Um governo sem compaixão

Jorge Barcellos – Doutor em Educação
A reivindicação do discurso de proteção aos desamparados, o discurso de compaixão que ocupou a política de bem-estar social, discurso que fazia do Estado o protetor da sociedade e de seus servidores foi apontado como característica do discurso político por Hannah Arendt em sua obra Sobre a Revolução. Sua característica se define pelo apoderamento pelo Estado do sofrimento dos pobres, indigentes e excluídos para converte-lo em argumento por excelência da política e sempre incluiu o horizonte do serviço público em sua argumentação. Por esta razão os servidores públicos tiveram reconhecidos em seus estatutos inúmeros direitos de proteção ao trabalho que transformaram tais instrumentos legais em referência: do direito a liberação de horas de trabalho para realizar estudos a liberação de horas para tratamento de familiar doente, o Estado sempre nutriu compaixão pelos servidores públicos e a iniciativa privada, através da legislação social, em muito imitou os direitos conquistados pelos servidores públicos.
Da explosão do sofrimento das classes pobres que insuflou os revolucionários da Revolução Francesa a determinar o curso do seu movimento à política contemporânea nos estados onde desde 2008 ocorre a retomada da ascensão neoliberal, vemos a substituição paulatina dos pobres e vítimas do passado pelos servidores públicos no presente. Hoje, as condições dos trabalhadores do serviço público integram a questão social e o desmonte das suas proteções foram incluídas no desmonte geral das proteções da sociedade salarial, que vão desde a redução dos direitos do trabalho, segurança e previdência, então característicos do processo de descidadania neoliberal:  é a passagem dos trabalhadores de plenos direitos à trabalhadores sem direito algum repercutindo agora  em seu equivalente  dos servidores públicos de plenos direitos a servidores sem direito algum.
Esses processos de desterritorialização de direitos, de trabalhadores e servidores públicos colocam a questão de que pensar a cidadania no mercado é tão importante quanto a cidadania no serviço público. A redução dos espaços democráticos, expressão do que Arendt chama de pobreza, não é a carência de meios, mas a necessidade do sistema da miséria aguda, a desumanização de homens vítimas do capital em todos os espaços, e por esta razão, atinge trabalhadores e servidores públicos indistintamente. Não é o que se vê na irrupção de servidores públicos estaduais em greve por terem seus salários parcelados pelo governo de José Ivo Sartori, incapazes de atender suas necessidades básicas? Isso não é o equivalente da irrupção dos pobres da Revolução Francesa? Também os servidores públicos sofrem coerções de seu processo vital, tem urgência em conservar a vida e por isto o lamento de servidores que sequer tem condições de ir para a escola ministrar suas aulas. Sartori diz que este é um momento em que todos devemos dar nossa parcela de sacrifício, mas o que Arendt diz é que de “indivíduos submetidos a semelhante pressão não se pode exigir sacrifícios que se podem pedir a cidadãos”. Quer dizer, Arendt defende que antes de exigir qualquer sacrifício, qualquer idealismo aos pobres, devemos faze-los primeiros cidadãos “o que implica em mudar as circunstâncias de suas vidas privadas, em grau tal, que sejam capazes de usufruir do público”.
Não é o mesmo que ocorre com os servidores públicos atingidos pelo pacote de maldades do governador José Ivo Sartori? O governador, que já vinha desagregando a cultura do serviço público em nosso estado com sua suas medidas de parcelamento salarial, retirando as condições de existência digna de seus servidores sob a justificativa que deveriam “abraçar o sacrifício conjuntamente”, nesse instante deixou de atender minimamente o contrato social que tem com eles, que garante pelo serviço público prestado a justa remuneração.  Quando José Ivo Sartori começou a parcelar salários de servidores públicos perdeu o direito de exigir sacrifícios simplesmente porque eles deixaram de serem cidadãos, foram reduzidos a uma condição inferior, foram privados de responder a qualquer demanda de sacrifícios porque já foram sacrificados à exaustão. Por isso, agora, o pacotão de maldades anunciado por José Ivo Sartori agudiza a superesploração do servidor público e reduz ainda mais sua condição de cidadania. Ele reduz os servidores à condição de extrema pobreza e não se trata somente da incapacidade de satisfazer necessidades vitais do servidor, se trata também de sentir “vergonha de ser condenado à escuridão e não ter direito à plena luz da vida púbilca”, como assinala Myriam Revault D’Allonnes em El Hombre Compassional (Amorrourtu Ediciones).
Por isso, a sugestão de demissão de 1200 servidores públicos é a face atual das palavras de John Adams recuperadas por Arend e por D’Allones: assim como na época de Adams, a humanidade não prestava atenção alguma ao pobre, não o viam, a sociedade atual, frente a imediata demissão de 1.200 servidores públicos… não os veem. Como é possível inúmeras manifestações nas redes sociais virem apoiar a iniciativa do governador de demissão? Há, com certeza, o desconhecimento da maioria do público das suas funções, somada ao novo pensamento de direita efervescente por todo o Estado. Mas o que tais afirmações fazem é corroborarem a prerrogativa de que, assim como os pobres do passado de Adams, os servidores públicos do presente têm suas vidas duplamente mortificadas: por sua indigência, já que sofrem com a redução de direitos consagrados e por que seu novo sofrimento que se aproxima, a demissão, ignorada pela massa da sociedade que vê o serviço público como seu bode expiatório. Essa cegueira social, essa ignorância do papel e do valor dos servidores das diversas instituições públicas a serem fechadas é a prova de que vivemos uma sociedade infame, sociedade que vê como indignidade narrar a vida desses servidores, que vê tais vidas como invisíveis. O governo Sartori conseguiu produzir assim um déficit social pois transformou os servidores públicos em nova camada de pobres sociais, mas também produziu um déficit simbólico, pois sequer os servidores públicos atingidos são vistos como parte da sociedade quel integram.
O que José Ivo Sartori conseguiu com sua política de massacre do servidor público foi a invisibilidade do servidor e Arend defende, segundo D’Allones, justamente que a inexistência social e política é um dos estigmas da pobreza. Os servidores públicos são os novos pobres graças a Sartori, mas, ao contrário dos revolucionários jacobinos, que fizeram da compaixão o motor de sua ação, o governador aprisiona os servidores a sua pobreza, mostrando-se um governo sem compaixão, mas com piedade.  Sem compaixão porque em sua etimologia designa a sensibilidade ao sofrimento do outro sem implicar um sentimento de superioridade, mas com piedade porque este justamente é um sentimento assimétrico, é preciso que o governo se sinta numa posição superior para julgar e portanto, inferiorizar o servidor: a piedade humilha o seu objeto.  Por isso, nas diversas entrevistas do governador, ele sempre vem com seu olhar de…pena para com a situação do servidor, mas não se trata de compaixão, é só olhar o significado do pacotaço de Sartori, que dizima servidores e órgãos públicos ao seu prazer. Para onde foi a compaixão no serviço público? Não para o do governador, mas para as demais categorias de servidores públicos dos demais níveis, que sofrem conjunto com os servidores do estado, o co-sofrimento de categoria. Sartori só manifesta piedade, só sente tristeza de ter de demitir servidores, mas isso não afeta ele próprio: por isso o valor dos estudantes que vão as ruas contra as medidas de Sartori, eles sentem compaixão, são também golpeados pelas medidas do governador.
Que sentimento falta nas relações do governador com seus servidores? O de solidariedade. O princípio deveria nortear as relações do governador com seus servidores pois os órgãos de estado são também uma comunidade, tem interesses que devem ser compartilhados. Ao contrário, Sartori parte do princípio que é preciso explorar o servidor público, e ele o faz porque não tem interesse na sua existência e, por isso seu pacotaço é a proposta de liquidação imediata de fundações, de servidores, de equipamentos “o apetite do poder requer a existência dos mais fracos”, diz D’Allonnes. A perversão das medidas de Sartori está no fato de que, em primeiro lugar, generaliza as instituições, dilui singularidades, homogeneiza tudo como massa indiferenciada: ora, CEEE e Sulgás estão longe de serem empresas que dão prejuízo para serem defenestradas, ao contrário, dão lucro e são sustentáveis; mesmo fundações que não dão lucro, como a TVE, estão dentro das responsabilidades do Estado, que dizer, respondem por atributos do Estado.
A forma indistinta em que Sartori adota a mesma justificativa de “redução de custos” para justificar a extinção de inúmeras fundações indiferencia seu objeto. Por isso é que a ausência de compaixão tem um nome: crueldade. A ausência de amor ao servidor é substituída pela incitação as formas desumanas de tratamento do servidor: Sartori age como o “cirurgião que corta um membro gangrenoso com seu ferro cruel e caridoso para salvar o corpo do paciente” (Allones). Ora, a autora de Ensaio sobre a autoridade lembra que para Anna Arendt na relação política o mundo também é um mundo de relações, há uma distância entre governantes e governados sim, mas há um inter esse, há coisas que separam e unem servidores e seu governador. Tudo isso não existe no governo Sartori, o que o pacotaço revela que existe é outra coisa, a repugnância de seu projeto neoliberal de governo para com o servidor público. Um governo sem compaixão é um governo que instaura qualquer coisa, menos uma sociedade em que os homens possam ser irmãos.
A ausência da compaixão, essa falta de esforço em procurar outra saída, de sequer apresentar o problema a quem serão atingidos, às suas vítimas, para encontrar juntos uma saída, generaliza a distância que separa Sartori do serviço público. É a perversão do estado, a ausência de qualquer amor pelo do governador pelo seu servidor e vice-versa. As origens desta tese são complicadas, mas em resumo, foram desenvolvidas por Pierre Legendre em sua obra “O amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática” (Forense, 1983), que pode ser assim resumida: as grandes burocracias da modernidade ocidental organizam a lei em sistemas e um censor onisciente (função simbólica invariavelmente ocupada pelo governante) cuja obra prima do seu poder é se fazer amar. A leitura de Pierre Legendre é a exploração social da psicose psicanalítica lacaniana, a mesma proposta retomada recentemente por Elisabeth Roudinesco em seu “A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos”.
Num e noutro está em discussão a ruptura com os princípios de solidariedade e harmonia entre atores diversos como nas figuras emblemáticas de Sade, no fenômeno do nazismo ao terrorismo contemporâneo. A perversão do homem chega ao Estado: a parte obscura do governo Sartori, essa atitude que exibe e que não cessa de dissimular, é a perversão do seu poder: ele oferece como espetáculo público o sacrifício simbólico de seus servidores como discurso de governo, e assim aniquila de uma vez por todas a preocupação da liberdade no governo. Deveríamos ser capazes de deixar os órgãos públicos que funcionam livres para cumprir sua missão pública, como a TVE, a FZB ou FEE, mas como isso contraria os interesses do grande capital desejoso demais de acessar riquezas públicas, é preciso não um governante que se faça amar pelos servidores públicos como sugere Legendre, ao contrário, é esta ausência de amor do governador pelo servidor mas pelo capital que deveria nos horrorizar:  a proposta de demissão sem piedade de pessoas e a venda imediata de propriedades é a declaração de amor do governador ao capital. E, portanto, perversão dos fins do estado social, do estado de direito, e da boa administração pública e nesse sentido, a ausência de compaixão do governador é a prova maior de que a tese de Roudinesco está presente entre nós. O pacotaço de José Ivo Sartori é, numa frase, a perversão do ato de bem governar.

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