do regimento da casa.

O silêncio de cemitério

É natural, portanto, que os brasileiros estranhem o inusitado, estrondoso silêncio que o habitualmente loquaz político gaúcho, mesmo sem tribuna, mantenha nos últimos dois anos, os mais trepidantes e assustadores desde o fim da ditadura em 1985. A aberrante presidência do capitão Jair Bolsonaro, regalado antes da eleição com o explícito apoio crítico do sempre rigoroso Simon, é um prato cheio para a língua afiada do ex-senador. Seja pela economia destrambelhada de seu ministro Paulo Guedes, ou pela aloprada política de combate ao ‘globalismo marxista’ do ex-chanceler Ernesto Araújo, ou pela gestão piromaníaca do ministro que derruba florestas e polui o meio-ambiente, Ricardo Salles.

Junte-se a isso a língua solta e o raciocínio travado do pior presidente da República brasileira, hoje o chefe de Estado mais polêmico e detestado no mundo, por sua figura tosca, ignorante, rombuda, boçal, que ataca mulheres, ofende jornalistas, afronta magistrados, destrata governadores e prefeitos, prega o armamentismo, incentiva os bandoleiros milicianos, alimenta o fundamentalismo religioso, desacata o bom-senso, deprime os brasileiros e envergonha o Brasil no mundo.

Tudo isso, além da doentia, neurastênica aversão de Bolsonaro à ciência, à medicina e às recomendações básicas dos especialistas – como o uso de máscara e o respeito ao distanciamento social – no combate à maior crise sanitária da história. Mais do que folclórica, sua esquizofrênica obsessão pela cloroquina e outras nulidades terapêuticas se soma à absoluta letargia pelo círculo de morte e dor que se alastra, sem controle, pelo país angustiado, sitiado pelo Covid-19 e pela inércia de um governo abilolado.

A falta de empatia do capitão, fator marcante de sua personalidade psicopata, mas previsível em um declarado “especialista em matar”, ficou ainda mais flagrante na quinta-feira, 29 de abril de 2021, quando o Brasil ultrapassou a dolorosa marca dos 400 mil mortos – o segundo maior do mundo, só atrás dos Estados Unidos. Como sempre, um detalhe que trombou com o silêncio pétreo de Bolsonaro, fiel ao seu mantra favorito: “E daí? ”

Pedro Simon e a gargalhada demente de Jair Bolsonaro: o mesmo e cruel silêncio de cemitério de 400 mil vidas

O mórbido mutismo do capitão, diante de tanta morte, já não assombra mais ninguém, todos habituados ao riso catatônico, à gargalhada convulsiva que Bolsonaro se deleita em exibir na proporção em que cresce a escala de mortos. O que espanta, de fato, é que toda essa tragédia humanitária conflui para o silêncio solidário de quem nunca se calou, de quem sempre tudo falou: Pedro Simon. Não seria por falta de assunto, com certeza, que o velho senador se calaria agora, diante da pauta irrecusável de sandices e patifarias que se renova diariamente no desgoverno Bolsonaro. A única explicação para a cúmplice pasmaceira de Simon é que ele continua um passivo refém de seu apoio crítico.

Crítico, esse apoio nunca foi, diante de tanta coisa a ser criticada e sempre sufocada. O apoio, apesar de tudo isso, persiste pelo silêncio teimoso, inexplicável, que agora trava a língua do “ex-Simon”, conforme a ferina definição que o senador um dia recebeu do jornalista Josias de Souza, colunista do UOL e da Folha de S.Paulo. Para um político que se notabilizou durante tanto tempo como o grilo falante da consciência nacional, o gritante mutismo de Pedro Simon simboliza a erosão ética que hoje corrói a figura pública que, no passado, foi o retrato tonitruante da oposição mais altiva, corajosa, intimorata contra a ditadura. O atual comportamento flácido do ex-senador, diante de tanta iniquidade, contaminou a dobradiça reunião da cúpula do MDB em Osório, no início de abril, que apenas reflete a licenciosa aderência de Simon a Bolsonaro.

É triste ver, num personagem tão carismático da política brasileira, a indecisão ou a imprecisão de atitudes que degeneram sua imagem pública. É mais comum que grandes líderes, à medida que envelheçam, se tornem mais sábios, mais transcendentais, mais decisivos.

A aliança com o demônio

Pedro Simon era um guri, em junho de 1941, com apenas 11 anos completados cinco meses antes. Naquele verão do hemisfério norte, a noite abafada de sábado prometia um domingo quente na fronteira oriental da Polônia, invadida dois anos antes pelas tropas de Hitler, no início das hostilidades da II Guerra Mundial (1939-1945). O inferno vivido pelos poloneses escancarou-se, ainda pior, para os soviéticos que viviam nas repúblicas da Ucrânia, Belarus, Lituânia e Letônia, às 3h15 da madrugada de 22 de junho de 1941, quando uma barragem de artilharia clareou a escuridão de todas as fronteiras com fogo e pólvora, dando início à maior operação militar da História — a invasão nazista da União Soviética.

Para essa empreitada, Hitler mobilizou nove exércitos, 225 divisões, 10 mil tanques, 4 mil caças e bombardeiros, 750 mil cavalos e 4,5 milhões de homens —  uma força militar dez vezes maior do que o Grande Armée que Napoleão reuniu em 1812 para o frustrado plano de conquistar a Rússia do imperador Alexandre I.[7]

Ao raiar daquela manhã de domingo, 22 de junho, o secretário particular John Colville, diante da importância da notícia, ousou despertar o premier inglês Winston Churchill na residência oficial de Downing Street, 10, para confirmar a invasão da União Soviética. Desde a véspera seu chefe recebia nervosas informações da Inteligência britânica sobre a crescente concentração de tropas alemãs na fronteira.

Ao ouvir a boa nova, que trazia Stálin para a aliança contra Hitler, Churchill respondeu com um largo sorriso de satisfação. Era assim mesmo uma reação surpreendente do principal líder conservador do mundo, que construiu sua carreira política como histórico adversário das esquerdas e, principalmente, dos bolchevistas. À noite, em um discurso especial no rádio pelo poderoso microfone da BBC, o bulldog britânico reforçou para o mundo:

Ninguém foi um oponente mais consistente do comunismo nos últimos vinte e cinco anos. Não direi nenhuma palavra do que falei sobre isso. Mas tudo isso se desvanece diante do espetáculo que agora se desenrola. O passado, com seus crimes, suas loucuras, suas tragédias, desaparece … O perigo russo é, portanto, nosso perigo, e o perigo dos Estados Unidos, assim como a causa de qualquer luta russa por um lar é a causa da liberdade de homens e povos livres em todos os quadrantes do globo.

Churchill não repetiu no rádio o que dissera a Colville, logo após ser informado do início da grande invasão. Com o bom-humor que o caracterizava, reforçando a gravidade histórica do momento, o primeiro-ministro inglês confidenciou ao seu discreto secretário privado:

— Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns![8]

Winston Churchill, Pedro Simon e o demônio: um ‘favorável’, outro ‘apoiador crítico’

Ao fazer essa declaração privada, Churchill tinha 66 anos — idade em que Simon, meio século depois, ainda completava a metade de seu segundo mandato de senador. Naquele momento, mais do que suas idiossincrasias ideológicas, o líder do Reino Unido mostrava a aguda percepção e a grandeza histórica que o elevaram à condição de maior britânico de todos os tempos, em eleição promovida em 2002 pela rede BBC – à frente de figuras notórias como a Princesa Diana, Charles Darwin, William Shakespeare, Isaac Newton, John Lennon e o almirante Horatio Nelson.[9]

Em julho de 1999, ano em que Simon concluiu seu segundo mandato de senador, o grupo RBS e o jornal Zero Hora fizeram uma pesquisa de 1,7 milhão de votos coletados em sete semanas, com 360 urnas espalhadas pelo Rio Grande do Sul, para descobrir quem eram os 20 gaúchos mais marcantes do Século 20, o mesmo de Churchill.

Simon não aparece entre os 50 mais votados por seus conterrâneos.[10]

Entre o Churchill de 1941, com sua calibrada simpatia pelo diabo, e o Simon de 2018, apoiador crítico do satânico capitão, existe mais do que a sutileza semântica e a diferença temporal de largos 77 anos. O governante britânico soube reconhecer com determinação, na dura circunstância histórica da guerra, quem era o verdadeiro demônio a ser exorcizado. O ex-senador brasileiro não soube discernir com clareza, na polarizada refrega de uma disputa acesa no cenário eleitoral, quem era o mefistofélico vetor da truculência e do autoritarismo.

A mira certeira de Churchill apontou ao mundo quem era o verdadeiro inimigo da liberdade: o ex-cabo Adolf Hitler. A míope adesão de Simon ajudou a camuflar a fantasia verde-oliva de quem era a real ameaça à democracia: o ex-capitão Jair Bolsonaro.

Num país de poucas referências éticas e raros paradigmas morais, a desastrada declaração de Pedro Simon, às vésperas de uma incerta disputa eleitoral, funcionou como um crime de lesa-memória, ou lesa-pátria, por dissimular o genuíno abismo que se abria no plano da democracia com a eleição de um livre atirador de convicções fascistas, de ideário regressista e promessas extremistas, agravadas pela congênita ignorância e pelo rombudo negacionismo que amplificaram a dor e as mortes na mais grave crise sanitária da história.

Simon conhecia a folha corrida de Bolsonaro, o que o impedia de conceder seu louvado apoio. O veterano comandante do MDB tem a experiência política para analisar, com a frieza da idade e a sabedoria da vida, o crítico desempenho do capitão na trágica metade de seu mandato. Assim, a surpreendente, abjeta declaração eleitoral de Simon, antes do segundo turno de 2018, ficou reduzida ao apoio, sem qualquer valor crítico, o que rebaixa e deprime a biografia do senador no ocaso de sua carreira pública, no estertor de seus 91 anos de vida, comemorados em 31 de janeiro passado.

O bobalhão mascarado na praça

Pedro Simon, que era exemplo de conduta e atitude para jovens que o tinham como farol e linha reta na política, acabou descarrilando no tramo final de uma jornada que parecia segura e reta. De repente, como se fosse um Ricardo Salles qualquer, o sábio senador abriu a sólida porteira de ética de sua vida pública e deixou passar, num atropelo, a boiada da truculência desatinada de uma tropa sem freios e sem juízo que segue, bovinamente, o berrante de seu messias. O apoio crítico de Simon podava, a partir dali, o receio de quem ainda tinha um certo constrangimento, um pudico recato em declarar seu voto num capitão tão rugoso, tão áspero, tão achavascado. Com a porteira da ética escancarada, Simon, ostentando o flamante distintivo de sua pregressa autoridade moral, abriu passagem para a boiada da estupidez bolsonarista.

Nada retrata melhor o estágio de apodrecimento da política bolsonarizada do Rio Grande do Sul do que um fato público e deprimente ocorrido em Porto Alegre, no feriado de quarta-feira, 21 de abril, Dia de Tiradentes. Uma passeata a favor do presidente Bolsonaro acontecia, como de hábito, na avenida Goethe, no Parque Moinhos de Vento, bairro de alta classe média.

De repente, entre as pessoas fantasiadas de verde-e-amarelo, com as tradicionais faixas pedindo golpe de Estado e a exótica ‘intervenção cívico-militar com Bolsonaro’, apareceu algo diferente, em tom marrom: um imbecil coberto com uma capa e um capuz em forma de cone e duas aberturas para os olhos. Se a cor fosse branca, seria um perfeito exemplar da Ku Klux Klan, o grupo de supremacistas brancos surgido no sul dos Estados Unidos, logo após o final da Guerra Civil, em 1865, com seu discurso de ódio, cruzes em fogo, linchamentos de negros, enforcados e pendurados em árvores, e persistente pregação fascista.

Essa horda de celerados chegou ao pico da agitação, nos Estados Unidos, logo após a Primeira Guerra Mundial e antes da Grande Depressão, no período de 1920-1925, arrebanhando multidões ensandecidas de até 4 milhões de fanáticos. Pois um ridículo herdeiro deles, nesse feriado de Tiradentes, estava lá, no endereço mais tradicional do bolsonarismo de raiz da capital gaúcha. Armado de um microfone, o exótico exemplar do racismo importado, carinhosamente tratado pelos manifestantes como ‘Carrasco’, bradava na praça do Moinhos de Vento: “O que nós viemos fazer aqui, gente? Viemos acabar com o comunismo… Alguém quer o comunismo aqui ainda? ”. E os bolsonaristas, divertindo-se com a cena patética, respondiam num coro desafinado: “Nãããããooooo!”. Em volta do mascarado, nas árvores da praça, pendiam bonecos enforcados. Negros, claro.

Ninguém da civilizada e branca sociedade de Porto Alegre mostrou pública indignação ou revolta com essa exibição pública de estupidez – nem mesmo o ex-senador Pedro Simon. Os únicos a reclamar foram cinco negros – os vereadores Bruna Rodrigues e Daiana dos Santos (do PCdoB), Karen Santos e Matheus Gomes (do PSOL) e Reginete Bispo (do PT) –, integrantes da bancada afrodescendente da Câmara Municipal de Porto Alegre, que na sexta-feira, 23, registraram um boletim de ocorrência contra os organizadores da manifestação na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância.

Porto Alegre: um imbecil, fantasiado de Ku Klux Klan, replica o racismo made in USA, com a marca da SS nazista

O grau de erosão ética da política no sul do país, como em outras capitais e Estados brasileiros, pode ser constatado pela naturalidade com que um bobalhão, fantasiado com a roupa exótica de um movimento estrangeiro, racista e radical, aparece numa praça tradicional de Porto Alegre e faz livremente, sem qualquer contestação, sua pregação de ódio, agora mais preocupado com os comunistas do que com os negros. A brandura com que se recebe tais manifestações de estupidez dá uma boa medida do grau de letargia ou apatia com que a sociedade, cada vez mais inerte ou cúmplice, acata o que antes era repelido com nojo e indignação.

Só isso explica a sonolência da política gaúcha para a manifestação da cúpula do MDB, em Osório, admitindo como ‘OK’ ter bolsonaristas entre os filiados do MDB, legenda que lutou contra a ditadura defendida por Bolsonaro. Uma derramada desfaçatez que começou lá em novembro de 2018, com a cínica declaração de Pedro Simon em apoio ao capitão da truculência, hoje impávido e galhofeiro, insano e frio diante da morte massiva de 400 mil brasileiros.

A afinidade perturbadora

Nesse sanatório geral em que internaram à força o Brasil e seu povo, é importante notar as semelhanças e diferenças que existem entre as cidades de Osório, em abril de 2021, e Wannsee, em janeiro de 1942.

Osório, no litoral gaúcho, é conhecida como a ‘Cidade das Lagoas’, coração de uma rede de 23 lagoas, muitas delas interligadas, e a ‘Cidade dos Bons Ventos’. São eles que amenizam o calor da primavera, compensando o termômetro elevado mesmo em abril.

Wannsee, 20 km a sudoeste da capital alemã, Berlim, se derrama placidamente sobre dois lagos, alimentados pelo rio Havel, com um centro de diversões aquáticas e uma das praias internas mais extensas da Europa. As diversões ali se congelam em janeiro, o mês mais frio do ano, quando a temperatura chega à média de 3 graus negativos.

A Osório de 2021 é, portanto, bastante diferente da Wannsee de 1942. Na cidade gaúcha, em 10 de abril, três próceres políticos, com as vestes despojadas do clima quente, gastaram quatro horas de uma conversa relaxada e franca, animada por um almoço, para carimbar como simples “tática eleitoral” a submissão de um grande partido, de história e tradição, a um aventureiro de visão militarista e credo de extrema-direita na luta pelo supremo cargo de presidente da República.

Na Wannsee de 1942, um número cinco vezes maior, todos homens, com roupas grossas e capas pesadas para enfrentar o frio, se reuniram de forma mais breve e acelerada numa grande mansão de três andares, uma villa, às margens do Grosser Wannsee, o lago maior do distrito. Em vez dos arrastados 240 minutos da quente Osório, o grupo da gélida Wannsee resolveu e discutiu suas questões em contados 90 minutos daquele sinistro 20 de janeiro de 1942 .

O mentor do encontro era o tenente-general Reinhard Heydrich, chefe do temido RSHA, o Escritório Central de Segurança do Reich, que controlava a Gestapo. Ele convocou os 14 homens que seriam os principais responsáveis pela organização, transporte, logística e execução da chamada ‘Solução Final’, o nome elegante e dissimulado que aqueles executivos da morte davam para a eliminação física dos judeus da Europa.

Havia ali sete militares, todos integrantes da SS, e oito civis com formação de doutorado. Apesar disso, eram todos – como se gaba o capitão Bolsonaro – especialistas em matar.                                             

A villa do Lago Wannsee: 15 homens dão o seu apoio crítico à ‘Solução Final’ do Holocausto do Reich de Hitler

Heydrich convocou para secretário da Conferência de Wannsee um metódico tenente-coronel da SS que tinha um especial talento para burocracia: Adolf Eichmann, o oficial assustadoramente normal que impressionaria Hannah Arendt duas décadas depois no julgamento de Jerusalém. A reunião, de fato, teve o objetivo de unificar todos os departamentos do Reich numa política integrada de extermínio, que já acontecia na prática. Eram executivos tratando friamente, como o inverno que açoitava a villa do lado de fora, um plano pan-europeu de genocídio. Ao final do encontro, definidos os princípios técnicos necessários para o extermínio, Heydrich deu a Eichmann as instruções sobre o que deveria constar da ata da conferência: nada verbal, nada explícito. “Certas conversas e jargões em excesso tiveram de ser traduzidas por mim em linguagem de escritório”, reconheceu Eichmann, burocraticamente, no tribunal de Jerusalém.

A intenção implícita da conferência convocada por Heydrich era garantir que, pela simples presença em Wannsee, todos os presentes do mecanismo de morte do Reich fossem cúmplices e acessórios dos assassinatos que estavam prestes a acontecer. Quando encerrou o encontro, satisfeito com o consenso macabro atingido sem maiores discussões, Heydrich relaxou – e se aqueceu com um conhaque.

Existem flagrantes diferenças na época, no clima, na temperatura, na duração, no número de participantes e nos objetivos das reuniões da brasileira Osório e da germânica Wannsee, distantes 11 mil km uma da outra e separadas por quase 80 anos no tempo.

Mas, existe uma única, uma gritante, uma perturbadora afinidade entre a longa conversa de quatro horas dos três chefes do MDB sulista e o rápido encontro de 90 minutos dos 15 comandantes da cúpula de execução do III Reich. Em Osório e em Wannsee, por razões diversas, por motivos diferentes, por circunstâncias muito singulares, sobrevoou o local e seus participantes o espectro assustador que Hannah Arendt detectou em Jerusalém: a banalidade do mal.

Na paz, como na guerra, alguns homens lidam com as causas e os efeitos de suas decisões anestesiados para as consequências éticas e morais que tornam a humanidade melhor ou pior. Por erro de julgamento, por equívoco acidental ou por deliberada intenção, atos e fatos marcam para sempre o destino de pessoas, de grupos, de corporações, de Estados e de povos inteiros, definindo a marcha da História.

Nesse processo, o homem sempre perde o passo quando sucumbe à banalidade do mal.

E compromete sua humanidade quando é corroído, por dentro, pelo mal da banalidade.

*Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é gaúcho de Caxias do Sul, como Pedro Simon, e nunca apoiou Jair Bolsonaro.
cunha.luizclaudio@gmail.com

 

REFERÊNCIAS

[1] ARENDT, Hanna. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. . Nova York: Viking Press, Penguin Group, 1963, p. 276.

[2] SIMON, Pedro. “Não se anistia o nazismo. Nem a tortura”. O Globo. Opinião, p. 2. Publicado em 28 de abril de 2010. https://www.oabrj.org.br/noticias/artigo-nao-se-anistia-nazismo-nem-tortura-pedro-simon. Acesso em 26/4/2021.

[3] BONA GARCIA, João Carlos. “Bona Garcia, fundador do MDB-RS, lamenta apoio a Bolsonaro e abre voto em Haddad”. Entrevista a Luís Eduardo Gomes. Publicado no site SUL21, em 15/outubro/2018. https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2018/10/bona-garcia-fundador-do-mdb-rs-lamenta-apoio-a-bolsonaro-e-abre-voto-em-haddad/ Acesso em 31/03/2021.

[4] BRUM TORRES, João Carlos. “Por apoiar Bolsonaro, MDB-RS perde um filiado histórico”. In Coluna de Rosane de Oliveira. Publicado em Zero Hora, 16/outubro/2018. https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2018/10/por-apoiar-bolsonaro-mdb-rs-perde-um-filiado-historico-cjnc3yi0d05is01pirxu4i98c.html Acesso em 31/03/2021.

[5] DUARTE, José Bacchieri. A fascinante história de Pedro Simon: Sua vida. Seu tempo. “Ode ao Campeão”, p. 13-15. Porto Alegre: Ed. AGE, 2001.

[6] PIGNOTTI, Darío. “Un testimonio en el caso Goulart”. Publicado no jornal Pagina 12, em 13 de dezembro de 2013. https://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-235550-2013-12-13.html. Acesso em 21/01/2021.

[7] CLAUSEWITZ, Carl Phillip von (1780-1831). A campanha de 1812 na Rússia e as Guerras de Libertação de 1813-1815 (Der feldzug 1812 in Russland und die befreiungskriege von 1813-15), p.52. Berlim: Ed. F. Dümmler, 1906.    

[8] ZIMMERMAN, Dwight Jon. “Churchill’s Deal with the Devil: the Anglo-Soviet Agreement of 1941. Publicado no Defense Media Network, em 12 de julho de 2011. https://www.defensemedianetwork.com/stories/churchills-deal-with-the-devil/. Acesso em 23/04/2021.

[9]BBC News, em 21 de agosto de 2002. 100 Great British heroes. Publicado em ordem alfabética em  http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/2208671.stm. A lista em ordem numérica está publicada em https://en.wikipedia.org/wiki/100_Greatest_Britons.  Acessos em 15/04/2021.

[10] Entre os 20 mais votados, nomes conhecidos como os dos ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart, o poeta Mário Quintana, o escritor Érico Veríssimo, os cantores Teixeirinha e Elis Regina, a Miss Universo Ieda Maria Vargas e o compositor Lupicínio Rodrigues. Entre os 50 mais citados, aparecem Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, os jogadores Tesourinha e Everaldo, o escritor Barão de Itararé e a apresentadora Xuxa.  In “Lista dos 20 gaúchos que marcaram o século XX, segundo o jornal Zero Hora”. Publicado https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_vinte_ga%C3%BAchos_que_marcaram_o_s%C3%A9culo_XX_segundo_o_jornal_Zero_Hora. Acesso em 15/04/2021.

A morte quase obscura de um líder exemplar no país do capitão cafajeste

Luiz Cláudio Cunha*                                                               

A notícia, incompleta, saiu quase escondida na edição impressa de quarta-feira, 13 de janeiro de 2021, do maior jornal brasileiro. “Morre Alencar Furtado, ex-deputado cassado pela ditadura”, informou secamente a Folha de S.Paulo, numa única coluna de 30 linhas e 144 palavras, espremidas no canto inferior da sétima página do primeiro caderno, distante da honra da primeira página do dia.

As duas manchetes principais da A7 foram dedicadas a um candidato azarão de nome irrelevante na disputa pela Câmara dos Deputados e a uma nova investida da Lava Jato sobre propinas ao filho de um ex-ministro.

A “nossa pátria mãe tão distraída”, como acusa o verso de Chico Buarque em Vai Passar, não se apercebeu que, na madrugada de segunda-feira, 11, morria simplesmente um dos gigantes da política brasileira e da luta contra a ditadura. Não era apenas um “ex-deputado cassado”, que morria de insuficiência renal aos 95 anos, em sua casa em Brasília, onde se recuperava de um AVC (acidente vascular cerebral) sofrido pouco depois do Natal.

Alencar era muito mais do que isso: na condição de líder do MDB na Câmara dos Deputados, foi o último dos 4.682 cassados pelo regime militar de 1964, o 173º parlamentar castigado pelo AI-5 no espaço de 13 anos. Foi a 36ª cassação do Governo Ernesto Geisel, o derradeiro ato punitivo do quarto general-presidente, em 30 de junho de 1977, antecipando-se à linha-dura militar irritada pela histórica aparição de Alencar três dias antes em rede nacional de TV, tocando num tema sensível para o aparato repressivo do regime: a tortura e o desaparecimento de presos políticos.

O fim irrisório de um gigante: Alencar morre, quase oculto, em 30 linhas de uma remota página interna

O MDB havia descoberto uma brecha na lei restritiva da ditadura que permitia um único programa de 40 minutos, gravado, em rede nacional obrigatória de TV para debate de assuntos partidários. Quando o regime percebeu a manobra, tentou sustar no TSE, mas a Justiça Eleitoral garantiu a sua realização. Para aproveitar bem aquela nesga de luz nas telas censuradas da TV dos brasileiros, o MDB escalou seus quatro principais comandantes. Na transmissão, o presidente, deputado Ulysses Guimarães, condenou o AI-5. O líder no Senado, Franco Montoro, centrou fogo no alto custo de vida. O presidente do Instituto Pedroso Horta, deputado Alceu Collares, criticou o arrocho salarial. O líder na Câmara, Alencar Furtado, por fim, avançou corajosamente na delicada questão dos direitos humanos, produzindo uma das peças mais contundentes, líricas, inesquecíveis da história política brasileira.

Na noite de segunda-feira, 27 de junho, com a voz eloquente de advogado curtido em mais de 400 juris populares e a expressão seca de um rosto marcado desde criança pelo sol inclemente do semiárido cearense, Alencar despontou no horário nobre da TV, antes do Jornal Nacional, dizendo o indizível, atacando o inatacável, eternizado nesse trecho:

Sempre defendemos os direitos humanos. Hoje, menos do que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, prisões injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana, para que não haja lares em prantos, filhos órfãos de pais vivos — quem sabe? — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez.

 

Uma rua, dois cassados

Os profissionais de sangue e tortura dos DOI-CODI, que em seus porões de trabalho produziam aqueles órfãos, quem sabe?, e aquelas viúvas, talvez, detestaram a imprevista tirada poética de Alencar. No dia seguinte, 28, perguntado sobre o programa, o chefe do SNI, general Joao Baptista Figueiredo, respondeu: “Vi. Não gostei e acho que ninguém gostou.” Mas, nem o SNI que o general comandava se incomodou muito. No texto da Apreciação Sumária Nº 25, que o Serviço Nacional de Informações distribuiu a Geisel e aos principais gabinetes do Planalto na manhã de quarta-feira, 29, dois dias após a transmissão da TV, o programa do MDB foi citado superficialmente e a lancinante intervenção de Alencar acabou resumida em treze palavras irrisórias.[1] Quem acreditasse no SNI poderia, talvez, imaginar até que Alencar poderia se safar, quem sabe.

Apesar do descuido do araponga, o destino do líder do MDB já não dependia de um talvez, mas de quem sabia. Na tarde daquela quarta-feira, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, telefonou para o secretário-geral do MDB, deputado Thales Ramalho, para confirmar o que se previa: “Thales, vamos ter reação”. Pediu que contasse apenas a Ulysses, mas fora do prédio do Congresso, indício claro de que o lugar deveria estar grampeado pelo SNI. Mais tarde, no seu apartamento, Thales antecipou a informação ao presidente do MDB.  “Vamos ter a cassação do Alencar”. Ulysses devolveu com outra pergunta, que denunciava os temores que sobrevoavam Brasília nas últimas horas: “Só do Alencar?”.[2]

A boataria dizia que uma dezena de oposicionistas, incluindo todos os quatro participantes do programa, seriam punidos. O alvo central era o líder da Câmara, que além de invadir o terreno proibido dos órfãos e viúvas, tinha pronunciado em seu mandato cerca de 40 discursos da tribuna com denúncias de torturas e críticas à política econômica do governo. Várias vezes, Alencar cobrou em seus discursos o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso em janeiro de 1971 pela Aeronáutica, no Rio de Janeiro, torturado e morto no DOI-CODI carioca e até hoje desaparecido.

O ministro do Exército, Sylvio Frota, como Figueiredo, também viu e não gostou do MDB na TV. Na manhã de quinta-feira, 30, Frota mandou o telegrama 665 aos quartéis dizendo ter informado a Geisel sobre a repercussão negativa do programa, que ele classificava como “uma ação comunista para atacar os brios das Forças Armadas”.[3] O Planalto previa que a cassação do líder mais aguerrido da oposição teria repercussão internacional, e seria um abalo ainda maior se fosse punido também o presidente nacional do MDB. No último momento, Geisel tirou Ulysses da mira e trocou sua iminente cassação por um processo na justiça eleitoral, como responsável pelo programa.

O procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, requisitou as fitas gravadas pela TV e abriu o inquérito naquele mesmo dia. Tempos depois, Ulysses foi absolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O líder do MDB na Assembleia paulista, Alberto Goldman, explicou anos mais tarde ao jornal O Estado de S.Paulo a súbita contenção de Geisel: “Ulysses só não foi cassado por seu histórico, porque sua figura tinha mais respaldo. Ele vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo, acusador. Geisel usou a cassação porque precisava enfrentar os militares radicais e mostrar que não era mole”.

A violência do AI-5 excluiu da vida pública brasileira mais do que um parlamentar duro. José Alencar Furtado era um predestinado ao combate. “Nasci no Araripe, cidade pequenina lá do Ceará. Minha cidade só tem uma rua. Mas tinha dois cassados da época da ditadura, eu e o Miguel Arraes”, contou ele.[4]

Hoje com 20 mil habitantes, Araripe, no extremo sul cearense, quase fronteira com Pernambuco, era ainda menor em 1925, quando Alencar nasceu. O menino Arraes, seu conterrâneo, nove anos mais velho, saiu da cidade ainda adolescente para concluir o ginásio numa cidade próxima e maior, Crato. Os dois não se conheceram na terra natal, mas a História sangrou seus destinos pela mesma lâmina afiada da ditadura.

Miguel Arraes era o governador de Pernambuco em abril de 1964, quando foi derrubado e preso pelos militares. Na sexta-feira, 10 de abril, um dia antes da ‘eleição’ presidencial do chefe do golpe, general Castello Branco, o Comando Supremo da Revolução divulgou o primeiro listão de cassados pelo regime militar. Eram exatos 100 nomes, uma lista aberta pelo líder comunista Luís Carlos Prestes e pelo ex-presidente João Goulart, além de 40 deputados federais. O ex-governador Leonel Brizola ocupava o 10° posto no índex.

Assim, na linha caprichosa do tempo, os dois garotos de Araripe, curtidos pela vida do sertão, cinzelados pela disputa política e castigados pelo regime militar, acabariam abrindo e fechando o ciclo punitivo que define o arbítrio do golpe de 1964. Arraes era o 4º nome da primeira lista de 100 cassações. E Alencar acabou sendo, em 30 de junho de 1977, aos 51 anos, o último punido da longa relação de 4.682 cassados em 13 anos de ditadura.

Arraes e Alencar, os filhos de Araripe: o pioneiro da primeira lista e o último cassado pela ditadura

Quase um terço dos cassados, 1.261, eram das Forças Armadas. Já no sábado, 24 horas após o listão dos 100 primeiros, o tacape do golpe caiu sobre 122 militares legalistas que apoiavam Goulart: 77 do Exército, 31 da Aeronáutica, 14 da Marinha. No domingo, outros 62 decapitados, mais da metade deles militares.

O general cristão

A rajada de punições da ditadura era ampla, geral e irrestrita. Mais de 300 professores, quase 500 legisladores sagrados pelo voto popular – de deputados federais a estaduais, de senadores a vereadores, além de 50 chefes de Executivo, de governadores a prefeitos. Três ex-presidentes – Jango, Jânio e Juscelino – e três ministros do Supremo Tribunal Federal.

A guilhotina era democrática. Decepou diplomatas, agrônomos, procuradores, carteiros, desembargadores, motoristas, sindicalistas, escrivães, policiais, promotores públicos, juízes, taifeiros, engenheiros, telegrafistas, médicos, guardas-civis, estivadores, eletricistas, ferroviários, advogados, jornalistas, bancários, dentistas, músicos, guardas-florestais, fiscais do Imposto de Renda, serventes, auditores militares. Até garçons e porteiros! Na vesga ótica militar deviam ser grave ameaça à segurança nacional e, por isso, foram degolados na fúria revolucionária.

A lógica estúpida dos militares se sustentava na arrogância incontestável do arbítrio. Ela está expressa no primeiro ato institucional, editado pelo Comando da Revolução em 9 de abril de 1964, no alvorecer da ditadura. Nem número tinha, o que acabou depois sendo necessário pelos 17 atos e 104 atos complementares decretados em sequência até 1969, tentando dar uma fachada legal ao processo de violência institucional do golpe.

O AI-1, que 48 horas depois levou ao pioneiro listão da centena de cassados, estabelecia na sua introdução, para eliminar qualquer dúvida sobre a origem e os limites de seu inexcedível poder:

[…]A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. […]. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

 

No penúltimo de seus 11 autossuficientes artigos, o AI-1 firmado pelos chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica determina, para tranquilidade geral da nação: “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. ”

Treze anos depois, em junho de 1977, Alencar Furtado seria o último cidadão do país punido sem qualquer apreciação da Justiça.

A nova ordem ‘revolucionária’ se bastava e não se submetia a ninguém. Tudo fazia e nunca se justificava. Em seu depoimento à Comissão da Verdade, em 2014, Alencar deu a dimensão desse estado de truculência ao lembrar a história do engenheiro Virgildásio de Senna, que tinha assumido a prefeitura de Salvador pelo PTB em abril de 1963. No abril seguinte, foi atropelado sem sutilezas pelo golpe de 1964.

No dia 5 de abril, um domingo, o prefeito da capital baiana foi almoçar com amigos. Ao voltar no início da noite para casa, no bairro do Campo Grande, encontrou a rua cercada por tropas do Exército, escoltadas por dois canhões de campanha e holofotes enormes. Ele perguntou a uma pessoa o que estava acontecendo: “Estão prendendo o prefeito”, disse o morador, sem reconhecer o prefeito ao seu lado.  Virgildásio evitou a casa sitiada e procurou logo a maior autoridade do Exército na Bahia, o general Mendes Pereira, comandante da IV Região Militar. Ali mesmo, no quartel da Mouraria, o general deu voz de prisão ao prefeito, com uma explicação surreal: “Você está preso porque somos cristãos! ”.

O general Mendes Pereira justifica a prisão do prefeito Virgildásio e dos ‘comunistas’: “Somos cristãos!”

 Alencar lembrou à Comisão Nacional da Verdade que Virgildásio foi preso, cassado pelo AI-1 e solto dias depois. Pouco antes de liberar o prefeito, um porta-voz do comando militar ocupou o microfone de uma rádio de Salvador para esclarecer os fatos, sem maiores explicações ou qualquer justificativa, com a crueza típica e arrogante daqueles novos tempos: “O prefeito Virgildásio de Senna foi preso porque tinha que ser preso. E agora vai ser solto porque tem que ser solto. Boa noite!”.

Ao longo da ditadura, as cassações se distribuíram de forma desigual.

O provisório Comando Supremo da Revolução, no exíguo espaço de 15 dias que separou o golpe da posse do primeiro general-presidente, cassou 280 pessoas, mais de 18 a cada 24 horas. Castello Branco, o primeiro general-presidente, fez a faxina mais ampla, cassando 2.927 pessoas. O segundo presidente, Costa e Silva, decepou 631 nomes da vida pública.

A Junta Militar de 1969 — formada pelos três ministros militares, que reinou sobre o país por apenas dois meses, em setembro e outubro, logo após a trombose cerebral que tirou Costa e Silva do poder — cassou nesse curto espaço de tempo 205 pessoas, uma média de 3,4 punições por dia. O terceiro presidente, Emílio Médici, o mais sanguinário do período militar, usou o AI-5 por 603 vezes. O quarto presidente, Ernesto Geisel, abrandado pela faxina punitiva mais extensa de seus antecessores, cassou 36 vezes, encerrando a série de violência revolucionária com Alencar Furtado.

A matemática do arbítrio

Essa inédita contabilidade sobre a violência ‘revolucionária’ começou a ser feita em São Paulo no início de 1977, por um trio emérito de intelectuais: os jornalistas Mylton Severiano da Silva (o Myltainho) e Hamilton Almeida Filho (o HAF) e o historiador Joel Rufino dos Santos, que resolveram contar, literalmente, a saga dos cassados no Brasil.  Com a ajuda da pesquisadora Beth Costa e uma equipe de quatro pessoas, foi folheada toda a coleção do Diário Oficial, página por página, desde março de 1964 até a cassação de Alencar. Foram quase três mil cópias xerox, coladas em 680 páginas, com a matemática da violência revolucionário sobre 4.682 pessoas.

De início, o levantamento se destinava a um livro, que teria o título de Os Cassados. Mas acabou formatado para uma revista de oposição em São Paulo, a Extra – Realidade Brasileira. Antes que fosse publicada, porém, a ditadura impôs censura prévia à publicação. Decididos a não aceitar a intervenção dos militares, os seus editores desistiram da reportagem sobre os cassados e preferiram fechar a revista. E o material coletado em São Paulo, para sobreviver, acabou tomando o rumo inesperado de Porto Alegre.

Alencar na manchete e na matéria principal do CooJORNAL: o último dos cassados em 13 anos de ditadura

A reportagem inédita de quatro páginas, com a foto de Alencar Furtado na capa, foi a manchete do mensário gaúcho CooJORNAL em julho de 1977, com grande repercussão nacional, pois o número de 4.862 cassados era muito superior ao que se sabia até então.

O jornal da imprensa alternativa era editado em Porto Alegre pela primeira cooperativa de jornalistas do país. Fundada em 1974, a CooJORNAL cresceu e, três anos depois, era integrada por mais de 300 jornalistas vivendo a utopia de uma imprensa sem patrão e sem hierarquia, respirando o ar limpo e democrático do cooperativismo na atmosfera rarefeita e sufocante da ditadura.

Aquela edição do CooJORNAL com Alencar Furtado na capa vendeu 34 mil exemplares, a maior vendagem de sua história. Sofreu então a primeira ação ostensiva da ditadura, incomodada com a crescente relevância do pequeno jornal de Porto Alegre, que ganhava destaque entre os títulos mais conhecidos da chamada ‘imprensa nanica’ – um influente nicho de jornais de esquerda, oposicionistas, insurretos, onde brilhavam publicações semanais ou mensais do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho e o irreverente O Pasquim, um abusado semanário carioca que se multiplicou com até 200 mil exemplares nas bancas.

Inquieta com o atrevimento do CooJORNAL, a ditadura apelou para a violência camuflada, envergonhada, mas sempre letal: mandou os agentes da Polícia Federal cumprirem uma discreta agenda de visitas aos assustados anunciantes do jornal, pressionando as empresas a cancelar os poucos anúncios que sustentavam as edições sempre ousadas do CooJORNAL.

Os militares mostravam um azedume cada vez maior com a pauta criativa do jornal, que recontava episódios da história recente brasileira, dava voz aos dissidentes do regime, replicava textos de intelectuais de esquerda e ouvia personagens execrados pela ditadura, muitos deles membros ilustres da lista dos 4.862 cassados pelo arbítrio.

O mau humor dos generais pode ser resumido pelo trecho da Informação Confidencial Nº 031 da Agência Central do SNI, de 19 de agosto de 1980, três anos após a cassação de Alencar Furtado. O redator do SNI se lamuriava, no relatório, daquilo que era o exato motivo de orgulho para os associados da cooperativa:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional.

Isso é o Brasil, gente!

Os bastidores da bombástica reportagem do Coojornal mostravam o medo endêmico que permeava o país, em meados de 1977, penúltimo ano de Geisel no Planalto. Naqueles tempos sem internet, e-mail ou celular, a remessa de matérias ou filmes fotográficos de uma cidade para outra era feita de forma quase artesanal, um pouco amadora, sempre voluntária.

Um repórter procurava aleatoriamente um passageiro no aeroporto, com destino à sede do jornal ou revista, e pedia o favor de levar em mãos um envelope lacrado com o material, que seria entregue no aeroporto de destino para alguém destacado pela publicação. O passageiro dizia seu nome e fones de contato, para evitar desencontros, e o repórter no aeroporto de origem passava pelo telefone os dados do portador, dando seu nome e descrição física, como o traje que vestia, para que fosse melhor identificado na fila do desembarque, no saguão do aeroporto de destino.

Bones, o editor, Myltainho, Hamilton e Rufino, que revelaram os 4.682 cassados: esse era o Brasil da ditadura

Era um arranjo que funcionava, quase sempre, dando agilidade e segurança para o envio de material. O que podia atrapalhar era a sensação de perigo e o temor que, eventualmente, poderiam intimidar o portador, em matérias politicamente mais sensíveis. Foi o que aconteceu e quase impediu a manchete dos cassados no Coojornal, como relatou com precisão o seu editor, jornalista Elmar Bones, na carta aos leitores do número 18 do mensário, de julho de 1977:

Encomendamos a reportagem a três colegas de São Paulo que já tinham um levantamento amplo sobre o assunto. Um levantamento, pelo que sabemos, ainda não feito no país. Durante dois dias eles trabalharam sem parar. Na segunda-feira, 4, as seis horas da manhã o repórter Hamilton Almeida Filho saiu direto da máquina para o aeroporto de Congonhas. […] No voo das 8h30 da Cruzeiro, Hamilton localizou um cidadão de maneira afáveis, simpático. Era um funcionário do Ministério da Fazenda que, prontamente, aceitou trazer o envelope.

No aeroporto de Porto Alegre, era outro o homem. Nervoso, gaguejando, travou o seguinte diálogo com a pessoa que foi apanhar o envelope:

— Olha, me desculpe, eu derramei cafezinho no material, ficou inutilizado.

— Não, mas o senhor pode me dar assim mesmo. Deve dar para ler, a gente arruma…

—Mas ficou imprestável, joguei fora…

— Isso é um absurdo, como é que o senhor fez isso? O senhor sabia o que tinha no envelope? Era uma reportagem.

A esta altura o homem mudou o tom de voz e explicou:

— Aconteceu o seguinte: abri o envelope e li o que tinha dentro. Aquele assunto…. Eu sou um funcionário do governo, não podia desembarcar com aquilo. Tinha autoridades me esperando, não posso me comprometer…. Eu destruí o material. Você deve compreender a minha situação.

Tremia o homem e não havia como reclamar dele. A solução foi esperar uma cópia providencialmente guardada em São Paulo e, desta vez, remetida pelas vias normais. Ao saber do fato, inédito em sua carreira de 15 anos de jornalismo, Hamilton exclamava do outro lado da linha:

— Isso é o Brasil, minha gente!

Esse era o Brasil, gente, e tudo aquilo aconteceu antes que Alencar Furtado fosse o personagem central na primeira página do Coojornal.  O Brasil do medo era produto, também, das trapaças e embustes engendrados pelos agentes da repressão. Uma armadilha dessas levou à cassação do deputado federal Marcos Tito, do MDB mineiro, o penúltimo punido pelo AI-5, duas semanas antes de Alencar Furtado. Em 24 de maio de 1977, Tito subiu à tribuna da Câmara para fazer um duro discurso contra a ditadura. Dias depois, o deputado Sinval Boaventura, da ARENA mineira, arauto da linha-dura militar, denunciou que Tito havia, de fato, lido um manifesto do clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em 14 de junho, três semanas após seu discurso, Tito foi cassado.

A armadilha da Aeronáutica

Ele não foi vítima de um dedo-duro, mas alvo deliberado de uma maligna farsa do serviço secreto da Aeronáutica, o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica). A revelação foi feita 40 anos depois pelo repórter Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo, que entrevistou durante cinco horas, no Clube da Aeronáutica, no Rio, um anônimo coronel, codinome ‘Paulo Mário’, que trabalhou 28 anos no Núcleo do Serviço de Informações de Segurança, a contrainteligência da Aeronáutica.[5]

O CISA foi criado e chefiado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, a face mais radical da Força. Como major-aviador, em 1959, chefiou com outros militares a fracassada Revolta de Aragarças, contra o presidente Juscelino Kubitschek, quando Burnier planejava até bombardear os palácios do Catete e das Laranjeiras, no Rio.

Em carta ao presidente Geisel, o lendário brigadeiro Eduardo Gomes definiu Burnier assim: “Um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.   

Ulysses e Tito: o penúltimo cassado pelo ardil do CISA de Burnier, o ‘insano mental’ da FAB

 Tito agora era o alvo do CISA criado pela mente perversa de Burnier. “O deputado estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito”, justificou o agente ‘Paulo   Mário’ ao Estadão. “Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram ações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”. O ardil montado pelo CISA foi trivial. Agentes da Aeronáutica escolheram uma edição de abril de 1977 do jornal Voz Operária, órgão oficial do ilegal PCB, que era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

Aquela edição trazia um editorial do partido, que acusava o regime de usar o medo e o arbítrio como método de governo. O CISA manipulou o texto, suprimiu cinco dos seus 24 parágrafos, disfarçando a origem da manifestação, e mandou entregar o documento no gabinete do parlamentar no Congresso. O papel foi recebido por um assessor de Tito, que o repassou ao deputado. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. Ele caiu e leu. Acabou levando uma ferroada, cassado e posto na rua”, contou o coronel do CISA.

Duas semanas após a cassação de Tito, quem levou a ferroada foi Alencar Furtado, em 30 de junho, cassado pela manifestação na TV sobre os órfãos e viúvas do talvez e do quem sabe. Até chegar ao seu último ato político como parlamentar, com a dolorosa honra de ser o último dos 4.682 cassados do país, o líder do MDB foi muito além de um histórico, lírico discurso de denúncia sobre torturas e assassinatos da ditadura em rede nacional de TV.

Alencar Furtado foi figura crucial para a definição do perfil mais oposicionista do MDB e sua orientação política mais aguda, na luta mais aberta contra a ditadura e seu partido, a ARENA. Na primeira eleição em 1966, cerceado pela legislação restritiva dos militares, o MDB elegeu apenas sete das 23 cadeiras de senador em disputa. Na Câmara, conseguiu conquistar só 132 cadeiras de deputado federal entre as 409 vagas em disputa.

Na eleição seguinte, em 1970, o partido da oposição encolheu. Além das cassações anteriores e do endurecimento gerado pelo AI-5, o MDB convivia com o ufanismo oficial insuflado pelo tricampeonato da seleção do Brasil no México e a euforia nascente do ‘milagre econômico’ cozinhado pelo ministro Delfim Netto. Dessa vez, elegeu apenas seis senadores e conquistou somente 87 vagas na Câmara dos Deputados. A perda avassaladora de quase 50 cadeiras do MDB no Congresso, além da repressão e das regras eleitorais viciadas, foi atribuída aos 30% de votos brancos e nulos, expressão clara do desencanto e do protesto de um eleitorado descrente.

Combativo na juventude, Alencar Furtado integrou a Esquerda Democrática, dissidência da UDN nascida logo após a queda do Estado Novo, em 1945, que deu origem ao PSB, Partido Socialista Brasileiro, fundado no Ceará com a ajuda de Alencar.

Na década de 1950, seguindo a saga dos sertanejos, Alencar migrou do Nordeste para o Sul, fincando raízes em Paranavaí, no fértil norte do Paraná.  Lá se elegeu deputado federal na primeira eleição do MDB, em 1966, sagrado com 40 mil votos. Na disputa seguinte, em 1970, reelegeu-se com o apoio consagrador de 86 mil eleitores.

O bloco do MDB na rua

Em Brasília, o pequeno gigante de Araripe, com pouco mais de 1m65 de altura, deu força e veemência ao então burocrático MDB, que seguia a férrea, mas moderada liderança de Ulysses Guimarães. Alencar assumiu o protagonismo, na bancada emedebista de 87 deputados, de um grupo mais agressivo de 23 parlamentares que ganharam o justo carimbo de ‘Autênticos’. Centravam fogo na convocação de uma Constituinte, no fim da tortura, na volta dos exilados e na anistia aos presos políticos.  Ao lado dele estavam os nomes mais intensos e críticos da esquerda do MDB, como Marcos Freire (PE), Chico Pinto (BA), Fernando Lyra (PE), Lysâneas Maciel (RJ), Freitas Nobre (SP), Alceu Collares (RS), Jaison Barreto (SC), Amaury Muller (RS), Marcondes Gadelha (PB), Nadyr Rossetti (RS), Paes de Andrade (CE), Santilli Sobrinho (SP) e Marcos Tito (MG).

Foi de Alencar e seu grupo a ideia mobilizadora de uma anticandidatura presidencial, desafiando a ‘eleição’ de cartas marcadas do general Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1974. A ideia era percorrer o país para denunciar o paradoxo de uma eleição sem povo e a farsa de uma disputa sem adversário. O MDB, tangido pelos Autênticos de Alencar, iria sair do conforto dos gabinetes para sentir o clima irrespirável das ruas.

Na convenção do MDB que lançou o anticandidato, em setembro de 1973, Ulysses advertiu ao país:

[…] Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à Imprensa, ao Rádio, à Televisão, ao Teatro e ao Cinema. […]

 

A caravana do anticandidato percorreu então capitais e estados com sua bandeira de volta à democracia, eleições diretas, anistia e Constituinte. Os brasileiros form encorajados, daí, a ouvir a verdade sobre a ditadura.

Ulysses combinara com Alencar e os Autênticos que, momentos antes do início da sessão de eleição, ele renunciaria para dar mais força à denúncia da farsa. Mas, Ulysses não cumpriu o acordo e se manteve na falsa contenda até a proclamação do resultado na disputa no Colégio Eleitoral. Aí, como estava previsto, Geisel foi ‘eleito’ com 400 votos, contra 76 dados a Ulysses. Em protesto, Alencar e 20 deputados dos Autênticos presentes no Congresso se abstiveram, acusando no microfone o jogo da ditadura.

Ulysses encerrou seu perene discurso evocando os versos de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Ali, com as velas “paridas de sonho, aladas de esperança”, como disse o anticandidato, começou a longa navegação iniciada por Alencar e seus argonautas nas águas revoltas da ditadura.

O MDB perdeu na falsa eleição de janeiro, como se previa, mas dez meses depois ganhou de forma inesperada e estrondosa nas eleições reais e gerais de novembro de 1974. Elegeu 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, conquistou 165 das 364 vagas existentes na Câmara dos Deputados. Os 6 milhões de votos para senador em 1970 viraram mais de 14 milhões em 1974. Os votos para deputado no MDB subiram de 4,7 milhões em 70 para 11 milhões em 74, garantindo 44% das cadeiras da Câmara.

Quatro anos depois, na sucessão também indireta de Geisel em 1978, a força da ditadura ficou ainda menor. O candidato oficial, general João Figueiredo, derrotou o anticandidato do MDB, general Euler Bentes Monteiro, por apenas 89 votos. Foram 355 contra 266 para o anticandidato, que recebeu mais do que o triplo dos votos obtidos quatro anos antes por Ulysses. As velas dos Autênticos estavam aladas de esperança.

Baioneta não é voto!

Na campanha verdadeira das ruas, Ulysses assumiu a odisseia do confronto mais direto com a ditadura, como queriam os Autênticos de Alencar. Em seu momento mais homérico, na noite de 13 de maio de 1978, em campanha pelo candidato do MDB na Bahia, ele se deparou com os cães e soldados do governador arenista Roberto Santos. Uma tropa de 400 PMs cercava o local do comício, na praça Dois de Julho, em Salvador, bloqueando a passagem da comitiva do MDB, que incluía os senadores Tancredo Neves (MG) e Saturnino Braga (RJ).

O moderado Ulysses perdeu a paciência. De dedo em riste, rompeu o cordão militar, indiferente aos latidos e ameaças da repressão e, ali mesmo, resolveu fazer um discurso inesperado para a tropa que tentava contê-lo. Uma fala e um gesto do mais autêntico MDB que entraram para a história:

Soldados da minha pátria! Enquanto ouvíamos as vozes livres que aqui se pronunciaram, ouvíamos o ladrar dos cães lá fora! O ladrar, essa manifestação zoológica, é do arbítrio, do autoritarismo que haveremos de vencer. Meus amigos, foi uma violência estúpida, inútil e imbecil. Saibam que baioneta não é voto e cachorro não é urna!

A odisseia e a ira de Ulysses, na Bahia, com Tancredo e Saturnino: “Baioneta não é voto, cachorro não é urna! ”

Em 1982 aconteceu a primeira eleição direta para governador, desde 1960. A ousada navegação iniciada uma década antes pelos Autênticos de Alencar alcançou novos portos. Apesar do voto vinculado, truque da ditadura que obrigava o eleitor a votar em candidatos de um mesmo partido, a oposição conseguiu eleger dez governadores, nove pelo MDB e um pelo PDT nos 22 Estados em disputa. Assim, na primeira brecha que o eleitor teve para votar diretamente, os três maiores Estados do país sagraram nomes da oposição: São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves), ambos do MDB, e Rio de Janeiro (Leonel Brizola), do PDT.

Dois anos depois, a quimera dos Autênticos desaguou no maior oceano de povo da história política brasileira, a campanha das Diretas-Já, com milhões de pessoas nas avenidas e praças clamando pelo voto para presidente e pela Constituinte.  Em 1985, enfim, a ditadura acabou afogada nas águas rasas de seu porto seguro, o Colégio Eleitoral, onde emergiu o vitorioso da oposição, Tancredo Neves, o primeiro presidente que não era general desde 1964. Três anos mais tarde, para completar o sonho de Alencar e seus Autênticos, a Constituinte legou ao país a Constituição-Cidadã de 1988. O resto é história.

Ulysses: com Alencar (esq.), ondulando com o povo nas praças, navegando com milhões nas ruas das Diretas-Já

Alencar Furtado morreu em janeiro de 2021, quando se completava o segundo ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Por razões distintas, são as duas faces do que era o Brasil e do que o Brasil virou.

Um é admirável pelo exemplo, o outro é repulsivo pelo que faz e diz. Alencar dedicou a vida à luta pela democracia, à bandeira dos direitos humanos e pela defesa dos cidadãos. Bolsonaro empenha sua palavra na defesa da ditadura, no desrespeito a avanços civilizatórios e no ataque contumaz a princípios consagrados em sociedades democráticas. Alencar lembrava das viúvas, ‘quem sabe’, e dos órfãos, ‘talvez’, produzidos pela ditadura. Bolsonaro fala sempre em defesa dos agentes da repressão que torturaram, ‘certamente’, e que mataram, ‘com certeza’, maridos, mulheres e filhos, produzindo as viúvas e órfãos dos dissidentes caçados a ferro e fogo pelo aparato de guerra interna armado pelo regime militar.

Um especialista em matar

O apreço pela vida de Alencar e a atração pela morte de Bolsonaro é a primeira e mais forte distinção entre os dois. O capitão, com os seus polidos coturnos de psicopata, escancarou sua mente doentia em 2017 em Porto Alegre, quando já era candidato a presidente, confessando numa reunião com empresários: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”.

Três anos antes da aparição do Covid-19, ele já fazia sua opção preferencial pelo vírus em detrimento da vacina: “Minha especialidade é matar, não curar ninguém. Aprendi a atirar com tudo que é tipo de armas, sou paraquedista, sou mergulhador profissional. Sei fazer sabotagem, sei mexer com explosivos. Vocês [brasileiros] nos treinam, nos pagam para isso”.                                                    

Jair Bolsonaro: um especialista em matar, não em curar, e seus três Zeros, devotados às armas como o pai

Em maio de 1999, no Governo FHC, quando nem ele sonhava em ser presidente, Bolsonaro deu uma entrevista ao ‘Câmera Aberta’, da TV Bandeirantes, e arreganhou sua face genocida: “Através do voto você não muda nada neste país, nada…Só vai mudar, infelizmente, no dia em que nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro… e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com o FHC…. Matando! ”.

Vinte e dois anos depois, já presidente, o capitão coveiro realizou o seu sonho, legando ao país um vasto necrotério de mais de 270 mil mortes — nove vezes mais do que o total que ele sonhava para a ditadura dos seus devaneios.

O necrófago Governo Bolsonaro conseguiu, com sua incompetência e negacionismo endêmicos, superar a marca fúnebre dos outros dois governantes que, no passado, registravam as duas maiores mortandades da história brasileira.

O imperador Dom Pedro II (1825-1891) amargou na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado na história da América do Sul, um número de mortos que oscila em torno de 50 mil brasileiros.

Prudente de Morais (1841-1902), o terceiro presidente da República recém proclamada, mobilizou o Exército para enfrentar em 1896 a rebelião messiânica que o beato Antônio Conselheiro liderou por 11 meses no vilarejo de Canudos, no interior mais pobre da Bahia, que só acabou com o massacre de 25 mil pessoas – incluindo a degola de velhos, mulheres e crianças.

Jair Bolsonaro, o 38º presidente da República — o pior presidente de nossa história, quem sabe, o mais estúpido governante do planeta, talvez —, não mexeu literalmente um único dedo enquanto o registro de vítimas chegava à marca de 270.917 mortes em 11 de março de 2021, exatamente um ano depois que a OMS classificou a Covid-19 como uma pandemia mundial. A primeira morte de Covid no Brasil aconteceu em 16 de março de 2020, em São Paulo. Apenas três meses depois, na última semana de junho, o país alcançou num único trimestre o mesmo número de baixas que teve em cinco anos e três meses do Século 19 na Guerra do Paraguai, a mais longa e sangrenta do continente: 50 mil mortos, uma letalidade só possível pela inação, teimosia e negacionismo do estúpido Bolsonaro.

Durante todo esse tempo, o que o capitão-presidente fez, de forma doentia e mórbida, foi debochar da doença, escarnecer dos doentes, desdenhar os mortos, desconhecer a ciência e desacreditar os médicos e profissionais da saúde.

Lágrimas na tela e um cafajeste

O país se habituou às emoções derramadas nas telas de TV por profissionais treinados, pelo ofício, no relato de tragédias e desastres do cotidiano. Mas, os dramas humanos e a angústia sufocante imposta pela rotina do Covid-19 romperam as comportas de emoção de rostos familiares aos brasileiros. Em momentos distintos, em programas variados, veteranos repórteres, apresentadores, âncoras e correspondentes se debulharam em lágrimas irreprimíveis, como nos casos de Natuza Nery (GloboNews), Guga Chacra (correspondente da Globo em Nova York), Fátima Bernardes (Rede Globo), Flávio Fachel (Globo/Rio) e Ilze Scamparini (correspondente da Globo em Roma). Solidários e fragilizados, todos eles choraram, com o recato possível, diante das câmeras de TV no Rio, em São Paulo, nos Estados Unidos, na Itália, vertendo as lágrimas que dão humanismo e sentimento ao jornalismo.

Antes que algum filho Zero de Bolsonaro faça alguma piadinha cretina sobre isso, insinuando que deve ser tudo chororô produzido pela Rede Globo, é conveniente lembrar que a dor é um sentimento que perpassa o ser humano, e não fica restrito aos estúdios de TV. Mais gente, mundo afora, para espanto do debochado clã Bolsonaro, também chora pelos mortos e louva a vida.

Assim, na TV, foi possível também testemunhar a emoção genuína e a dor comovente de gente chorando, sem controle, como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, a repórter Sara Sidner da CNN na Califórnia, o ator espanhol Miguel Herrán (que faz o personagem ‘Rio’ na série Casa de Papel ), o governador da Bahia Rui Costa e muitos, milhares, milhões de profissionais da saúde no mundo todo que combatem, ganham e perdem todos os dias a guerra exaustiva, infindável contra o Covid-19.

Enquanto isso, o divertido capitão Jair Bolsonaro ri, debocha, zomba e escancara sua alegria esquizofrênica diante de uma nação angustiada pela doença, esmagada pela dor, aflita pela cura, desorientada pela falta de empatia de um presidente desequilibrado

O capitão no seu hilário, cômico, irresistível, desopilante país de 275 mil mortos e 11 milhões de doentes

Por tudo o que faz e, principalmente pelo que não faz, Bolsonaro merece todos os adjetivos degradantes que definem sua personalidade necrófila, de desprezo pela vida, de raciocínio tosco, de comportamento abrutalhado, de pensamento demente.

Jair Bolsonaro é um viúvo de civilização, quem sabe?, e um órfão de humanidade, talvez. No momento mais macabro de sua história, o Brasil precisa enfrentar o desafio quase insuperável da pandemia convivendo com um governante patético no Palácio do Planalto.

Sua imagem de um esquizofrênico sorridente, em meio a tanta tristeza, é o retrato acabado de um cafajeste no poder.

O Brasil do admirável Alencar Furtado não merece a figura asquerosa de Jair Bolsonaro.

 

* Luiz Cláudio Cunha, jornalista, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com 

 

 REFERÊNCIAS

[1] Apreciação Sumária nº 25, do SNI, de 29 de junho de 1977. In Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, 2004, p. 426.

[2] Depoimento de Thales Ramalho a Gaspari, op. cit., p. 427.

[3] Telegrama 665/Ministério do Exército, de 30 de junho de 1977. Arquivo Golbery do Couto e Silva. In Gaspari, op. cit., p. 428.

[4] Depoimento de 1h26 de Alencar Furtado à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 19/setembro/2014, na condição de vítima civil da ditadura.

[5] Marcelo Godoy. ‘O complô para cassar o deputado’. O Estado de S. Paulo, 8/dezembro/2018.

Motivação divide especialistas

Por Tiago Lobo

A puberdade masculina dá os seus primeiros sinais entre os 9 e 14 anos: os testículos aumentam, pelos começam a surgir pelo corpo, a voz engrossa e a produção de testosterona (o hormônio masculino) faz com que o sistema reprodutivo, ossos e músculos amadureçam. E também pode mexer com o cérebro.

O consenso na comunidade científica internacional é que o hormônio possui um efeito facilitador sobre a agressão, mas não age sozinho. Presos violentos, por exemplo, possuem níveis mais altos de testosterona que seus pares mais dóceis.

“Pelo o que podemos dizer até agora, a testosterona é gerada para preparar o organismo para responder a competição e/ou desafios à situação de alguém”, explica Frank McAndrew, professor de psicologia no Knox College em Galesburg, Illinois, Estados Unidos, em entrevista a Scientific American Brasil.

“Qualquer estímulo ou evento que sinaliza uma dessas coisas pode desencadear uma elevação nos níveis do hormônio”, relata o professor.

Exposição a violência afeta habilidades sociais

Augusto Buchweitz, pesquisador do Instituto do Cérebro do RS (InsCer) da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), analisou como a exposição à violência afeta o cérebro de adolescentes por meio de neuroimagens (imagens do cérebro). A pesquisa da sua equipe, publicada na revista científica internacional Developmental Science, aplicou um questionário para adolescentes de escolas de Porto Alegre, algumas situadas em bairros com os maiores índices de violência da capital.

Os jovens tinham o cérebro monitorado por imagem enquanto deviam decidir o estado mental de pessoas vistas em fotos onde apenas os olhos eram mostrados. As áreas que envolvem a percepção e a cognição social (a parte da sociabilidade) eram menos ativadas em jovens que tinham um histórico de maior exposição à violência. Nestes jovens, ao mesmo tempo, a conectividade da amígdala (conhecida como o “centro do medo” do cérebro) foi maior. Os níveis de cortisol, medidos por amostras de cabelo, também eram mais elevados nos jovens mais expostos à violência.  

O estudo sugere que a violência pode afetar várias sub-habilidades importantes para a convivência em sociedade, como a empatia.

“Não se pode dizer se isso vai ter efeitos futuros, mas estudos mostram que este tipo de funcionamento atípico pode aumentar o risco para transtornos de humor, por exemplo”, explica o pesquisador em entrevista ao site da PUCRS.

Agora imagine um espaço na internet criado exclusivamente para estimular jovens recém-saídos da puberdade a cometer atentados e propagar o ódio. E imagine se estes jovens forem virgens e vítimas de bullying. O efeito tem se mostrado desastroso.

Receita perigosa

Famílias disfuncionais, má influência, busca de fama e poder: essa é uma receita perigosa (mas não definitiva) segundo os estudos do psicólogo Peter Langman, pesquisador do Centro Nacional de Avaliação de Ameaças do Serviço Secreto dos Estados Unidos e autor do livro “Why Kids Kill: Inside the Minds of School Shooters” (“Por que jovens matam: por dentro das mentes de atiradores em escolas”), que vem dedicando boa parte da vida ao estudo do tema.

O psicólogo Peter Langman dedica boa parte da vida a estudar tiroteios em massa (Foto: arquivo pessoal)

Ele mantém o site School Shooters, que agrega uma base de dados com 150 casos reportados em 10 países desde 1913. São eles: Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, Escócia, E.U.A., Finlandia, França, Suécia e Ukrânia. O site também oferece recomendações para prevenir ataques.
No artigo Rampage school shooters: A typology (“Atiradores de escolas: uma tipologia”), de 2009, Langman analisou 10 casos e classificou estes jovens em três tipos: traumatizados, psicóticos e psicopatas.

Da amostragem analisada três eram traumatizados, cinco psicóticos e dois psicopatas.

Os três atiradores traumatizados vieram de lares desfeitos com abuso de substâncias e comportamento criminoso pelos pais. Todos foram fisicamente abusados ​​e dois foram abusados ​​sexualmente fora de casa.

Os cinco atiradores psicóticos tinham transtornos do espectro da esquizofrenia, incluindo esquizofrenia e transtorno de personalidade esquizotípica. Todos eles vieram de famílias intactas, sem histórico de abuso.

Os dois atiradores psicopatas não foram abusados ​​nem eram psicóticos. Eles demonstraram narcisismo, falta de empatia, falta de consciência e comportamento sádico.

Apesar de ajudar a compreender um pouco a mente dos atiradores, estes perfis estão muito longe de servirem como base para identificar possíveis novos autores, visto que  “a maioria das pessoas traumatizadas, psicóticas e psicopatas não cometem assassinato”, segundo Langman enfatiza.

Ele indica que 82% dos autores desses atentados cresceram em “famílias disfuncionais” e que um “desejo de fama” ou de “se sentir masculino e poderoso” costuma ser a motivação.

Para caracterizar uma “família disfuncional”, ele cita fatores como ausência dos pais, infidelidade, divórcio, dependência química, comportamento criminoso, violência doméstica e abuso infantil.

Langman explica o que ao se juntarem a fóruns online que debatem assassinatos em massa, jovens que se sentem deslocados conquistam um grupo e se unem a uma subcultura na qual podem se sentir especiais, diferentes e superiores à sociedade dominante.

“Quanto mais sentem que não são ninguém / nada, mais são levados a se sentirem poderosos por meio de ideologias de superioridade e ódio”, disse ao repórter.

Para Langman, existem alguns mitos a serem superados: a conexão entre atiradores como vítimas de bullying é imprecisa.

“Não que isso nunca seja verdade, mas seu significado foi muito exagerado”, declarou o pesquisador ao site Monitor on Psychology.

A ideia de que apenas adolescentes solitários cometem estes crimes também merece atenção: Langman encontrou atiradores entre 11 e 62 anos em suas pesquisas, sendo a maioria deles adultos. Muitos atiradores de escolas não estão isolados: diferente da maioria dos casos brasileiros.

Langman revela que meninas podem, sim, puxar o gatilho. Mesmo que isso seja menos comum: com base em uma análise dentro de um período de 50 anos de casos documentados, 95,3% dos atiradores eram homens e 4,7% eram mulheres.

A maioria dos atiradores não possui alvo específico. Dos 48 analisados no livro de Langman, “School Shootters” (“Atiradores de Escola”, ainda inédito no Brasil), apenas um visou um desafeto. Quando existe um alvo, na maioria das vezes, eles são funcionários da escola, professores e administradores. Os próximos alvos mais comuns são meninas.

As motivações para perpetrar um tiroteio em massa formam uma rede complexa e de mapeamento intrincado: “entre os adolescentes, pode ser que um garoto tenha terminado um namoro na mesma época em que é suspenso da escola, em que recebe uma multa de trânsito ou é preso por alguma coisa, mais ou menos na mesma época em que tem problemas em casa ou não”. Langman explica que uma sucessão de “fracassos”, falhas ou retrocessos acontecendo com alguém que é psicopata, psicótico ou traumatizado, gera uma combinação de dinâmicas psicológicas e eventos de vida que colocam as pessoas em um caminho de violência. Entre os adultos, casamentos fracassados, fracassos ocupacionais e, principalmente, dificuldades financeiras são elementos críticos.

Outro dado importante: atiradores com menos de 20 anos geralmente têm algum tipo de influência externa, seja alguém recrutando-os para participar de um ataque ou de um “modelo”.

“Eu encontrei pelo menos uma dúzia de atiradores que foram atraídos por Hitler e os nazistas. Também poderia ser um modelo fictício: o filme “Assassinos Naturais” foi citado por vários atiradores”. Trata-se de um filme policial satírico de 1994 dirigido por Oliver Stone, com roteiro de Quentin Tarantino. 

Um relatório publicado em 2004, pelo Serviço Secreto dos E.U.A. em parceria com o Departamento de Educação norte-americano, revisou 37 casos envolvendo 41 atiradores entre ataques e tentativas ocorridos em 26 estados de 1974 até 2000. O objetivo do documento “The Final Report and Findings of the Safe School Initiative” (Algo como “O relatório final e os resultados da Iniciativa Escola Segura”), que você pode acessar aqui (em inglês), era compreender o fenômeno e lançar propostas preventivas.

A conclusão do relatório vai de encontro com os resultados das pesquisas de Langman: não há um perfil psicológico ou demográfico característico dos atiradores em escolas. No entanto, o relatório sugere variáveis que podem ser identificadas na maioria dos casos.

As mais significativas são:

  • A dificuldade dos atiradores em lidar com perdas significativas e falhas pessoais
  • A manifestação de comportamentos anteriores que sinalizavam que eles precisavam de ajuda
  • O fato de terem sido ou serem vítimas de perseguições e humilhações de colegas.

Langman defende que idealmente as escolas e universidades deveriam contar com equipes de avaliação de ameaças, multidisciplinares, incluindo administração, corpo docente, forças policiais, saúde mental e, às vezes, representação legal. A principal tarefa dessas equipes seria investigar ameaças de violência e separar falsos alarmes de violência potencial ou iminente.

“Nada é simples aqui, mas os psicólogos estão na melhor posição para entrevistar e avaliar alguém, procurando por evidências de uma personalidade psicopata, questões psicóticas, histórico de trauma e para construir um relacionamento com essa pessoa para avaliá-los”, defende.

Influência do meio e família
A pesquisadora Eva Fjällström, da Luleå University of Technology, ao norte da Suécia, publicou um ensaio em 2007 onde defendeu que, em tiroteios em massa, as famílias não são “causas”, mas têm uma participação importante e determinada responsabilidade: “o que pode parecer ser um ato de loucura pode ser melhor entendido como resultante da ausência de orientação que leva a uma falta de estabilidade e segurança básicas. Amigos solidários e uma família solidária são essenciais para todos os indivíduos, especialmente adolescentes, e as conseqüências, se não houverem tais relações, podem, como vimos aqui, ser devastadoras”, conclui Fjällström .

A dupla Stephen Thompson e Ken Kyle, no artigo “Understanding mass school shootings: Links between personhood and power in the competitive school environment” (“Entendendo o tiroteio em massa nas escolas: ligações entre personalidade e poder no ambiente escolar competitivo”), publicado em 2005, acrescentaram um ponto de vista interessante a esta investigação. Segundo eles a preocupação não deve ser com o perfil psicológico dos atiradores, mas com os perfis dos meios onde os massacres ocorrem e como isso pode influenciar as respostas de estudantes despreparados para estes ambientes.

Outras pesquisas, como a de Gary e Alison Clabaugh, “Bad Apples or Sour Pickles? Fundamental Attribution Error and the Columbine Massacre” (“Maçãs podres ou picles azedo? Erro Fundamental de Atribuição e o Massacre de Columbine”), também de 2005, sugerem que quando psiquiatras e psicólogos a serviço Departamento Federal de Investigação dos E.U.A., o FBI, divulgam os supostos perfis psicológicos dos atiradores, acabam provocando ondas de discriminação e gerando mais tensão em escolas com alunos que passam a ser identificados como socialmente inaptos e assassinos em potencial.

Ódio às mulheres
No Brasil, a maioria dos atiradores odiavam mulheres.
De acordo com o estudo “Meta-Analyses of the Relationship Between Conformity to Masculine Norms and Mental Health-Related Outcomes” (“Meta-Análises da Relação entre a Conformidade com as Normas Masculinas e os Resultados Relacionados à Saúde Mental”, em tradução livre), da Universidade Estadual de Indiana, nos E.U.A, homens com comportamento playboy e que buscam poder sobre as mulheres são mais propensos a ter problemas psicológicos. A análise se ateve a 11 dimensões de masculinidade e reuniu dados de 78 estudos sobre saúde mental e percepções de masculinidade de 19.453 homens analisados.

“As normas masculinas de Playboy e “poder sobre as mulheres’ são as normas mais intimamente associadas a atitudes sexistas”, disse Joel Wong, líder da pesquisa.

“A associação robusta entre a conformidade com essas duas normas e resultados negativos relacionados à saúde mental ressalta a ideia de que o sexismo não é meramente uma injustiça social, mas também pode ter um efeito prejudicial na saúde mental daqueles que adotam tais atitudes.”

Ainda mais preocupante, disse Wong, era que os homens que se conformavam fortemente com as normas masculinas tinham mais probabilidade de ter problemas de saúde mental, mas também menores chances de procurar tratamento.

Simone de Beuvoir já dizia, em seu livro “O Segundo Sexo”, que “o masculino se impõe ao anular o outro (feminino)”. Ela segue atual.

Acompanhe as reportagens da série:

Bullying: um em cada dez estudantes é vítima

Por Tiago Lobo

O fenômeno sempre existiu mas não era estudado. Virou bode expiatório perfeito para achar motivos para “explicar” tiroteios em massa. Especialistas refutam a tese.

Um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2004 concluiu que o Bullying é um problema universal que afeta cerca de um terço de crianças por mês, em todo o mundo. Para cerca de 11% de crianças, este tipo de abuso, praticado pelos seus companheiros, é severo (várias vezes por mês).

No Brasil, um em cada dez estudantes é vítima segundo dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2015. A Lei nº 13.185, em vigor desde 2016, classifica o bullying como intimidação sistemática, quando há violência física ou psicológica em atos de humilhação ou discriminação e existe até uma data instituída por meio da Lei nº 13.277 para o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência nas Escolas, 7 de abril.

O Diagnóstico Participativo das Violências nas Escolas, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) em 2015, com apoio do MEC, revelou que 69,7% dos estudantes declaram ter presenciado alguma situação de violência dentro da escola. Isso fez com que o bullying fosse incluído na Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015: 7,4% dos estudantes informaram que já se sentiram ofendidos ou humilhados e 19,8% declararam que já praticaram alguma situação de intimidação, deboche ou ofensa contra algum de seus colegas.

A psicóloga e professora da Pós-Graduação em psicologia da PUCRS, Carolina Lisboa, pesquisa os processos de bullying, cyberbullying, desenvolvimento social e sócio-cognições em contextos virtuais. No estudo “O fenômeno bullying ou vitimização entre pares na atualidade: definições, formas de manifestação e possibilidades de intervenção”, publicado em parceria com os pesquisadores Luiza de Lima Braga e Guilherme Ebert, conclui-se que a participação contínua em episódios de bullying gera distorções nas concepções de emoções e desenvolvimento moral.

Lisboa define o fenômeno como um processo de vitimização entre pares: pelo qual uma criança ou adolescente é sistemática e repetidamente exposta a um conjunto de atos agressivos (diretos ou indiretos), que ocorrem sem motivação aparente, mas de forma intencional. Pode ser protagonizado por um ou mais agressores e é caracterizado pelo desequilíbrio de poder e ausência de reciprocidade. A vítima possui, geralmente, pouco ou quase nenhum recurso para se defender.

O estudo o avalia como um subtipo de comportamento agressivo que gera atos violentos e, na maioria das vezes, ocorre dentro das escolas. E emerge na interação social.

“Como está associado a um processo normativo de formação de identidade e exclusão dos diferentes (na individuação eu vou definindo quem sou a partir de quem não sou), sempre acontece bullying”, afirma Lisboa, ressaltando que não significa dizer que a prática é justificável. Para a pesquisadora o Bullying se mantém por conta do preconceito e juízo de valor agregado a um processo natural de formação de identidade pessoal, passando pelo grupo de iguais.

Os efeitos do bullying variam de acordo com cada vítima: “Uma pessoa pode sofrer bullying e não representar um trauma e pode sofrer um assalto e significar como trauma. Bullying e cyberbullying são violências gravíssimas com impactos negativos”, aponta Lisboa.

Ela explica que as implicações possíveis na saúde mental de crianças e adolescentes passam por baixa autoestima, baixa autoconfiança e autoeficácia, dificuldades de controle de emoções (especialmente de raiva), dificuldades acadêmicas, profissionais, insegurança, agressividade, isolamento, fobia social, uso de substâncias, depressão e ansiedade.

Quando pergunto se o bullying pode levar uma pessoa a cometer um tiroteio em massa Carolina Lisboa é categórica:
“Não vou chancelar essa ideia. Gostaria de deixar claro que não acredito nesta linha de raciocínio. Muitas variáveis influenciam nestas tragédias inclusive histórico de saúde mental pregresso, cultura entre outros. Uma coisa é o bullying e outra é a psicopatologia”.

Apesar de o ambiente escolar ser o palco de maior prevalência de bullying, o fenômeno ocorre em outros contextos, não se restringe a um determinado nível socioeconômico, tampouco a uma faixa etária específica ou gênero

A pesquisadora revela que o que mais aprendeu nos seus estudos é que agressores também sofrem e permanecem na violência com medo de que sejam vítimas no futuro. Eles ficam reféns em um ciclo, e podem não ter intenção de machucar e nem entender que estão machucando, visto que as pessoas têm diferentes níveis de empatia e alguns não são empáticos.

Para lidar com vítimas e agressores, a comunicação familiar é fundamental. Pais devem ir até a escola, estabelecer limites claros e criar oportunidades para favorecer diferentes habilidades que nutram a autoestima dos filhos, favorecendo relações do jovem fora da escola.

Agressividade sempre gera agressividade e somos influenciados por modelos, portanto, Lisboa sugere que “Ao invés de eleger culpados deveríamos pensar em uma cultura não agressiva e violenta em todas as escolas e na sociedade. Sem punições inadequadas e com valorização do amor, da alegria, da solidariedade”.
Acompanhe as reportagens da série:

Justiça suspende decreto de extinção da Zoobotânica

O desembargador Sergio Luiz Beck, da 1ª Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, determinou na quinta-feira, 18, a suspensão do Decreto Estadual nº 54.268/2018, que extinguiu Fundação Zoobotânica do RS e autorizou que o patrimônio material e imaterial do Museu de Ciências Naturais e do Jardim Botânico de Porto Alegre passassem a ser geridos pela Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMA).
A decisão atende pedido de tutela provisória de urgência, apresentado pelo Ministério Público, diante da decisão não unânime do agravo de instrumento julgado por aquela mesma Câmara Cível do TJ/RS.

Decisão do Tribunal de Justiça, em outubro, não foi unânime para autorizar a transferência da gestão do JB e do MCN para a SEMA/Foto Cleber Dioni

O magistrado considera que o decreto de extinção poderá representar o esvaziamento do objeto do recurso, com a extinção da FZB sem uma migração planejada, cautelosa e gradativa do acervo, funções e servidores para a SEMA.
Ante o exposto, concedo a tutela provisória para suspender os efeitos do Decreto Estadual nº 54.268/2018 até o julgamento final do agravo de instrumento nº 70078021409, a fim de que a transferência definitiva dos bens e dos servidores do JARDIM BOTÂNICO e do MUSEU DE CIÊNCIAS NATURAIS seja precedida de um plano para a extinção da FZB que garanta a plena continuidade e a mesma qualificação de todos os serviços e atividades do Jardim Botânico e do Museu de Ciências Naturais. Ainda, fixo multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais), que deverá incidir após 5 (cinco) dias úteis a contar da intimação, no caso de descumprimento, consolidando a multa no valor de R$500.000,00 (quinhentos mil reais), atentando-se para os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, face à condição econômica do Estado do Rio Grande do Sul, de modo a obrigar o cumprimento da presente decisão e, ainda, pelo desrespeito ao poder judiciário e o atentado ao meio ambiente, pela urgência da medida pretendida. Expeça-se mandado, com urgência, para cumprimento do determinado, por oficial de justiça desse Tribunal”, apontou o magistrado.

Clima de campanha eleitoral no ‘Caos Mauá’

Geraldo Hasse
Lembrando estar “no primeiro dia do terceiro mês do quarto ano do governo”, José Ivo Sartori assinou na manhã desta quinta-feira, 01/03, a ordem de início das obras de revitalização do Cais Mauá.
A cerimônia, mescla de evento empresarial e comício político, reuniu mais de 250 pessoas sob um toldo branco às margens do Guaíba, no Centro Histórico em Porto Alegre. “Este é um projeto de Estado, não de governo”, afirmou Sartori, após queixar-se de “alguns ranços” que, segundo ele, levam muitas pessoas a “puxar para trás”.
Por coincidência, no momento em que o governador falava, às 11h55m, um catamarã vindo de Guaíba saiu de sua rota habitual, no meio do canal de navegação, aproximou-se do cais e, em marcha lenta, soltou três prolongados buzinaços. Sorrindo diante da “surpresa”, Sartori abanou alegremente para o barco que, desde o final do governo Yeda Crusius (2007-2010), faz a linha Porto Alegre-Guaíba. Aparentemente casual, a cena foi aplaudida por parte do auditório, constituído por políticos, funcionários e empresários.
Antes de Sartori, que encerrou sua fala trocando sem querer a palavra “cais” por “caos”, parte do público também aplaudiu por duas vezes o discurso do prefeito Nelson Marchezan Júnior. Em tom veemente, ele verberou fortemente contra “os que travam a máquina pública por motivos ideológicos”, preferindo “focar nos seus eleitores e esquecendo a população em geral”.
Dirigindo-se aos investidores no projeto do Cais Mauá, Marchezan pediu desculpas “pela lerdeza da máquina pública” e lhes agradeceu “por não terem desistido”. E pediu que “não sejam lerdos como a máquina pública” – “pesada, atrasada, retrógrada”. Seu protesto era contra vereadores e deputados estaduais que lutam contra “as reformas necessárias”.
O deputado Pedro Westphalen, secretário dos Transportes, fez um pronunciamento extremamente ameno. “Este é um dia muito especial”, disse ele, lembrando que o atual governo “fez pouco” pela revitalização do “cartão-postal de Porto Alegre” porque está empenhado em outros projetos. Segundo Westphalen, a cerimônia no cais “encerra expectativas de 30 anos” e se configura como “uma obra coletiva” de diversas pessoas – foram citados os ex-prefeitos João Fogaça e José Fortunati e, especialmente, a equipe técnica liderada por Edemar Tutikian.
O empresário João Carlos Mansur, presidente do grupo Reag, que assumiu a gestão do projeto licitado em 2010 e desde então emperrado por demandas ambientais, problemas técnicos e questões políticas, usou várias vezes as palavras “orgulho” e “gratidão” para definir seu sentimento em relação ao que considera “um empreendimento nacional”.
A Reag, segundo Mansur, administra atualmente R$ 7 bilhões por meios de dezenas de fundos de investimentos. Em sua fala, Mansur deixou claro que o objetivo inicial é abrir o cais ao lazer da população. Após a ocupação pelo público, talvez já no Natal de 1919, serão iniciadas as grandes obras – um hotel e um centro comercial.

Criscio, diz que serão aplicados R$ 140 milhões na primeira fase / GH / JÁ

Como executivo do projeto, foi apresentado o consultor Vicente Criscio, que já trabalhou em contratos de reestruturação empresarial em Caxias do Sul e Porto Alegre. Numa tumultuada entrevista coletiva à imprensa, Criscio disse que a prioridade nos próximos dois anos é colocar em condições de frequência pública os armazéns A e B, situados ao lado do pórtico do Cais Mauá. Nesses primeiros movimentos, devem ser aplicados, segundo ele, R$ 140 milhões, incluindo desembolsos obrigatórios aos governos estadual e municipal. O investimento total é estimado em R$ 500 milhões.
Tanto Criscio como Mansur foram muito cumprimentados por empresários e políticos presentes ao evento no cais. “Eu quero assinar o primeiro alvará do primeiro concessionário do Cais Mauá”, disse o secretário do Planejamento de Porto Alegre, entregando um cartão de visita ao gestor do projeto de revitalização. Por esse gesto, entre outros, ficou claro que a administração municipal encara o Cais Mauá como um marco da iniciativa privada.

Obras
As obras começam no dia 5 de março. O projeto, sem investimento público, prevê 3,2 mil metros de orla com ciclovia, dez praças de lazer e mais de 11 mil metros quadrados de área verde, num espaço total de 181 mil metros quadrados de área revitalizada. Estima-se que gere 28,8 mil novos empregos diretos e indiretos.
O projeto terá três etapas. A primeira é a restauração de 11 armazéns do Cais (do A6, no extremo da Usina do Gasômetro, até o B3, próximo à rodoviária). Deve custar R$ 140 milhões.
A segunda fase, no setor Docas, prevê torres comerciais com serviço de hotelaria, centro de convenções e estacionamento e a recuperação da Praça Edgar Schneider. A última fase é a área do Gasômetro: um centro comercial.

Com escassez de soro, Estado conta com Zoobotânica para reduzir acidentes com cobras

Cleber Dioni Tentardini
A chegada da primavera neste final de setembro e o aumento da temperatura deixa as cobras mais ativas em busca de alimento e acasalamento. Naturalmente, aumenta o risco de acidentes com a população.
Diante do quadro limitado de soro antiofídico na rede hospitalar, o Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), da Secretaria de Saúde, quer desencadear uma campanha de prevenção aos acidentes e elaborar um diagnóstico que inclui a identificação das serpentes mais comuns nas regiões em que é alto o número de pessoas picadas.
Para produzir o diagnóstico vai contar com a ajuda dos especialistas da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.
O Estado está entre os dez estados brasileiros com maior número de acidentes com cobras. Em 2016, foram registradas 841 ocorrências, sendo que um paciente morreu.
O soro antiofídico é a única medicação capaz de neutralizar o veneno das serpentes, mas teve a produção reduzida pelos laboratórios. Essa escassez atinge vários países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A bióloga sanitarista Cynthia da Silveira é responsável no CEVS pelo controle e distribuição de soros antivenenos aos hospitais no Estado. Ela diz que depois de uma década coordenando o abastecimento dos soros, em 2013 viu os estoques reduzidos drasticamente, na medida em que os acidentes continuaram ocorrendo como antes.
Sua equipe, então, soou o alerta de que era preciso remanejar a distribuição dos medicamentos recebidos do Ministério da Saúde. “Priorizamos os hospitais referências nas 19 coordenadorias regionais do Estado. Em tese, são esses hospitais que recebem as ampolas com soros, mas há municípios em que há mais ocorrências, então são deixados estoques mínimos de soro também”, afirma.

A bióloga Cynthia da Silveira controla a distribuição de soros aos hospitais / Cleber Dioni / JÁ

Mas a bióloga sabe que essa readequação não é suficiente porque ao suprir um município com mais soros, vai deixar outros sem. E isso acontece com frequência.
O Centro de Informações Toxicológicas (CIT), do Estado, antes ligado à Fundação Estadual de Pesquisa em Saúde (FEEPS), agora um departamento do CEVS, deve participar das ações, embora existam alguns contratempos como a alta demanda pelos seus serviços de teleatendimento 24 horas e o quadro reduzido de funcionários do CIT.
Num primeiro momento, Cynthia convidou os biólogos Roberto Baptista de Oliveira e Acácia Winter, da FZB, para uma reunião. Tão logo o projeto for formatado pelos três, será apresentado ao secretário da Saúde para que marque uma reunião com o presidente da Zoobotânica.
Roberto é especialista em serpentes e Acácia tratadora de animais silvestres. Ambos trabalham no Núcleo de Ofiologia de Porto Alegre (NOPA), vinculado ao Museu de Ciências Naturais da FZB.
Canguçu e região têm mais ocorrências
Cynthia fez um mapa do Estado onde registrou a média do número de ampolas com soro antibotrópico usada no período de 2010 a 2016. Por aí, apontou onde ocorre o maior número de acidentes. E constatou que foram utilizadas 720 ampolas com soro antibotrópico por ano em municípios que estão na 2ª, 3ª e 4ª coordenadorias regionais.
Média de ampolas usadas nas 19 coordenadorias regionais indica locais com mais ocorrências / Reporodução

Municípios com mais ocorrências

Figuram municípios como Canguçu, Dom Feliciano, São Lourenço do Sul, Piratini, Caçapava do Sul, Cachoeira do Sul, Encruzilhada do Sul e Camaquã.
Pode-se presumir que ocorrem entre 60 e 180 acidentes. A classificação é leve, moderado e grave e determina o número de ampolas a ser usado.
Para um acidente com jararaca ou cruzeira considerado leve são usadas quatro ampolas. Lesão moderada exige oito ampolas, e grave, 12 ou mais ampolas de soro antibotrópico. Pelo protocolo o limite são 12, mas pode chegar a 20 ampolas, se não estancar a hemorragia que leva à morte.
Noroeste e Norte do Estado também registram alto índice de ocorrências. Naquelas cidades, foram usadas, em média, 500 ampolas com soros por ano, de 2010 a 2016.
Cada veneno de animal tem uma reação e, por isso, cada um tem seu soro específico. O soro antibotrópico é usado contra o veneno das jararacas e cruzeiras. Junto com as cascavéis, as três espécies são responsáveis por 90% dos acidentes no Rio Grande do Sul.
Cruzeira, do plantel do NOPA\Foto Mariano Pairet

Se o paciente busca atendimento e o médico não consegue identificar o animal que o picou, recorre ao 0800 do CIT, que vai passar orientações para o atendimento médico adequado.
 
 
 
O CIT orienta os exames necessários, o tipo e a quantidade de soro que o paciente precisa receber. Porque varia conforme a quantidade de veneno que o animal injetou e uma série de informações do paciente e da lesão.
Soro antibotrópico

Soro antiveneno da coral verdadeira, cuja lesão é considerada grave

 
 
 
 
 
 
 
 
“A gente precisa entender o que acontece naquelas localidades onde há um número tão grande de acidentes, se é o tipo de atividade agrícola, tipo de vegetação, microclima, e também quais as espécies de Bótropes predominam naquela região”, explica a bióloga. “Em São Lourenço, por exemplo, não há uma vegetação uniforme, o tipo de relevo, então precisamos saber exatamente onde está o problema para realizar ações de prevenção junto às comunidades”, completa.
A maioria das vítimas está na faixa etária produtiva, dos 19 aos 50 e poucos anos. Os acidentes normalmente acontecem no final do dia. Cynthia desconfia que é justamente nesse horário quando os agricultores estão voltando para casa, cansados e desatentos por onde passam. O animal prefere o entardecer pra sair em busca de alimento e ataca porque se sente ameaçado.
Cruzeiras, do plantel do NOPA\Foto Mariano Pairet

Nos municípios da Campanha, onde também há muitos animais peçonhentos, há poucos acidentes porque geralmente as pessoas andam protegidas com botas de couro e, em certos locais, usam até caneleiras que vão até o joelho.
“Quero que a Zoobotânica me aponte quais as espécies que estão lá em Canguçu e arredores. Porque eu vou poder analisar também se o veneno de uma determinada espécie é mais potente que o das outras”, afirma.
HPS atende entre 4 e 5 pacientes por mês
Na área rural de Porto Alegre ocorrem mais acidentes com a jararaca pintada, que é uma das menores do gênero, mas muito agressiva.
Na capital, os atendimentos são concentrados no Hospital de Pronto Socorro, que dispõe hoje de 56 ampolas com soro antibotrópico. É suficiente para atender quatro pacientes com lesões consideradas graves.
O hospital atende, por mês, durante as estações mais quentes, primavera e verão, entre 4 e 5 vítimas. É preocupante se considerar que a Capital não possui atividade agrícola expressiva. No primeiro semestre do ano passado, foram atendidos 34 pacientes picados por serpentes.
Inchaço

Ação do veneno no braço

 
 
 
 
 
 
 
O HPS atende também os pacientes da Região Metropolitana, com exceção dos municípios de Novo Hamburgo e Montenegro, que também recebem os soros.
 
Agricultores estão mais vulneráveis, diz especialista
Para o biólogo Roberto Baptista de Oliveira, é preciso fazer uma avaliação no local para dizer o que pode estar acontecendo naquela região. Pode ser o número muito grande de espécimes ou a diminuição dos predadores, entre os quais existem mamíferos como os gambás, aves, lagartos e cobras que se alimentam de outras.
“Na minha percepção à distância, acredito que o número elevado de acidentes pode estar associado a características das atividades humanas, ao uso do solo, o trabalho manual nas pequenas lavouras. A gente sabe que tem muita jararaca pintada ali, então provavelmente essa espécie esteja causando um grande número de acidentes. É uma espécie própria de afloramento rochoso, área de campo”, avalia o biólogo.
Roberto e as crianças encantadas com as serpentes em evento no Jardim Botânico / Cleber Dioni / JÁ

Em torno de 90% dos acidentes são causados por jararaca, jararaca-pintada e cruzeira. A jararacuçu, no RS, é restrita à região do Parque Estadual do Turvo, e são raros os acidentes.
As corais verdadeiras são muito abundantes em todo o Estado, mas os acidentes são raros, devido principalmente ao comportamento pouco agressivo da espécie; o padrão de coloração chamativo também pode ser um fator que colabora com o baixo número de acidentes, pois torna fácil sua visualização.
Coral verdadeira, no NOPA

“Agora é o momento ideal para realizarmos estudos nesses locais. Estão mais ativas para alimentação, termorregulação e reprodução. Os acasalamentos ocorrem principalmente neste período (final do inverno e primavera), e os nascimentos ocorrem principalmente entre o verão e início do outono”, ressalta Oliveira.
No Estado ocorrem aproximadamente 80 espécies de serpentes. Dessas, quatro foram incluídas em alguma categoria de espécies da fauna ameaçadas de extinção no RS (Decreto Estadual No 51797 de 2014),: Apostolepis quirogai, na categoria “Em Perigo”, e Atractus thalesdelemai (cobra da terra), Bothrops jararacussu (Jararacuçu) e Hydrodynastes gigas (Boipevaçu), na categoria “Vulnerável”. Outras 12 espécies foram consideradas como “Dados Insuficientes” para avaliação.
Dez espécies são consideradas peçonhentas de importância médica: seis do gênero Bothrops (grupo das jararacas), uma do gênero Crotalus (cascavel) e três do gênero Micrurus (corais-verdadeiras).
Cascavel, do plantel do NOPA/ Foto Raul Carvalho/Ministério Público RS 

NOPA orienta equipes de saúde e segurança
A bióloga Acácia Winter ressalta a importância de capacitar o maior número possível de agentes de saúde para que possam repassar as informações às comunidades. Os servidores do NOPA regularmente oferecem treinamento de contenção, manejo e identificação de serpentes aos soldados da Brigada Militar e do Exército, bem como aos agentes de saúde e ambientais.
Acácia lembra que o Núcleo ainda acolhe serpentes capturadas e que não podem ser soltas na natureza novamente e conforme a demanda, fornece peçonha para pesquisas científicas nas faculdades.
Acácia com alunos de Biologia da Ufrgs / Mariano Pairet / Divulgação

Hoje, o NOPA é o único serpentário do Estado que realiza extração de peçonha. Mantém cerca de 350 cobras de 16 espécies, sendo oito peçonhentas. Há espécies que ocorrem somente no Rio Grande do Sul como a Jararaca-pintada (Bothrops pubescens). São encontradas ali, também, a cruzeira, a coral verdadeira, a cascavel, a jiboia, entre outras.
Servidora do NOPA extraindo veneno/Foto Mariano Pairet/Divulgação

O contrato com o Instituto Vital Brazil, (IVB), um dos quatro laboratórios responsáveis pela produção nacional de soro antiofídico, está suspenso desde janeiro deste ano. Assim como permanece fechada a área de visitação pública do serpentário.
Ainda em janeiro deste ano, falou–se na possibilidade de transferência do serpentário para IVB, que fica no Rio de Janeiro. Na época, o diretor científico do Vital Brazil, Rafael Cisne, disse que o Instituto tinha interesse em receber as serpentes do NOPA, mas dependia de recursos do Estado para efetuar a remoção dos animais. Mas, o impacto financeiro que essa transferência acarretaria aos cofres públicos deficitários do Rio inviabilizou o envio dos animais.
Em 2016, 841 pessoas foram picadas no Estado
O Rio Grande do Sul está entre os dez estados brasileiros com maior número de acidentes com cobras. Figuram como campeões os estados do Pará, Minas Gerais e Bahia.
Primeiros sintomas

Em 2016, foram notificados ao Ministério da Saúde 841 casos de acidentes com serpentes no Rio Grande do Sul, sendo que um paciente morreu. No Brasil, foram 26.244 casos e 116 óbitos. Em 2015, foram registrados 886 acidentes e um óbito em solo gaúcho, e 27.120 casos e 106 óbitos no país.
 
 
Acidentes com serpentes (Brasil)
Ano  2014 – 26.185
2015 – 27.120
2016 – 26.244
Acidentes com serpentes (RS)
Ano  2014 – 805
2015 – 886
2016 – 841
Os óbitos (BR)
Ano  2014 – 101
2015 – 106
2016 – 116
Os óbitos (RS)
Ano  2014 – 5
2015 – 1
2016 – 1
“Se não tiver soro, o mundo vem abaixo”
Impressiona a rede de saúde e logística montada para prestar atendimento às vítimas de picadas de cobras. A dor intensa e os efeitos visíveis provocados pelo veneno desse animal acabam mobilizando todos na sua volta.
A estratégia é de guerrilha. Cynthia tem planilhas atualizadas diariamente. Um banco de dados na internet tem que estar com as informações em dia. Hoje, ela sabe exatamente o estoque de ampolas que possui o Hospital de Santo Ângelo ou a Santa Casa de Misericórdia, de Santana do Livramento. Com a condição de que os estoques dessas instituições tenham sido atualizados.
A bióloga carrega um telefone celular só para atender as chamadas dos hospitais e não tem hora, às vezes ligam à meia-noite para saber onde há soro mais próximo de um determinado município.
Bióloga trabalha há 18 anos no CEVS / Cleber Dioni / JÁ

A rede está montada para atender de forma ágil. As primeiras três horas após a picada são imprescindíveis para neutralizar o veneno. Cynthia tem que saber onde estão as ampolas para mandar buscar o mais rápido possível. Se o paciente tem condições, o SAMU o leva até o hospital que possui a medicação, mas se está com quadro hemorrágico grave e não pode ser transferido, a prioridade, então, é que algum motorista leve o soro até onde ele está.
“Se um paciente chegar ao hospital e não tiver soro, o mundo vem abaixo. Porque ele pode morrer. Como as pessoas têm muito medo de cobras, quando acontece um acidente, isso gera uma comoção impressionante. Nos 18 anos em que trabalho nesse programa, nunca recebi um não para atender alguma ocorrência, seja a hora que for”, explica.
A bióloga narra situações que acontecem seguidamente: “Verão de 2017, oito horas da noite de um domingo, me ligam de Bagé. Estavam sem soro. Eu peguei minha planilha e vi que havia tantas ampolas lá. O problema é que eles não haviam registrado o uso e estavam sem a medicação. Liguei para o lugar mais próximo, em Pelotas, e disse que alguém teria que levar as ampolas para Bagé. Não daria para enviar por ônibus, era caso de emergência. Um motorista tem que ser liberado para ir buscar soro. Mas o funcionário era novo e ficou em dúvida porque implicaria no pagamento de horas extras. O motorista se prontificou na hora, buscou o carro e levou as ampolas”.
“Em Santo Ângelo, tivemos uma situação peculiar tempos atrás, onde foram atendidos num só dia seis pacientes picados”.
“Um jovem agricultor de 32 anos foi picado, em questão de meia hora já estava recebendo todo o atendimento adequado, mas foi ao óbito porque tinha uma gastrite e não conseguiram reverter o quadro hemorrágico”.
CIT é referência em emergências há 41 anos
O Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT/RS) completou 41 anos em agosto como a principal referência no Estado para auxiliar profissionais de saúde em caso de intoxicações dos pacientes e orientar a população sobre os primeiros socorros e na prevenção de acidentes.
Unidade de telemedicina atende 24 horas, nos sete dias da semana / Cleber Dioni / JÁ

O CIT funciona através de um sistema informatizado de atendimento, feito por 21 pessoas que se revezam nos plantões. Trabalham ali universitários de semestres avançados, como estagiários, e profissionais das áreas da medicina, veterinária, biologia e farmácia. É o que chamam de uma unidade de telemedicina, que atende em regime de plantão 24 horas, nos sete dias da semana, através do seu 0800.721.3000.
Até 2016, o Centro era vinculado à Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS), extinta pelo governo estadual. Hoje, é ligado ao Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), da Secretaria da Saúde. Está com quadro de funcionários bem reduzido, 21 funcionários, embora cresça a cada ano a demanda por seus serviços.
O secretário adjunto da SES e diretor do Departamento de Assistência Hospitalar e Ambulatorial (DAHA), Francisco Zancan Paz, ressalta que o CIT mantém em estoque permanentemente amostras de soros necessários para o tratamento de intoxicações por todo tipo de picada de animais peçonhentos encontrados no Estado.
“Temos condições de, em uma hora, disponibilizar o soro indicado para qualquer parte do Estado, desde que cumpridos os protocolos pois face a pequena capacidade de produção de soros no país, tem sido necessário manter-se um rigoroso controle de estoque, para evitar situação de desabastecimento. Mas as utilizações de soro nos hospitais polos são rapidamente repostas”, afirma.
Paz destaca ainda a importância de o CIT realizar campanhas de prevenção, nas regiões com mais ocorrências do Estado, principalmente com a chegada dos meses mais quentes.
A bióloga Kátia Moura, servidora há 17 anos no Centro, afirma que os casos mais comuns envolvem intoxicações por medicamentos, animais e plantas.
Kátia com a aranha marrom, venenosa / Cleber Dioni / JÁ

Por se tratar sempre de atendimento de emergência médica, através de ligação gratuita, o Centro acaba recebendo demandas de todo o país.
 
 
“Seguidamente recebemos ligações de outras regiões do Brasil e até de países da América Latina como Uruguai e Argentina porque os profissionais da saúde buscam atendimento em um 0800 e, se não conseguem, já tentam outro até receberem as orientações que precisam”, explica Kátia.
Entre as principais vítimas de intoxicações estão crianças com idade abaixo de cinco anos. Os acidentes nesta faixa etária ocorrem normalmente dentro de casa e com produtos químicos de uso frequente como medicamentos, limpadores, desinfetantes, solventes, detergentes, produtos de higiene e cosméticos.
Bióloga mostra um exemplar do plantel de animais peçonhentos do CIT / Cleber Dioni / JÁ

O CIT mantém ainda um pequeno plantel de animais peçonhentos, entre aranhas, escorpiões e serpentes, mas não extrai mais veneno, que era doado às universidades. Além de passar orientações, realiza análises laboratoriais e de diagnósticos para tratamento das exposições tóxicas.
Além do telefone 0800, a página na internet do CIT (http://www.cit.rs.gov.br/) contém muitas informações úteis.
Para evitar acidentes com animais peçonhentos
Material usado para prevenção de acidentes

Medidas Preventivas:
Usar botas de borracha (até o joelho), ou botinas com perneiras ao andar no campo ou mata;
Usar luvas de raspa de couro e/ou abrigo com mangas longas nas atividades de jardinagem. Manter jardins e quintais limpos. Limpar terrenos baldios próximos das residências. Evitar folhagens densas junto a paredes e muros de casas. Usar graveto, enxada ou gancho ao mexer em lenha, buracos, folhas secas, troncos ocos;
Rebocar paredes para que não apresentem rachaduras ou frestas;
Vedar soleiras de portas com rolos de areia ou rodos de borracha. Colocar telas nos ralos das pias ou tanques;
Consertar rodapés soltos;
Colocar telas nas janelas;
Evitar o contato com lagartas urticantes. Observar a presença de folhas roídas, fezes ou pupas no solo.
Primeiros socorros:
Lave o local da picada com água e sabão;
Mantenha a vítima sentada ou deitada para não favorecer a circulação do veneno. Se a picada for na perna ou no braço, mantenha-os em posição mais elevada;
Leve a vítima ao serviço de saúde mais próximo para que possa receber atendimento;
Se possível, fazer registro fotográfico da cobra causadora do acidente, para que seja feito o tratamento adequado;
Ligue para o CIT/RS – 0800 721 3000.
O que não fazer?
Não fazer torniquete ou garrote, não colocar substâncias no local da picada (café, fumo, folhas, urina etc), não cortar ou queimar o local da picada, não sugar o veneno, não ingerir bebidas alcoólicas ou outras substâncias. Atenção: só o soro cura a picada de cobra.
O soro não é vendido. Ele só pode ser aplicado em hospitais. Em caso de acidente na região de Porto Alegre, deve-se procurar o Hospital de Pronto Socorro (HPS), pelo telefone 192 ou, em qualquer parte do Estado, o Centro de Informação Toxicológica (CIT), pelo telefone 0800-721 3000.
Não matar as cobras
Além de serem animais silvestres protegidos por lei, as cobras são predadores e presas, responsáveis pelo controle populacional de outros animais (ratos, por exemplo). O veneno é usado para fabricar medicamentos, entre eles o tratamento para picada de serpentes e remédio para pressão alta. No Rio Grande do Sul, estão ameaçadas de extinção a jararacussu, a cotiara e a surucucu do Pantanal.
Ministério da Saúde tem estoque limitado de soros antiofídicos
Há quatro laboratórios conveniados com o Ministério da Saúde, que produzem os nove tipos de antivenenos, incluindo os cinco tipos de soro antiofídico: o Instituto Butantan (SP), Instituto Vital Brazil (RJ), a Fundação Ezequiel Dias (MG) e o Centro de Produção e Pesquisa de Imunobiológicos (PR).
Produção de soros no Instituto Butantan / Divulgação

O Ministério requisita anualmente um número determinado de ampolas com soros, que será distribuído para todo o Brasil. O contrato em vigor neste ano de 2017 prevê a entrega de 495.500 ampolas de antivenenos. Destas, 360.500 ampolas correspondem aos soros para os acidentes com serpentes. Esse estoque dá para atender cerca de 30 mil acidentes, considerando a utilização de, no máximo, 12 ampolas para cada paciente, procedimento padrão em ocorrências com certa gravidade.
As solicitações são realizadas mensalmente pelos estados, exceto em situações especiais quando poderão ser solicitadas remessas extras.
Para o Rio Grande do Sul, em 2016 foram enviadas 8.600 ampolas de antivenenos, sendo 6.300 de antiofídicos. Em 2017, até o momento, já foram enviadas 5.630 ampolas, sendo 4.395 ampolas de antivenenos de cobras.
Problema no abastecimento começou em 2013
O problema no abastecimento começou em 2013. O Ministério da Saúde avisou que iria ter uma escassez de soro com o argumento de que a Anvisa havia determinado uma reorganização nos laboratórios produtores para atender a um manual de boas práticas, conforme ficou acertado em reunião da OPAS – Organização Pan-americana de Saúde.
Soro antiofídico anticrotálico

“Antes, todos os hospitais no Estado, independente de registrar ou não acidentes com cobras, tinham no mínimo 12 ampolas de soro em seu estoque. Mas tivemos que centralizar em função da falta de soro, diz Cynthia, do CEVS gaúcho.
OMS alerta para escassez global de antídotos 
Cada vez menos empresas produzem soro antiofídico. A Organização Mundial da Saúde divulgou um comunicado no final de agosto alertando para a escassez global de antídotos contra venenos de cobras devido a diminuição de empresas produtoras de soro antiofídico e o consequente aumento do número de mortes por envenenamento.
Mais de 100 mil pessoas morrem anualmente no mundo em consequência de picada de cobra, sendo que o problema é particularmente grande na África. Até 30 mil pessoas morrem por ano no continente após serem picadas por serpentes. Na Índia, o número de vítimas mortais sobe para 50 mil.
Testes em laboratório
Além dos cavalos utilizados para a produção de soros, está sendo testadas substâncias com ajuda de vacas e ovelhas, cujos genes dos sistemas imunológicos animais foram trocados por genes humanos. O método já está sendo testado nos EUA, com resultados promissores. “Mas o novo método ainda não é uma alternativa para produção das grandes quantidades de soro antiofídico necessárias”, pondera Nübling.

Estudo avalia algas tóxicas em lagos de praças e parques da Capital

Cleber Dioni Tentardini

Pesquisadores do Museu de Ciências Naturais, da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, vem estudando a presença de cianobactérias nos laguinhos de parques e praças de Porto Alegre.
Já foram pesquisados quatro lagos: do Moinhos de Vento (Parcão), dos Pedalinhos (Redenção), das Tartarugas (Jardim Botânico) e da Praça Itália (Praia de Belas).
A atenção é para o fenômeno chamado de floração, que confere às águas coloração (esverdeada, amarelada, avermelhada, marrom), odor e sabor (barro, mofo, peixe, capim), que variam conforme as espécies presentes. Estas florações geralmente formam manchas na superfície da água.
Esses organismos, com características de algas e bactérias, são capazes de indicar se está ocorrendo algum desequilíbrio ambiental. Em ambientes saudáveis, as cianobactérias convivem com outros organismos de modo equilibrado. Mas, se o local está poluído, com aumento da concentração de nutrientes na água, principalmente fósforo e nitrogênio, originados de fezes de animais, de esgotos domésticos e de atividades agrícolas/industriais, elas se multiplicam excessivamente, gerando as florações.
O perigo é que várias espécies são potencialmente tóxicas. Podem provocar a mortandade de peixes e de outros animais, incluindo o homem, que consomem a água e organismos contaminados.
Dentre as cinco categorias de toxinas identificadas até o momento, as hepatotoxinas podem causar morte por hemorragia do fígado, as neurotoxinas podem atacar o sistema nervoso central e provocar morte por parada respiratória, e as dermatotoxinas, que podem provocar irritações no corpo.

A notícia da tragédia / Reprodução

Em fevereiro de 1996, hepatotoxinas produzidas por cianobactérias provocaram a morte de 50 pessoas por insuficiência hepática aguda, das cem em tratamento em uma clínica de hemodiálise em Caruaru, Pernambuco.
A partir dessa tragédia, o Ministério da Saúde tornou obrigatório o monitoramento de cianobactérias por todas as companhias de abastecimento de água do Brasil.
As pesquisas nos lagos dos parques e praças de Porto Alegre começaram em 2008. Em todos, foram identificadas florações de cianobactérias com potenciais tóxicos.
Esses importantes estudos são coordenados pela bióloga Vera Regina Werner, uma das maiores especialistas brasileiras em cianobactérias. Ela orienta estudantes de graduação e pós-graduação na Seção Botânica de Criptógamas, em uma pequena sala no segundo andar do Museu de Ciências Naturais (MCN), na FZB. Vera é co-orientadora dos trabalhos, junto com os professores universitários.
Todos os materiais coletados são devidamente etiquetados e tombados no Herbário Professor Alarich R. H. Schültz (HAS) do MCN-FZBRS.
Vera com as amostras das pesquisas catalogas no herbário do Museu /Fotos Cleber Dioni

Atualmente, a bióloga tem se dedicado a um projeto para ampliar os locais a serem estudados em Porto Alegre e dar continuidade às pesquisas em andamento. O nome é pomposo: Cianobactérias planctônicas de corpos d’água artificiais da cidade de Porto Alegre, com ênfase às espécies formadoras de florações.
“Por se tratar de lagos urbanos, localizados em área de lazer, o conhecimento da diversidade destes organismos é fundamental para subsidiar a correta manutenção desses corpos d’água”, explicou a bióloga.
As pesquisas também abrangem lagos e lagoas na Região Metropolitana, no Litoral e no interior do Estado.
Identificadas 13 espécies no Lago dos Pedalinhos
A bióloga Camila Borges pesquisou em 2008 as cianobactérias no lago dos pedalinhos na Redenção para o trabalho de conclusão do curso, sob orientação da Vera Regina Werner e do professor João Fernando Prado, da UFRGS.
Foram feitas sete coletas, abrangendo as quatro estações do ano, junto à entrada e saída e no centro do lago, onde vivem tartarugas, peixes e aves. A partir da análise de 21 amostras, foram identificadas densas florações e seis espécies de cianobactérias, todas potencialmente tóxicas.
Registro na Redenção foi foi feito em maio de 2008/Divulgação

Além do excremento dos animais, presentes no lago e no minizoo, até então aberto, uma cena muito comum de se ver nos parques são as pessoas jogando alimentos para os peixes e tartarugas. Essas comidas decompõem-se e liberam nitrogênio e fósforo, criando um ambiente propício para as florações de cianobactérias.
Densas florações tóxicas na Praça Itália
A estudante Andressa Adolfo, do 7º Semestre da Biologia da Unisinos, realiza pesquisas com bolsa de Iniciação Científica da FAPERGS (PROBIC). Andressa participa de coletas e análises de amostras obtidas mensalmente no lago da Praça Itália, próximo ao shopping Praia de Belas, onde é comum ver crianças brincando no verão.
Amostra da água esverdeada /Divulgação

 

As coletas, realizadas desde outubro de 2016, mostraram a ocorrência de florações mistas, com espécies potencialmente tóxicas, que podem afetar os neurônios (coordenação motora) e o fígado de animais e ser humano. A água é esverdeada e contêm manchas vistas a olho nu, resultantes da proliferação excessiva de cianobactérias.
 
 
 
 
As amostras já catalogadas

Lago das Tartarugas, no JB, recebia esgoto da vila
Em 2011, orientandos da bióloga Vera Regina Werner registraram a ocorrência de 16 espécies de cianobactérias no fitoplâncton do Lago das Tartarugas, do Jardim Botânico. Em 2013, novos estudos constataram outras nove espécies, num total de 25.
Há anos que a água do lago é constantemente esverdeada, com manchas na superfície, resultantes de densas florações.
Manchas verdes formam uma camada na superfície no lago do Botânico/Cleber Dioni

Foram moradores da Vila Juliano Moreira, antiga colônia agrícola do Hospital Psiquiátrico São Pedro, ao lado do Botânico, que informaram à Vera que o esgoto das casas era indiretamente despejado no lago. Não havia saneamento na vila. Por isso, as florações de cianobactérias permanentes naquele lago nos últimos anos.
Moinho no Parcão reduz florações
Em 2015, foi documentada a ocorrência de 19 espécies de cianobactérias planctônicas no lago do Parque Moinhos de Vento, incluindo florações. Uma pesquisa feita em 1992 identificou 145 espécies de algas, dentre os quais 26 cianobactérias.
Vista parcial com floração no lago do parque Moinhos de Vento /Divulgação

Naquele local, segundo Vera, há o Moinho com uma cascatinha mantendo a água em movimento e isso diminui a concentração de nutrientes que alimentam as cianobactérias, reduzindo as florações.
Ambiente saudável na APA do Ibirapuitã
A bióloga Mariê Mello Cabezudo desenvolveu pesquisas por três anos no Museu de Ciências Naturais, da FZB, com bolsa de iniciação científica da FAPERGS (PROBIC). Aproveitou um trabalho amplo de manejo na Área de Proteção Ambiental (APA) do Ibirapuitã, na Região da Campanha, que envolveu várias áreas da Fundação Zoobotânica e começou o primeiro estudo de biodiversidade de cianobactérias naquela área.
As coletas de amostras de água na APA foram feitas nos meses de março e novembro de 2011 e março de 2012. Abrangeu o rio Ibirapuitã, banhado, arroio e lagoa.
Coleta na APA do Ibirapuitã/Divulgação

Mariê e seu trabalho/Cleber Dioni

“Precisávamos conhecer a flora de cianobactérias dos sistemas aquáticos na APA. Os ambientes estavam bem diversificados. Identificamos 28 espécies de cianobactérias, nenhuma floração. Ou seja, não havia desequilíbrio naqueles ambientes”, afirma Mariê.
Agora, está sendo preparado um trabalho científico para submeter à publicação.
Atualmente, Mariê continua trabalhando com cianobactérias no seu Mestrado em Ecologia da UFRGS, sob orientação da Vera e da professora Luciane Crossetti.
 
Cultivo de espécies coletadas na APA do Ibirapuitã

Aluna encontra floração em lago de São Jorge
A estudante Vanessa Didoné, das Ciências Biológicas da Unisinos, é bolsista do CNPq (PIBIC), no MCN/FZB. Coletou no início de 2017 amostras em um lago no município gaúcho de São Jorge, que apelidou de Lago das Garças, devido à grande quantidade dos animais. Com os olhos já treinados por Vera, desconfiou do tom esverdeado da água, com uma camada na superfície de algo parecido com uma nata. Também registrou a proximidade de uma plantação de milho, onde poderiam estar sendo usados fertilizantes.
Floração no município gaúcho de São Jorge/Divulgação

Amostras do lago das Garças, em São Jorge/Cleber Dioni

“As fezes dos animais e a possibilidade de uso de fertilizantes no milharal contribui para aumentar a concentração de nitrogênio e fósforo na água e o aparecimento de floração de cianobactéria”, diz Vanessa.
Local tem grande quantidade de garças/Divulgação

A aluna ajuda Vera a manter o banco de culturas de cianofíceas, aberto em 2005. O processo consiste em isolar cada uma das espécies do material coletado,para análises moleculares, só realizadas fora do Estado. O banco de culturas visa à obtenção de populações para subsidiar outros estudos de interesse sócio-econômico
“Os estudos de cultivo de cianobactérias tem nos permitido realizar pesquisas com sistemática filogenética desse grupo de organismos, que é uma exigência atual nos estudos de diversidade e evolução”, diz Vera, orgulhosa por ver em Vanessa uma futura taxonomista.
Vanessa com as culturas de cianobactérias

Bióloga é referência em pesquisas no Brasil
Há somente cinco pesquisadores em atividade no Brasil com conhecimento suficiente para identificar e descrever espécies novas de cianobactérias, também chamadas algas azuis ou cianofíceas. Vera é uma das referências. Os outros taxonomistas estão em São Paulo.
Pesquisadores da Argentina, do Uruguai e de todo o Brasil seguidamente trocam informações e consultam a bióloga porto-alegrense, que completou no mês de abril 40 anos de trabalhos realizados no Museu de Ciências Naturais da FZB.
Bióloga recebe consultas de todo país

Quando ela ingressou como estagiária e estudante do curso de Ciências Biológicas da PUC, a atual Seção de Botânica de Criptógamas (SBC) ainda era o Núcleo de Vegetais Inferiores (NVI), coordenado pela bióloga Zulanira Meyer Rosa, sua primeira orientadora.
“Lá nas décadas de 70 e 80 a gente já reconhecia na natureza as florações, mas não eram muito estudadas as cianobactérias”, afirma.
A “bíblia”, de Lothar Geitler

Sua grande inspiração foi o livro de Lothar Geitler, de 1932, em alemão, que ela considera a bíblia para os estudos das cianobactérias. Sua descendência alemã ajudou no aprendizado da língua, mas Vera admite que não foi fácil. Recentemente, o tcheco Jirí Komárek escreveu o livro Cyanoprokaryota em três volumes, que representam uma revisão da ‘bíblia’ de Geitler.
“Tem-se que ter muito cuidado porque é um problema de saúde pública. E o pior: as cianobactérias são muito resistentes. Não adianta ferver a água porque elas podem arrebentar e liberar as toxinas na água”, ensina. “E quando atingem o solo, mesmo ali elas sobrevivem, podendo resistir por dezenas de anos em lugares secos. Elas são danadas. Não resta outra alternativa se não investir muito em educação ambiental’, insiste a bióloga.
Hoje, há profissionais habilitados para trabalhar com as cianobactérias nos órgãos responsáveis pela qualidade da água, sendo que muitos foram treinados na Fundação Zoobotânica. Antes, Vera era chamada constantemente. Prefeitos, gestores e técnicos dos departamentos de água sempre recorreram à bióloga em busca de seu conhecimento.
De São Leopoldo, por exemplo, iam técnicos toda semana à Fundação Zoobotânica para receber treinamento. Os custos eram irrisórios.
A bióloga prestou muito auxílio ao DMAE, à Corsan e a companhias municipais de abastecimento de água do interior do Estado, onde havia problemas de florações. Quando não ia coletar, Vera recebia amostras de vários locais, por exemplo, de hospitais e locais de tratamento de hemodiálise. Em muitos casos foram identificados problemas graves no tratamento de esgoto.
Cultivo de espécies encontradas em São Leopoldo, Ulbra e outros

Vera foi chamada em São Jerônimo, quando a água ficou com coloração amarelada, devido à floração da espécie Cylindrospermopsis raciborskii, que tem essa tonalidade. No laguinho do parque de Lajeado ou da Ulbra, a bióloga identificou as espécies responsáveis pelas florações.
Na Lagoa do Violão, em Torres, o tom esverdeado indicava a floração. Vera participou de uma reunião na Prefeitura. “Eu perguntei se tinha algum esgoto sendo lançado na lagoa e um silêncio dominou a reunião, mas, de repente, alguém disse que havia obras com esgotos clandestinos sendo lançados na lagoa”, resume. “Está aí a causa das florações. Basta fechar os esgotos e o problema será resolvido”, explicou.
Amostras do lago no Parque Zoológico

A bióloga diz que soube de casos de animais que tiveram que ser sacrificados naquele município do litoral por terem ficado com problemas graves. “Não cheguei a verificar se tinha a ver com as toxinas, mas uma pessoa pelo menos relatou que o seu cachorro entrava na lagoa com floração”, lembra Vera.
Cisnes com problemas no movimento de uma das patas e com o fígado deteriorado

Num laguinho do Zoológico, em Sapucaia, foram identificadas florações e animais com sintomas que podem estar relacionados às toxinas de cianobactérias.
 
No Guaíba, espécie agressiva
Em 2004, foi identificada floração de cianobactérias no Guaíba, que deu a coloração esverdeada, cheiro e gosto fortes de barro na água, características de Planktothrix, espécies potencialmente tóxicas. Segundo Vera, essas cianobactérias filamentosas, agressivas, são muito comuns no Guaíba durante o verão, porque se desenvolve mais em temperaturas quentes e quando chove menos. Nestas épocas o nível da água diminui, aumenta a concentração de nutrientes, criando o ambiente ideal pra esses organismos proliferarem-se.
O último problema com a água do Guaíba, verificado no ano passado, nada teve a ver com as florações. Vera coletou amostras e verificou que não havia proliferação de cianobactérias.
“Normalmente, se a gente sente cheiros da natureza, terra, mofo, peixe, estão presentes as cianobactérias. Por causa da geosmina, o cheiro liberado na água por esses organismos.”
 
 
 
 
Espécie Planktothrix Planktothricoides, comum no Guaíba

 
Pesquisas reúnem dados sobre as lagoas do litoral
Desde que ingressou na FZB, Vera desenvolve o projeto “Diversidade e distribuição de cianobactérias formadoras de florações, com ênfase às espécies potencialmente tóxicas, em mananciais do estado do Rio Grande do Sul.
Começou as pesquisas nas lagoas da planície costeira. Em sua tese de doutorado, as pesquisas envolveram 33 lagoas da região litorânea, de Torres ao Chuí, incluindo o banhado do Taim e a Lagoa do Peixe.
Mapa das lagoas pesquisadas por Vera em sua tese de doutorado

“Então, na Lagoa dos Quadros, onde tem estação de piscicultura, a gente já observava manchas verdes na superfície da água. Sabíamos que eram florações de cianobactérias, mas ainda não se conhecia o problema das toxinas. Hoje, se sabe que determinadas espécies são tóxicas e perigosas”, observa. A Lagoa dos Patos também apresenta muito problema de floração. Já, no mar, segundo Vera, não tem essa situação. “Aquelas algas com coloração marrom, característica do litoral gaúcho, não são potencialmente tóxicas”, tranquiliza.
Em 2003, o trabalho de mestrado de Mariéllen Martins, pelo Programa de Pós-Graduação em Microbiologia (Unesp/Ibilce), sob orientação do professor Luis Henrique Branco, com a co-orientação de Vera, envolveu áreas da lagoa do Casamento e dos butiazais de Tapes, incluindo arroios, banhados e sangradouros nos municípios de Mostardas, Capivari do Sul, Palmares do Sul, Barra do Ribeiro e Tapes.
Neste estudo foram encontradas várias espécies até então não registradas para o Rio Grande do Sul e algumas até para o Brasil, inclusive, espécies que os pesquisadores não esperavam encontrar nesses locais.
Mariéllen medindo dados abióticos do lago da ULBRA/Divulgação

‘Foi um trabalho importantíssimo, que contribuiu para conhecimento das áreas estudadas, onde vimos a importância de tais ecossistemas e a flora riquíssima encontrada ali, principalmente em regiões de banhados, que já se sabe, e não é de hoje, que são ecossistema ricos em espécies de vários grupos biológicos”, ressalta Mariéllen.
Mapa das lagoas estudadas por Mariéllen

Esse trabalho já rendeu três publicações e está saindo a quarta, todas em revistas científicas reconhecidas.
Surgiu, então, a ideia de reunir as informações das duas grandes pesquisas e lançar um só trabalho, com intuito de divulgação científica de todo conhecimento adquirido ao longo dos anos, não apenas da região da planície costeira, mas do estado do Rio Grande do Sul. Mas é um processo demorado e, portanto, sem previsão de conclusão.
Cartilha orienta população e gestores
Vera produziu uma cartilha a fim de ensinar e alertar a população para tomarem determinados cuidados em locais com floração e orientar os agentes públicos. O título é ‘Cianobactérias: Belas mas, às vezes, perigosas.’
Na cartilha, a bióloga explica que as cianofíceas foram os primeiros organismos produtores de oxigênio, apresentando ao mesmo tempo, características de bactérias e de algas. São seres bastante primitivos, com registros de documentos fósseis de cerca de 3,5 bilhões de anos. Ocorrem tanto na água como em superfícies sólidas, como solo, pedra e árvores.
“Então, a gente faz esses levantamentos e produz relatórios e cartilhas para enviar aos administradores dos parques ou diretamente às prefeituras, como forma de orientá-los”, completa.
Informações gerais 
Quais cianotoxinas elas podem produzir e quais suas consequências?
– Neurotoxinas: atuam no sistema nervoso central, inibindo  transmissão de impulsos à musculatura, provocando a morte por parada respiratória.
– Hepatotoxinas: intoxicações, morte por hemorragia do fígado.
– Dermatotoxinas: problemas na pele, irritante ao contato
Floração em São Jorge, visto ao microscópio

Quais são os sintomas provocados pelas cianotoxinas?
– Alergia, rinite, conjuntivite e dispneia, por inalação
– intoxicações agudas: diarréia, náuseas, febre, vômitos, cólicas. abdominais, anorexia, astenia, hepatomegalia, por ingestão.
– Dermtites (urticariforme), conjuntivites e rinite, pelo contato.
Quais as consequências das cianotoxinas para o ambiente e para os seres vivos?
Intoxicações, mortandades de peixes e de outros animais, inclusive seres humanos, têm sido registrados no mundo inteiro.
Espécie encontrada na Praça Itália

Como podemos saber se a água está contaminada por cianobactérias?
Pelo aspecto da água, coloração ou mancha esverdeada, avermelhada ou amarelada, pelo cheiro e sabor de barro, peixe ou mofo. A amostra da água deverá ser analisada em microscópio para confirmar a presença e mensurar a densidade de cianobactérias.
Espécie encontrada na Praça Itália

Podemos beber água com florações de cianobactérias?
Não, pois a mesma pode apresentar toxicidade.
Espécie encontrada na Praça Itália

Podemos comer peixes e carnes de outros animais que vivam nessas águas?
Não, porque as cianotoxinas podem ser acumuladas, principalmente no fígado. Além disso, o sabor e o odor podem ficar alterados.
Espécie encontrada na Praça Itália

Outros animais podem beber água com cianobactérias?
Não, pois mortandades de peixes e de outros animais têm sido registradas devido a cianotoxinas presentes na água.
Existe legislação para proteger a população?
Sim. A Portaria nº 2.914/2011 do Ministério da Saúde exige o monitoramento de cianobactérias e cianotoxinas em mananciais de abastecimento público, assim como de cianotoxinas na água a ser disponibilizada à população.
Quais os aspectos positivos das cianobactérias?
Além de serem produtoras primárias (produzem oxigênio atmosférico-O2), somente as cianobactérias e certas bactérias são capazes de fixar o nitrogênio atmosférico. Assim como as de vida livre como as associadas a outros seres vivos, têm importância na fertilização do ambiente. São ainda consideradas organismos agregadores do solo, protegendo-o contra a erosão. Colaboram na produção do húmus; atuam como pioneiras na colonização dos solos.
Além de sua significativa representação na natureza e importância para estudos ecológicos e toxicológicos, atualmente, têm sido pesquisadas suas qualidades e aplicabilidades na indústria farmacêutica, têxtil e de alimentos. Na alimentação, as cianobactérias têm papel importante devido ao alto valor proteico e vitamínico de certas espécies.

Professor pesquisa substâncias no cocão que podem agir sobre a dopamina

Cleber dioni tentardini
O professor e farmacêutico Arno Hofmann Junior está estudando uma espécie de cocão da coleção viva de plantas raras do Jardim Botânico de Porto Alegre para desenvolver sua tese de doutorado junto ao Laboratório de Toxicologia (Labtoxico), da Faculdade de Farmácia da UFRGS.
Essa espécie, encontrada somente no Sul do Brasil, é do mesmo gênero da planta da coca, de onde se obtém a cocaína, e está criticamente ameaçada de extinção. “O Jardim Botânico está tendo fundamental importância pois possibilitou a coleta de espécie de difícil identificação na natureza”, destaca o pesquisador.
Sua orientadora na Universidade é a professora Renata Limberger, farmacêutica especializada em Toxicologia e coordenadora do laboratório.
Hofmann busca identificar os componentes que essas espécies produzem e avaliar a influência de algumas destas plantas sobre a neurotransmissão da dopamina, substância presente no cérebro de mamíferos e que está relacionada a doenças como Mal de Parkinson, Dependência Química e Esquizofrenia.

Arno Hofmann
Arno diz que planta é muito difícil de ser encontrada/Divulgação

“Meu objetivo não é relacionar às doenças, mas a identificação de espécies que atuem sobre este neurotransmissor, o que possibilitará futuros estudos sobre suas potencialidades toxicológicas e terapêuticas, afirma o docente e coordenador do Curso de Farmácia, da Faculdade IDEAU, no município gaúcho de Getúlio Vargas.
Hofmann explica que o gênero Erythroxylum é conhecido principalmente por ser a fonte natural de alcaloides com núcleo ecgonina como a cocaína. “É verificado que outros compostos presentes nas folhas da ‘coca’ são biologicamente ativos e contribuem para os efeitos verificados pelo chá e pela pasta de coca, como os danos à saúde e a redução da fome e do cansaço. Devido às espécies pesquisadas no sul do Brasil pertencer ao mesmo gênero da ‘coca’, é possível que alguns destes componentes também estejam presentes”, ressalta Arno.
(Cleber Dioni Tentardini)