Detalhes do 8 de janeiro reavivam polêmica histórica: Jango errou ao não reagir em 1964?

Um ano depois, estão sendo revelados os detalhes da ação golpista para derrubar o recém-empossado presidente Lula, no dia 8 de janeiro de 2023.

O que fica nítido é a operação canhestra para o golpe, desmontada rapidamente pela reação de Lula e a firmeza das atitudes do secretário da Justiça, Ricardo Capelli.

É inevitável a comparação com o que sucedeu nos dias 31 de março e 1 de abril, de 1964, quando um golpe militar, sem dar um tiro, derrubou e mandou para o exílio o presidente João Goulart.

Muitos protagonistas derrotados em 1964, Leonel Brizola à frente, morreram acreditando que se Goulart houvesse reagido, o golpe não teria se consumado.

Jango (como era chamado o presidente) também estava mal informado por seus assessores militares e, também,  foi surpreendido pela movimentação de tropas.  Mas teve reação oposta à de Lula.

Rejeitou propostas de militares e aliados para enfrentar a rebelião deflagrada em Juiz de Fora e deixou o Rio de Janeiro, deslocando-se para Brasília e depois para Porto Alegre.

Em Porto Alegre, numa reunião dramática na casa do comandante do III Exército, Leonel Brizola, então deputado federal, implorou a Jango que o nomeasse Ministro da Justiça, para que pudesse enfrentar o golpe.

Brizola vinha incitando à reação, desde o primeiro momento. Pregava pelo rádio: “Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército, atenção sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas…O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas…tomem a iniciativa à unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores”

Jango não aceitou mais uma vez a proposta de reagir, haveria “derramamento de sangue”. Preferiu exilar-se no Uruguai.

O general Olympio Mourão Filho, que botou as tropas na rua no dia 31 de março, registrou em seu diário o quanto era mambembe “Operação Popeye” que ele havia preparado para  deflagrar o golpe.

O golpe militar em 1964 vinha sendo preparado desde a posse de João Goulart, o vice que assumiu ante a renúncia de Jânio Quadros, o presidente eleito. Havia sido adiado pela pronta reação do então governador Leonel Brizola, em 1961.

Hoje se sabe das articulações e do apoio externo, principalmente dos Estados Unidos. Mas, àquela altura, os chefes militares que conspiravam estavam cautelosos e pretendiam adiar o movimento para tomada do poder.

De pijama e pelo telefone, Mourão anunciou o golpe e na manha do primeiro de abril,  botou os soldados do 10º de Infantaria (maioria recrutas)  a caminho do Rio de Janeiro para derrubar o governo. Mourão era um marginal na conspiração. Castello Branco, o líder de maior prestígio entre os conspiradores, ficou em pânico quando soube, achou que Mourão ia por tudo a perder. O general Amaury Kruel, comandante do II Exército, não acreditava: “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”.

Mourão venceu, Jango morreu no exílio, o golpe que era “preventivo”, para punir corruptos e subversivos, se desdobrou numa ditadura que durou 21 anos e que, 60 anos depois, ainda ronda a democracia brasileira, como um fantasma. O 8 de janeiro talvez tenha sido o primeiro passo para exorcizá-la definitivamente.

 

 

Entrevista Jair Krischke: O risco de se perder a memória das ditaduras

Jair Krischke, 85 anos, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, é personagem do documentário “Imprescindível”, que será lançado nesta quarta feira, 13/11, na Casa de Cultura Mário Quintana.

Reproduzimos a entrevista de Jair Krischke  à Revista JÁ em  maio de 2014.

“Denunciar crimes de Estado e atentados à pessoa é, há meio século, a rotina de Jair Krischke, o incansável presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Em sua pequena sede no centro de Porto Alegre, ele abriga um dos acervos mais completos sobre as brutalidades, não só da ditadura brasileira, mas de seus vizinhos.

Nos últimos anos Krischke tem uma outra preocupação: os crimes que se continuam cometendo contra a memória desse período, como forma de apagar ou atenuar os horrores da ditadura. “Sem essa memória estaremos condenados a repetir muito em breve as mesmas barbaridades e os mesmos erros”, disse ele no lançamento do projeto Marcas da Memória, que está colocando uma placa alusiva em cada um dos locais que serviram de prisão e centro de tortura em Porto Alegre. Jair falou ao JÁ sobre a ditadura e  os riscos de se perder sua memória.

JÁ – Há uma ideia de que a ditadura começou branda… a violência veio depois…

Jair Krischke – Esse é um dos mitos fruto do esquecimento, da falta de memória. O golpe não teve enfrentamento armado, mas desde o início foi violento. Um caso exemplar ocorreu aqui em Porto Alegre no dia 4 de abril. O coronel Alfeu Monteiro, comandante do 5º Comando Aéreo, foi metralhado por golpistas. Foi chamado ao QG, para ser destituído de um comando. Quando entrou no gabinete foi assassinado pelas costas, era legalista, em 1961 tinha sido um dos líderes, que impediu o bombardeio do Palácio Piratini. É o caso mais grave. Mas fora isso, as prisões, as perseguições, as torturas campearam desde o início. Centenas de oficiais e sargentos foram presos e expurgados apenas por serem acusados de nacionalistas, brizolistas, janguistas ou comunistas… Dizia-se que era um “golpe preventivo”, para impedir o golpe de Jango… A tese do “golpe preventivo” foi tão trabalhada que no dia 31 de março de 1964 muita gente  acreditava que era mesmo o Jango quem estava dando um golpe. Por que o Meneghetti foi pra Passo Fundo? Não havia a menor razão para sair… Isso ainda não foi bem investigado, mas eu acho que ele não sabia de que lado vinha o golpe e, na dúvida, se mandou…

Acreditas que havia esse plano do Jango?

O Jango nunca teve plano de golpe.  O plano que houve, e muito bem feito, foi para desestabilizar o governo dele, para diminuir, apequenar a figura do presidente, que na verdade foi dos mais habilidosos líderes políticos que tivemos. Nunca foi golpista. Tanto que, quando lhe foi sugerido pelos militares o Estado de Sítio, ele mandou a mensagem para o Congresso… e depois retirou. Isso é ser golpista? Ao contrário, ele segurava os golpistas… O problema é que havia uma ação escancarada com muito dinheiro para desestabilizar o seu governo, inclusive com intervenção americana. Na época já se lia nos muros do Rio: “Chega de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Hoje está provado e comprovado.

Qual foi o fator decisivo na queda?

São muitos fatores. Mas um que acho deve ser aprofundado é a traição do general Amaury Kruel, comandante do II Exército. Kruel era compadre de Jango. Quando lhe chamam a atenção para o comportamento ambíguo de Kruel nos primeiros momentos do golpe, ele brincou: Kruel não o trairia. Como ia justificar para o João Vicente, de quem era padrinho?  Agora, recentemente, um coronel médico do Exército depondo na Comissão da Verdade em São Paulo contou algo fantástico: que viu duas pastas com dólares entregues por gente da Fiesp para comprar a adesão de Kruel ao golpe. Isso tem que ser melhor apurado, mas independente disso, houve a traição, do compadre! Isso abala moralmente.

O golpe, então, seria preventivo, em seguida viriam eleições…

Sim, aquele primeiro ato que não tinha número porque seria o único, previa eleições, para dois anos, está escrito. Castello assumiria para reorganizar e seriam convocadas eleições. Logo começa a mudar, uma facção militar começa a sobrepujar a outra. Grupos se formam em torno de duas posições: “Brasil Possível” dos civilistas ou “Brasil Potência” dos militaristas. Aí, começa-se a entender porque o hiato vai se estendendo. As eleições não acontecem, as cassações se prolongam, vai se agravando até explodir em 1968, com o AI5, que foi o golpe dentro do golpe.

Em 1966, a morte do sargento Raymundo escancara a tortura…

Sim, mas há um dado interessante aí, era outra situação… a imprensa, que até então minimizava a repressão, não havia censura, mas  a repercussão foi enorme, até provocou uma CPI na  Assembleia, muito bem feita,  os deputados foram muito corajosos, mas aí chega-se em 1968 e termina tudo. Após o golpe, tinha um serviço de inteligência montado pelo Golbery e a partir daí vai se montando um sistema de repressão, assimilando a doutrina francesa desenvolvida na Argélia… É um crescendo: fechadas as portas, os jovens partem para a luta armada, isso vai justificar tudo para combater os “terroristas”.

Os códigos militares foram esquecidos…

Veja só, no Vale da Ribeira eram 23 pessoas, com o Carlos Lamarca. Uma força com milhares de soldados (fala-se em cinco mil) cerca a região, os guerrilheiros escapam. Foram massacrados lá na Bahia, já sem condições de resistir. No Araguaia, mandaram os paraquedistas e nada… era um grupo pequeno, 70 pessoas, foram ficando mais cruéis… Chegaram ao paroxismo.

Foi feito há pouco um levantamento dos centros de tortura…

Pois é, fui surpreendido. No Rio Grande do Sul não foi apontado nenhum. Isto é incrível, porque aqui em Porto Alegre tivemos o primeiro centro clandestino de repressão da América Latina, o Dopinha, na rua Santo Antônio, número 600.

Começou a operar em abril de 1964, oficiais do Exército comandavam as operações de “polícia política”, com policiais civis subordinados a eles.  Contava com um grande número de arapongas e funcionou ativamente até 1966, quando estourou a morte do sargento Manoel Raymundo Soares. Na CPI que investigou a morte do sargento se chegou ao Dopinha. Raymundo passou por lá…

Por que o mataram?

Porque ele não falou. Queriam saber dos sargentos de vários Estados que tinham vindo para cá, para aqui montar um núcleo de resistência com armas e munição… O Raymundo foi atraído para um encontro, foi preso e torturado, não falou, não entregou os companheiros que aqui estavam… Ele foi preso pelo Exército, foi torturado no Dops e levado para a Ilha do Presídio. Tenho a planilha onde há a libertação forjada do Dops. Da ilha foi pro Dopinha, daí ele aparece morto. Dizem que foi afogamento, que escapou ao controle. Acho que não, foi morto na tortura porque não falou. Com este escândalo, revelado na CPI, em agosto de 66 fecha o Dopinha.

E o grupo do Raymundo?

Esse grupo não desanima, essa é a origem da guerrilha de Caparaó. Saem daqui com armas e bagagens para Caparaó.

Eram as guerrilhas brizolistas…

É que havia aqui um grande número de militares nacionalistas, brizolistas, comunistas, e inconformados com o desfecho, sem resistência. Aqui e em Montevidéu, onde estavam Brizola, Jango e centenas, senão milhares de asilados. O caso do Jefferson Cardim Osório, na guerrilha de Três Passos, por exemplo. Com um pequeno grupo, mal armado, ele sai de Montevidéu e atravessa a fronteira para desencadear um levante. Simplesmente, ele não podia aceitar que a ditadura fosse completar um ano sem reação, e partiu pra luta. Foi massacrado.

Aí a tortura foi brutal…

A tortura chega aos quartéis quando os militares adotam o conceito da guerra de contrainsurgência, baseada na experiência francesa na Argélia. Isso tem origens na Escola Nacional de Informações. Antes do golpe, o Dan Mitrione esteve bom tempo no Brasil – Minas, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Há até uma foto dele na frente do Palácio da Polícia… Daqui ele foi para o Uruguai, depois República Dominicana e voltou para o Uruguai, onde os Tupamaros o capturam e matam. Ensinava como obter confissões, inclusive por meio da tortura. Exigia assepsia total na sala de trabalho e não admitia que alguém falasse em espremer os ovos do prisioneiro. “Ovos não… testículos”. A tortura, que sempre existiu, tornou-se mais elaborada, científica… Não é uma barbaridade, é uma técnica. Essa sofisticação não tínhamos.

A justificativa…

A justificativa de que havia grupos armados não serve. Até a guerra tem regras. A Convenção de Genebra condena a tortura, diz que os inimigos mortos em combate têm que ser identificados… No mínimo, foram crimes de guerra, se querem dizer que foi uma guerra… Vítimas que sequer tomaram em armas, o caso do Wladimir Herzog, que não foi isolado… Aqui tivemos o caso do Mirajo Fernandes Simão, recolhido ao xadrez do Dops, também apareceu enforcado com o cinto no trinco da porta.

Há um número final, aceitável, para o total de mortos e desaparecidos?

Nós trabalhamos com números, a norma é a credibilidade. Quanto aos mortos e desaparecidos, 366 nós provamos. Há um número muito maior (quem sabe o que se matou do povo da selva na repressão ao Araguaia?), mas provados são esses. Mas a violência não está só nisso. Está no número de mandatos cassados, quantas pessoas foram presas, muitas sem saber porquê, os processos na Justiça Militar…

O clima de insegurança…

Lembra da piada da época? Um sujeito pergunta: “Sabe da última?”. Outro responde: “Não sei nada, tinha um amigo que sabia, agora não sabem dele”. Eles eram os donos, não podias prever… Sem falar no terror cultural, apreensão de livros… até o Brás Cubas prenderam.

 

 

31 de março de 1964: “Ninguém acreditava no golpe”

O general Mourão Filho botou o golpe na rua às cinco hora da manhã do dia 31 de março de 1964. Ele ainda vestia seu roupão vermelho (diz no seu Diário), quando anunciou por telefone que ia marchar de Juiz de Fora com suas tropas para destituir o presidente da República no Rio de Janeiro.

Como os jornais diários, que começaram a circular à hora em que Mourão disparava seus telefonemas, não traziam a notícia, o dia foi  de muitos de boatos e escassas informações.

Em Porto Alegre, a primeira informação confiável de que havia um golpe em andamento chegou as 16h30, através do rádio ao comando do III Exército, que reservadamente colocou suas unidades em prontidão.(*Hélio Silva, “1964″),

A notícia ficou restrita, no entanto. “Falava-se tanto em golpe, que ninguém acreditava nele”.

A tal ponto, que a festa de aniversário do prefeito da cidade, Sereno Chaise, iniciou por volta das 19 horas e só foi interrompida por volta das dez, quando alguém cochichou ao ouvido do aniversariante a informação recebida do Rio. Ele tomou o microfone, deu o aviso e convocou a todos para se deslocarem até a prefeitura no centro da cidade e acompanhar os acontecimentos (Sereno Chaise, depoimento).

Um comício foi improvisado, mas como pouco se sabia do que estava acontecendo, rapidamente ele se esvaziou. Um grupo que se dirigiu à sede do governo estadual encontrou a praça vazia, o Palácio Piratini  fechado, luzes apagadas, sem sinais de anormalidade. Foram todos para casa. Afinal, boato de que haveria um golpe não era novidade.

Àquela altura o major Confúcio Pamplona, à paisana, entregava ao general Adalberto Pereira dos Santos um papel pardo escrito de próprio punho pelo general Castelo Branco com os objetivos da “revolução”:

a) restaurar a legalidade,

b)restabelecer  a Federação,

c) eliminar o plano comunista da posse do poder, em desenvolvimento; defender as instituições militares, estabelecer a ordem para o advento das reformas legais.

Comandante da 6ª. Divisão de Infantaria, a principal força do III Exército no Sul, Adalberto era o chefe militar da conspiração no Estado. Pressionava inclusive o comandante geral, general Benjamin Galhardo, para que não reconhecesse o novo comandante que Jango havia nomeado naquela tarde para o III Exército, o general Ladário Telles. Telles deveria chegar a Porto Alegre na noite de 31 de março. Em vez de passar o cargo, Galhardo deveria prendê-lo.

Perto da meia noite, quando já estava para chegar o avião, Galhardo voltou atrás: “Eu não tomo uma decisão”, foi a frase que Krieger ouviu. O general Adalberto Pereira dos Santos passou a informação a Poti Medeiros, Secretário de Segurança e este informou o governador Meneghetti, que decidiu deixar a capital.  “Poucas são as possibilidades de resistência em Porto Alegre, cujo bravo povo está ameaçado pelas forças da violência e da opressão”, dizia o manifesto que Meneghetti deixou ao sair, para se por a salvo em Passo Fundo, a 300 quilômetros da capital.

O general Telles chegou a Porto Alegre a 1h20 da manhã,  já no dia primeiro de abril. Enfrentou resistências, mas por fim  conseguiu assumir o comando, na madrugada.

Uma de suas primeiras providências seria transferir o general Adalberto, de volta ao Rio. O general alegou que não poderia viajar imediatamente por causa de uma irmã, doente. No dia seguinte,  saiu de Porto Alegre e foi para Cruz Alta, depois para Santa Maria, onde as guarnições eram favoráveis ao golpe.

Na manhã de 1 de abril, o governador Ildo Meneghetti deixa o Palácio Piratini. Saída discreta, sem escolta. Antes de partir deixou folhas em branco assinadas.

Uma delas seria usada para responder ao comandante do III Exército, que no mesmo dia requisitou a Brigada Militar, a força  estadual, que fora decisiva na resistência ao golpe em 1961. O secretário do Interior, Mario Mondino, datilografou na folha assinada por Meneghetti uma resposta evasiva e não cumpriu a ordem.

Enquanto isso, Meneghetti chegava ao 2º. Batalhão de Caçadores da Brigada Militar em Passo Fundo. Requisitou a rádio local e divulgou notas incitando o povo a apoiar a revolução. À noite, num comício improvisado, Meneghetti discursou: “As forças revolucionárias colocaram um ponto final no comunismo que estava tomando conta do Brasil”.

Na manhã do dia 2 de abril, o presidente do Senado, Auro Moura Andrade, declara a aliados:  “A revolução está vitoriosa, mas temo  que pelo mito da legalidade haja derramamento de sangue. Se me derem cobertura declararei vaga a Presidência da República”.

À tarde numa sessão de três minutos, declarou que Jango havia abandonado o país (na verdade, estava voando para Porto Alegre).  À noite o deputado Rainieri Mazzilli, presidente do Congresso foi empossado como presidente.  Para Krieger,“a solução almejada pela Nação fora obtida com a quebra momentânea da legalidade, imediatamente restabelecida”.

No Rio, uma junta controlava a situação militar: Costa e Silva, Augusto Redemaker e Correia de Melo – um general, um vice-almirante e um brigadeiro. Em Brasília, um presidente interino, Rainieri Mazzilli, fora empossado às pressas pelo Congresso, às 3h50 da madrugada.

O golpe estava consumado.

 

31 de março de 1964: general conta em seu diário como deflagrou o golpe, pelo telefone

A uma e meia da madrugada de 31 de março de 1964, general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário*.

Repassa as últimas 48 horas, vividas sob grande tensão.

Há quase uma semana ele se considera pronto para o golpe, mas desconfia que o estão traindo.

Esperava um manifesto do governador de Minas, Magalhães Pinto, que seria a senha para colocar as tropas na rua.

Em vez de mandar o texto para ele antes, o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado!

“Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou. “Meu peito doía de rachar. Tive que por uma pílula de trinitrina embaixo da língua”

Olympio Mourão Filho, general de três estrelas, está em sua casa, em Juiz de Fora, onde há sete meses comanda a poderosa 4.a  Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro. Está mesmo descontrolado:

“Idiotas. O chefe militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a História…e o Guedes ( general Carlos Luís Guedes, comandante em Belo Horizonte), um falastrão vaidoso que aceitou um papel triste… Fizeram isso, bancando os heróis porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo irresponsável, arriscando uma revolução tão bem planejada, num momento de vaidade”

Depois da explosão, acalma-se:.

“Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho.  Não faz mal…”

Em seu plano original, Mourão previa sair no início da noite, com 2.300 homens, para chegar ao Rio de Janeiro antes de clarear o dia e tomar de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde se encontrava o presidente João Goulart.

Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado pelas manobras do governador Magalhães que, mineiramente, temia se envolver numa aventura.

Mourão ainda fazia anotações em seu diário, quando tocou a campainha de sua casa. Eram dois emissários do governador.

Vinham dizer que Magalhães já havia “dado o passo”, Minas se levantara contra Goulart.  Com aquele manifesto ambíguo?

Impaciente, ele os despacha rapidamente e volta ao diário, sente que estão lhe passando a perna:

“Vou partir para a luta às cinco da manhã…  Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil. Por consequência seremos, em última análise, vitoriosos ! E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro”

Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a telefonista de plantão na central de Juiz de Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”.

Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou.

No primeiro telefonema tentou alcançar o coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG…”O telefone estava enquiçado. Tõcou então para o  major Cúrcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que ganhara no quartel, pelo uso constante do cachimbo.

Em seguida,  convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos dois apareceu; Mourão foi encontrá-los dois dias depois, quando chegou ao Rio, no gabinete do general Costa e Silva, que já havia assumido o comando militar do levante).

A seguir,  ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor o presidente.

Em seguida alcançou o deputado Armando Falcão , para que avisasse Carlos Lacerda,  governador da Guanabara,  o mais notório inimigo do  governo Goulart.

Falcão,  astuto conspirador,  ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar da insurreição e que evitara sempre se envolver com Mourão.

Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força  militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários.

Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antonio Carlos Muricy, “conspirador tonitroante”, mas sem comando.

Muricy diz que foi chamado a Minas por Mourão, que está rebelado. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”.

Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua saraivada de chamadas,  fez questão  de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”.

E  não esconde o  “orgulho pela originalidade”:

“Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”.

Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu amigo Antonio Neder, “que dormia como um santo”. Gritou:  “Acabo de revoltar a  4a Divisão de Infantaria e a  4ª Região Militar”.

O amigo “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”.

Mourão responde: “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou agindo  certo, pode crer”.  Na verdade não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel.

Entrou no banheiro,  fez a barba e leu alguns salmos da Bíblia, como fazia todos os dias. Estava aberta no versículo 37, o Salmo de David : “A prosperidade dos pecadores acaba e somente os justos serão felizes”.

Leu e transcreveu em seu diário o salmo  inteiro:

“Não te indignes por causa dos malfeitores , nem tenhas inveja  dos que obram em iniquidade. Por que cedo serão  ceifados como erva e murcharão como a verdura. Confia no senhor e faze o bem: habitarás na terra, e verdadeiramente serás alimentado. Deixa a ira e abandona o furor, não de indignes para fazer o mal”.

A leitura da Bíblia remete o general à rua doutor Bozzano, em Santa Maria, 1522, onde morava em março de em 1962, onde tomou sua decisão de impedir a tomada do Brasil pelo “comunismo de Brizola”.

Ele vinha contando os dias: foram dois anos dois meses e 23 dias desde o início de sua conspiração, em Santa Maria, até ali naquele banheiro de onde ia partir para derrubar o governo.

“Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!”

Entrou no chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois).

A essa altura a notícia de um golpe militar se espalhava rapidamente, mas o comandante  do levante ainda não saíra de casa.

“A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”(Gaspari).

***

O fechamento do aeroporto de Brasilia pouco depois das nove horas da manhã do dia 31, confirmou a boataria. O governo acionava seu dispositivo de segurança para conter um golpe.

Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco, saiu de seu apartamento, em Ipanema, no Rio.

Foi  para o Ministério da Guerra,  no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar.  De lá ainda insistiu com o general Carlos Luís Guedes, comandante em  Belo Horizonte,  e o governados Magalhães Pinto para que detivessem  Mourão. “Senão voltarem agora serão derrotados”.

Guedes, depois em suas memórias, tentou associar-se à iniciativa de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho, e  assim continuaria um bom tempo.

Guedes naquelas alturas ainda  tentava saber se os americanos estavam dispostos a ajudar imediatamente com “blindados, armamentos leves e pesados , munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações…”.

Para mais tarde, informou, precisaria de equipamento para  50 mil homens!

Ao meio dia, já se movimentavam tropas do governo para atacar Mourão.

“Na avenida Brasil principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões.  Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm…Noutra, em  22 carros ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o  1º.Batalhão de Caçadores” (Gaspari).

Fardado, de capacete, Mourão foi fotografado no início da tarde, no QG da 4ª. Divisão de Infantaria.

No Rio correu o boato que o dispositivo militar do governo, mandara prender Castello Branco.  Sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha formaram um comando para protegê-lo. Os expedicionários instalaram-se no sexto andar, em torno de Castello  .

“Desligaram os elevadores principais e bloquearam as passagens de quatro pavimentos. A revolta controlava os corredores do quinto ao oitavo andar, enquanto o governo funcionava no resto”.

No décimo andar,  o gabinete do ministro da Guerra estava vazio, ele estava hospitalizado.

Quando os carros de choque da Polícia do Exército chegaram  para desalojar os revoltosos, eles já estavam fora.

Castello, acompanhado do  general Ernesto Geisel  já estavam alojados num “aparelho”, comandando  no golpe.

Chamado por Mourão, o general Antonio Carlos Muricy fora  incumbido de chefiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio.

Ao inspecionar os homens de que dispunha, Muricy  percebeu que mais da metade eram recrutas e a munição dava para poucas horas.

Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do  10º Regimento de Infantaria,  coronel Clóvis Calvão não apoiava o levante.  Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel, colocando um dos seus no lugar.

Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargento de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa.

Nada disso influiu no apetite do general. A uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta.

“Tinham-se passado oito horas  desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari)

O embaixador americano soube da rebelião a essa hora.  Imediatamente avisou o Departamento de Estado: “(…) pode ser a última hora para apoiar uma ação contra Goulart”.

“Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”.(Documento do Departamento de Estado ao secretário Dean Rusk de 31 de março).

O general Mourão ainda é um personagem enigmático e seu papel no golpe não está bem dimensionado.  Ele se considerava o mentor, o realizador de tudo, o que certamente não foi.

Em janeiro de 1962, quando ele se declarou em conspiração,  o movimento para depor o governo  já funcionava a pleno no Rio de Janeiro. Ele mesmo tentou se integrar  ao grande movimento conspiratório, mas por  se considera “o comandante” e por ser indiscreto em seus atos e palavras, foi sendo afastado. Ele mesmo registra isso em seu diário.

Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.

Em suas memórias, Mourão Filho diz que foi “acordado” para o perigo comunista num jantar oferecido ao governador Leonel Brizola, quando este falou de seus planos a ele e ao general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, brizolista, que passava suas férias em Santa Maria, em 1962.

Brizola havia frustrado a primeira tentativa de golpe com o movimento da “Legalidade”, um ano antes, e se preparava para disputar a sucessão de João Goulart.

Na versão de Mourão, o golpe foi contra Brizola, mais do que contra Jango,

*“Diário de um revolucionário”, Olympio Mourão Filho, L&PM Editores, 1978.

Entrevista: “O que fez o golpe foi a Guerra Fria”

Três jornalistas estavam na sessão de emergência do Congresso Nacional, na madrugada de primeiro de abril de 1964. Um deles era Flávio Tavares, um jovem de 29 anos, que assinava a coluna política do jornal Última Hora.

Ali, em três minutos, atropelando o bom senso e a legalidade, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou  vaga a Presidência da República e abriu o caminho político para o golpe que, militarmente, já tinha sido deflagrado pelo general Mourão Filho, em Minas.

“Assisti a tudo, mas só agora, 50 anos depois, fui descobrir os elos da conspiração e da articulação do golpe”, diz Tavares no livro 1964, O Golpe, que escreveu para contar essa tenebrosa história.

(Esta entrevista foi publicada na edição especial da Revista JÁ, alusiva aos cinquenta anos do golpe militar que derrubou  o presidente João Goulart e implantou uma ditadura que durou 21 anos)

JÁ – Como foi aquele dia em Brasília? 

Flávio Tavares – Estávamos isolados em Brasília, sem telefone, sem telex… O aeroporto estava fechado desde as nove horas da manhã, não sabíamos de nada. A única fonte era a embaixada americana, que tinha comunicação com o Rio. Então, sabíamos alguma coisa indiretamente.

Da mobilização do Mourão, sabiam?

Da mobilização do Mourão se soube vagamente, pois na verdade ela começou dia 30, com um manifesto lançado pelo governador de Minas, Magalhães Pinto. Unindo o PSD juscelinista com a UDN, ele queria criar um estado de beligerância, para ser reconhecido pelos Estados Unidos. Tanto que antes de divulgá-lo, enviou o texto por telex para  a embaixada americana no Rio. A Casa Branca e o presidente Lyndon Johnson conheceram o manifesto antes dos mineiros.

Um manifesto ambíguo, no estilo mineiro…

Era mineiro a tal ponto que o Jango ainda no Rio recebeu telefonema de um deputado do PTB de Minas se congratulando: “O Magalhães lançou um manifesto pelas reformas”. É que  no final do texto, ele fala nas reformas. Esse manifesto deixou o  Mourão furioso, porque ele queria que fosse incisivo, contra o Jango. Mas o Magalhães, como bom mineiro, deixava espaço para um recuo, caso o golpe não desse certo.

E quando o Jango chegou a Brasília?

Quando o Jango chega em Brasília no fim da tarde do dia primeiro de abril,  já em fuga, fui de fato o  único jornalista a estar com ele. Estávamos no Planalto eu e Fernando Pedreira, do Estadão, mas o Estadão era radical contra o Jango, chamava-o de “presidente totalitário”…  o Pedreira logo saiu. Tinha também uma repórter do Correio Braziliense, era comunista, amiga pessoal do Jango… Ficamos eu e essa moça, Maria da Graça Dutra, entramos no gabinete, o Jango estava arrumando uns papéis e falou: “Vou instalar o governo no Rio Grande do Sul. Nomeei o general Ladário para o III Exército…”

Mas o general Ladário Telles ainda nem tinha chegado a Porto Alegre…

Sim, ele chegou já na madrugada do dia primeiro de abril. Era general-de-divisão, foi comissionado para poder assumir o III Exército e acreditou que o Jango queria resistir.

O Jango falou em resistir?

Na verdade o Jango já saiu do Rio em fuga, ele queria negociar. O Jango não sabia resistir, ele era um grande negociador. Havia um serviço de rádio e por ele o Jango fala com Porto Alegre, com o Brizola. Havia um serviço de rádio do III Exército, que funcionava muito bem e era operado pelo major Álcio. Só que o major Álcio gravava tudo e depois passava para o pai dele, o general Costa e Silva [risos]. Havia também no Planalto um telefone no gabinete presidencial, era uma espécie de “telefone vermelho”, levantava e dava direto com a central telefônica no Rio. Por esse telefone Jango falou com o general Moraes Âncora, comandante do I Exército. Era um homem corretíssimo, legalista. Era asmático, estava com uma crise de asma, falava com dificuldade.  Ainda não havia tomado providência nenhuma, aguardava ordens… O ministro do Exército estava no Hospital, numa posição dúbia… O ministro da Aeronáutica estava em cima do muro e o ministro da Marinha, que mandava pouco, havia recém-assumido…

Ele decide então instalar o governo em Porto Alegre?

Sim, mas fundamentalmente para negociar enquanto o Congresso votaria o impeachment, o que demoraria uns oito dias…

Por que ele hesitou em autorizar a resistência?

Provavelmente porque, num conflito, como aconteceu em 1961, ele seria o menos importante. Os beligerantes é que seriam importantes, o Ladário Telles ou o Brizola… Na verdade, nada deu certo naquele dia. O Jango havia requisitado um Coronado da Varig, um jato intercontinental.  Saiu da Granja do Torto depois de gravar um “Manifesto à Nação” que foi redigido pelo Waldir Pires, pelo Almino Afonso e pelo Tancredo Neves. Só que usaram um gravador caseiro, a gravação ficou péssima, foi impossível reproduzir na rádio. Tínhamos tomado a Rádio Nacional, um grupo de jornalistas liderados pelo deputado José Aparecido, dissidente da UDN. Não adiantou nada.

Aí o Jango vai para a Base Aérea…

Sai por volta da oito, para a tomar o avião.  Só que o Coronado da Varig teve um “mal súbito”.  O velho amigo do Jango, o nosso Rubem Berta, o presidente da Varig, provavelmente se deu conta de que a coisa já tinha virado, ele ia ficar muito mal… Nunca se comprovou, mas foi uma ordem. O Jango embarca e o avião tem uma pane…

Dizem que foi sabotagem…

Não houve sabotagem. Houve um “mal súbito”, como eu chamo.  Então decidem passar para um Avro, porque o Viscount presidencial estava no conserto há 15 dias… e aí não tinha tripulação. Até que o coronel Ernani Fittipaldi, da Casa Militar, assume o comando e decolam. O Avro era um bimotor, lento. Saem às onze e meia da noite de Brasília. O Coronado faria a rota Brasília/Porto Alegre em duas horas. O Avro demorou quatro horas ou mais. Sem telefone, sem informação, pensávamos que o Jango já estava chegando a Porto Alegre e ele estava ainda saindo de Brasília.

Perdeu um tempo precioso...

A capacidade de resistência estava minada. Em Brasília, o Mazzili já estava tomando posse como presidente. O Congresso tinha feito uma artimanha: numa sessão de três minutos, sem debate, nem votação, o Auro Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República. O Darcy Ribeiro, como chefe da Casa Civil, tinha feito um ofício ao presidente do Congresso, dizendo que em vista dos acontecimentos o presidente da República o havia incumbido de comunicar que deixara Brasília para instalar o governo em Porto Alegre junto com o seu Ministério, “para proteger-se da tentativa de esbulho”. O Auro nem considerou: “A Presidência da República está acéfala… Declaro vaga a Presidência, com base no do artigo 79 da Constituição… está encerrada a sessão”.  O Zaire Alves Nunes, deputado do Rio Grande do Sul, avançou para bater no Auro: “Seu filho da puta…” Não havia o que fazer… Na saída passo no gabinete do Tancredo Neves, ele diz: “Está tudo terminado”. Como bom mineiro, o Tancredo não era de resistir, pelo contrário…

No palácio do Planalto, como foi?

Naquela caminhada da Câmara dos Deputados até o Planalto, às três da madrugada, me veio à cabeça um consolo… Puxa, isso até é bom, porque o Brizola não vai ter mais incompatibilidade, vai poder ser candidato à Presidência…” Ingenuidade nossa, pois o golpe era, mais do que tudo, para impedir a eleição e, mais do que isso, para impedir o Brizola. Engraçado é que, depois eu conto isso para o Brizola, em Montevidéo, e ele diz: “Tu sabes que tive a mesma ideia naqueles minutos iniciais… fiquei tão decepcionado com o Jango que pensei: ‘Pelo menos, agora posso ser candidato”.  Pura ingenuidade…

E a posse do Mazzili, também foi a jato, né?

Fomos para o Planalto, onde ele ia tomar posse.  Na hora alguém disse: “Falta um general”. Aí  saíram para buscar um general… Um grupo de deputados entra no gabinete do Darcy Ribeiro e se deparou com o general Nicolau Fico, que era de Bagé, mas já tinha virado. Darcy estava furioso, expulsa todo o mundo, xingando. Meia hora depois, conseguem o general André Fernandes, chefe do Gabinete do ministro da Guerra, um general apagado, que em seguida vai ser chefe da Casa Civil do Mazzilli, que então toma posse.

A que hora foi dada a posse?

Pouco antes das quatro da madrugada… dez pras quatro mais ou menos.

O Jango chegou a Porto Alegre às 3h15 minutos…

A essa altura o Auro já havia declarado vaga a Presidência… E menos de uma hora depois foi dada a posse. Quer dizer, quando ele chegou ao Rio Grande, estava decidido…

O Auro tinha raiva do Jango, não é?

Isso foi decisivo. O Auro tinha ódio do Jango e com razão. O Jango tinha feito uma grande sacanagem com ele, coisa da honra pessoal. O Jango achava que tinha feito uma grande jogada política, mas…

Foi sacanagem mesmo…

Era típico das manobras do Jango. Ele convida o Auro para ser primeiro-ministro.  O Auro aceita, tem o voto de confiança no Congresso e passa a escolher o Ministério, ministros de confiança dele. O Jango queria influir, mas o Auro não o consultou. O Auro, que era inteligente, sagaz, com aquela história de ser primeiro-ministro… Jango pede a ele que assine uma carta de renúncia, alegando que podia surgir algum problema insolúvel entre os dois. Na ânsia de ser primeiro-ministro, ele aceitou. Uma carta de três linhas: “Por esse meio renuncio ao cargo de primeiro-ministro tal e tal…” O Jango guarda na gaveta. Dias depois, o Auro está no Congresso, já tinha convidado alguns ministros, tinha começado a escolher… O Auro está no gabinete dele no Senado… Há um alto-falante que transmite as sessões… de repente o líder trabalhista, deputado Almino Afonso, pede a palavra e anuncia que o primeiro-ministro acaba de renunciar. Auro fica sabendo que renunciou pelo alto falante.

Uma manobra do Jango?

Ele telefonou para o Almino Afonso. Disse, textualmente: “Me diz… pelo Regimento Interno tu, como líder, podes pedir a palavra a qualquer momento, para uma comunicação?” O Almino diz: “Posso”. “Podes pedir agora?” “Sim…” “Então há uma comunicação urgentíssima… Comunica que o Auro renunciou”. O Almino se espanta: “Como?”. “Pode anunciar, tenho uma carta dele aqui…” Almino vai para a tribuna e anuncia. Foi o Almino quem me contou isso, tempos depois… Então, o Auro tinha um ódio visceral do Jango… Em 1961, quando os militares tentaram impedir Jango de assumir, o Auro foi a favor da posse.  Então, do ponto de vista da honra pessoal, o Auro tinha razão.

O Jango não era dado a deslealdades, não é?

Não, mas essas coisas eram bem do estilo da época. Era uma coisa getuliana, só que o Getúlio Vargas fazia as coisas de uma forma mais astuta.  O Getúlio faria com que o próprio Auro se visse na contingência da renunciar… O Getúlio era o grande espelho de Jango, só que ele não era o Getúlio. Não tinha a experiência do Getúlio, que tinha sido presidente do Rio Grande do Sul, ministro da Fazenda, chefe da Revolução de 30… A experiência do Jango era parlamentar. Sua passagem pelo Ministério do Trabalho foi curta… O Jango era muito moço, tinha quarenta e poucos… Ele morreu com 57 anos, muito novo.

Agora, os erros da esquerda…

Faço essa revisão há muito tempo. O Francisco Julião, por exemplo, foi um dos maiores embustes que este país conheceu. Mantinha uma aparência de simplicidade e humildade absoluta, coisa que ele não era. Era um farsante, um místico de esquerda, convencido de que ia ser o Fidel Castro do Brasil. Isso naquele contexto em que o Fidel era a grande figura não só da esquerda mundial, era a grande figura heróica e humana daqueles tempos. Ele havia vencido uma ditadura odiosa e vencido mesmo, pelas armas. Para ter uma ideia, o Fidel foi aplaudido nos Estados Unidos quando visitou o país. Foi aclamado pela multidão em Buenos Aires. Quando veio ao Brasil foi elogiado até pelo Carlos Lacerda. O Julião queria ser o Fidel brasileiro e foi o grande provocador daqueles anos.

O homem das Ligas Camponesas…

Vou contar um detalhe: em 1969, eu saí do país no grupo dos 15 presos políticos que foram trocados pelo embaixador americano Burke Elbrick, junto estava o Gregório Bezerra, o grande dirigente comunista que organizava os sindicatos rurais no Nordeste. Era pernambucano como o Julião. Quando chegamos ao México, eu digo para o Gregório: “Vamos visitar o Julião”. O Julião estava asilado lá. Aí, noto que o Gregório não quer aparecer do lado do Julião. Ele me diz: “Camarada Flávio, não tenho nenhum interesse em falar com Julião”. Gregório era um homem respeitabilíssimo, era o Velho, tinha sessenta e tantos anos. Depois é que fui saber: o Gregório tinha feito um trabalho sério no Nordeste de organização dos sindicatos rurais. O Julião fazia agitação.  Pegou as Ligas Camponeses, articuladas pelo Pedro Teixeira, um grande líder, assassinado em 1962, e fazia demagogia pura. Só que ninguém sabia… Ele foi eleito deputado federal por Pernambuco, mas foi comparecer pela primeira vez na Câmara no dia 30 de março de 1964, para não perder o mandato por faltas continuadas. Não era conhecido nem pelos guardas da Câmara, que não queriam deixar ele entrar. Chega à tribuna, no meio daquela crise, e fala como um general… Anuncia que 60 mil homens das Ligas Camponesas, armados, estão prontos para se rebelar no Brasil inteiro… Cinco mil só no distrito federal… Na verdade, não tinha nada…

Mas figuras respeitáveis, como o Prestes, erraram também…

É, tem a célebre reunião em Moscou em que ele diz que não havia a mínima chance de golpe, pouco antes do golpe… Depois se soube também que Prestes disse nesta reunião que no Comitê Central do Partido Comunista do Brasil tinha um monte de generais… Essas coisas davam um vigor falso para a esquerda. Eu tenho muito respeito pelo Prestes, pela figura íntegra dele, mas ele foi sempre um sonhador, sempre acreditou nas coisas sem penetrar no âmago das coisas. Na revolução de 30, o Prestes recebeu uma proposta do Getúlio aqui no Palácio Piratini, ele mesmo conta isso… Ele vivia na Argentina e veio clandestino falar com o Getúlio, que oferece a ele a chefia militar da revolução, ele era o grande herói, o capitão Luiz Carlos Prestes, da Coluna. Ele começa a falar, diz que só acredita na revolução socialista, proletária, que não acredita naquela revolução burguesa… Getúlio só ouvindo… No fim, segundo o próprio Prestes, Getúlio  diz mais ou menos o seguinte: “Sua dialética é bela, profunda e convincente, mas a mim não convenceu…”. O Prestes queria outra revolução… preparar o proletariado… nem havia o proletariado, no sentido sociológico.  Havia pobres, sem cultura urbana, sem organização… Então, esses otimismos do Prestes…

O Brizola também foi um pouco irrealista, em 1962, por exemplo…

Aí, é outra coisa. O Brizola ia ser deputado pelo Paraná, foi convencido… que tinha que ser candidato pelo Rio de Janeiro,  para enfrentar o Carlos Lacerda,  governador do Rio de Janeiro. O problema do Brizola é outro. O Brizola nunca preparou herdeiros.   O Brizola nunca foi corrupto… Foi investigado de todo jeito nunca acharam nada…

Nem herdeiros, nem concorrentes…

Terminou com todos os concorrentes aqui no Rio Grande do Sul: José Diogo Brochado da Rocha, Fernando Ferrari, Loureiro da Silva… a consequência é que na eleição para governador em 1962 não havia um candidato, então o trabalhismo no Rio Grande do Sul foi escolher Egydio Michaelsen, diretor  jurídico do  Banco Agrícola Mercantil (que depois veio a ser o Unibanco), nada representativo do trabalhismo.

E então sofreu uma derrota que foi decisiva em 1964…

As melhores e as piores recordações da minha vida foram com o Brizola… Quando cheguei do exílio, por exemplo, tive uma recepção calorosa no Rio. Quando desembarquei o Galeão, um funcionário me disse: “O Brizola chegou de manhã cedo e está no aeroporto à sua espera”. Ele tinha chegado do México, de uma reunião da Internacional Socialista. Chego e estão lá umas 50 pessoas, a tevê Globo vem me entrevistar. Estou junto ao Brizola e a Neusa. Uma das perguntas que me fazem: “para qual partido vai entrar?” Respondi com uma expressão que ele usava: “Na camisa de força do regime militar, partido nenhum. Meu partido é o jornalismo”. No que digo isso, o Brizola se retira. À noite, vou ao Hotel Everest, onde o Brizola estava hospedado. Havia uma reunião do PTB, ele me diz: “Fica aí, é só o pessoal do Rio…”, e me dá um chá-de-banco. Quarenta minutos depois, ele sai: “Flávio, vem aqui. Tu fizeste nessa manhã algo terrível, tomei como uma agressão. Eu estava ao teu lado,  e disseste que não vais te filiar a partido nenhum. Isso é uma afronta…”  Não admitia posições discordantes…

Os erros da esquerda alimentaram o discurso golpista.

Isso é muito esquemático. Não foi o discurso da esquerda que alimentou ou deu pretexto à conspiração e ao golpe. O que fez o golpe foi a Guerra Fria. Isso hoje está provado.  No dia 30 de julho de 1962, na Casa Branca, Lincoln Gordon convence o Kennedy que o Brasil está sendo comunizado e eles têm que intervir, para evitar uma outra Cuba. Transcrevo todo o diálogo no meu livro.

Mas o discurso da esquerda radical assustou…

Sem dúvida, o discurso do Julião… e do Brizola, também.  Agora, quem atiçou o golpe foi a Guerra Fria. Em 1962, quando Vernon Walters vem ao Brasil como adido militar para preparar o golpe, quem o recebe no aeroporto é o general Ulhoa Cintra, que não se conformou com a solução que levou Jango ao poder. Quem atua como contato com o coronel Vernon Walters e os militares da conspiração é o Ulhoa Cintra. São os derrotados de 1961, engajados na Guerra Fria. O general Golbery dizia que o Jango não poderia ser presidente porque era homem dos interesses da União Soviética no Brasil.

O IPES foi criado três meses depois da posse de Jango…

Foi antes, já em setembro de 1962 ele está em gestação. O general Golbery pede a reforma ainda em setembro e já estava conspirando. Em novembro formaliza, se instala no Rio. O IPES foi o grande instrumento na guerra psicológica. O Golbery auxiliado por um sujeito que hoje é um romancista conhecido, o Rubem Fonseca… Começou a fazer ficção ali, nos filmes que ele fazia para o IPES, que são muito bem-feitos, maravilhosos, tecnicamente falando. O IPES foi o “grande contubérnio”.

Até panfletos com listas de pessoas a serem eliminadas eram forjados…

Tudo inventado, falsificado, para assustar. O IPES foi a grande arma ideológica. Antes, já no governo do Juscelino, funcionava o IBAD, que fazia o trabalho sujo. Uma comissão de inquérito da Câmara de Deputados provou isso. Bancava os caras, isso está mostrado no filme “O Dia que Durou 21 Anos”. Os Estados Unidos, imediatamente, reconheceram os golpistas e estavam prontos a intervir, se necessário.

Foi por saber disso que Jango não quis resistir?

Jango nunca soube. O que San Thiago Dantas disse a Jango é que Minas Gerais seria reconhecida como Estado beligerante… Mas da movimentação da esquadra americana, ele só foi saber em 1976, quando liberaram os papéis reservados.  La Nación, de Buenos Aires, publicou uma nota sobre o livro de Phyllis Parker que revelou isso. Jango ficou sabendo aí, no exílio.

Mas ele havia sofrido pressões…

Sim, muitas pressões… Quando o Jango visita os Estados Unidos, em 1962, o John Kennedy foi esperá-lo na escadinha do avião. Já no helicóptero que transporta os dois até a Casa Branca, Kennedy o questiona sobre a reforma agrária. Jango desfilou em Nova York sob chuva de papel picado, tudo programado, para impressioná-lo. O Lincoln Gordon sugeriu outra coisa: uma visita do Jango à Base Militar de Offutt. Ele foi o primeiro chefe de Estado a ser recebido lá. Um general chamado Thomas Powell começa a mostrar num computador… Ninguém tinha visto antes… mostrava na tela a rota dos  B52 com bomba atômica, voando 24 horas… Em seguida disse: “Vou lhe mostrar uma outra coisa”, e levou Jango para ver o silo subterrâneo onde estava o foguete intercontinental Atlas, a mais poderosa arma do planeta, capaz de eliminar 500 mil pessoas em Moscou, Pequim, ou São Paulo. Jango, com o general Kruel, chega à base sorridente e sai completamente acabrunhado…

Lincoln Gordon foi o grande artífice…

Sim, isso hoje está provado. Reproduzo no meu livro os documentos e gravações que foram liberados depois de 30 anos. Ele e Vernon Walters alimentaram a conspiração, com muito dinheiro inclusive.

 

1964: O governo caiu sem resistência

Nas primeiras horas da manhã de 31 de março de 1964, quando chegou ao Palácio Laranjeiras, no Rio,  o general Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência da República,  foi informado que havia “um levante na guarnição de Minas Gerais”.

Ele passou a informação ao presidente João Goulart, que indagou: “Você acha que isso é verdade?”. O general respondeu: “Acho, porque o general Mourão Filho e o general Luís Guedes estão conspirando há muito tempo”.

Dias antes, o general Assis Brasil havia dito ao presidente que Mourão era “um velhinho que não é de nada”.

Jango ficou fechado em seu gabinete. Saiu pouco depois das nove para visitar o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, que estava hospitalizado.

O ministro, no hospital, apontou o telefone na mesinha ao lado e tranquilizou o presidente. Estava acompanhando tudo, situação sob controle.

Jango mencionou Polícia Militar na mão do governador Carlos Lacerda, já em movimentos ostensivos pelas ruas do Rio. O general, impassível: “Deste telefone eu resolvo tudo, presidente”.

Manoel Leães, o Maneco, que foi piloto de Jango trinta anos, assistiu à conversa e em seu livro Meu Amigo Jango registra: “Até hoje acredito  que o ministro Jair Dantas Ribeiro estava mancomunado com outros generais golpistas, ao menos para facilitar a deposição do presidente”.

Dia 2 de abril: tropas ocupam pontos estratégicos no centro de Porto Alegre

A intenção de Jango, segundo diversos testemunhos, era substituir  o ministro pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Por que Jango não trocou o ministro? “Acho que ele não quis desmoralizar o general, talvez em consideração à sua doença”, diz Maneco. “O presidente João Goulart não quis substituir seu ministro para não desgostá-lo”, registra o historiador Hélio Silva.

O outro homem do dispositivo militar de Goulart era o general Assis Brasil.  Costumava dizer: “Não tem perigo. Comigo é na ponta da faca. Nosso dispositivo é o melhor já armado neste país”.

Assis Brasil disse, depois do golpe, “que nunca houve tal dispositivo militar”.

Eram três da tarde, quando Jango chamou o general Ladário Telles, que estava de férias em Friburgo. A mudança do comando no III Exército estava decidida há vários dias, mas só agora o presidente iria efetivá-la.

Seu plano era colocar o gaúcho Ladário Telles no Rio Grande do Sul, substituindo Benjamin Galhardo, que deveria voltar para o Rio e ocupar o lugar do general Castello Branco, na chefia do Estado Maior das Forças Armadas.

Castello era um dos líderes ostensivos do movimento contra o governo.

Rio: os tanques nas ruas

A caminho do palácio para a reunião com o presidente, o general Telles notou o “movimento desusado” no prédio do Ministério da Guerra: “Dizia-se que, no quinto e sexto andares, 200 oficiais armados preparavam-se para atacar o QG da 1ª Região Militar do I Exército, no terceiro e segundo andares”.

Hoje se sabe que eram sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha, que tinham ocupado quatro andares no prédio, para impedir a prisão de Castello Branco, o líder dos conspiradores.

A audiência com o presidente  durou poucos minutos. Um avião já estava à disposição para transportar Telles a Porto Alegre. Jango determinou também que ele, antes de embarcar, providenciasse a prisão de  Castello Branco.

Pela  hierarquia, cabia ao comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, executar a ordem. Ladário, então, transmitiu a ele a ordem do presidente. “Senti hesitação no general Âncora. Várias vezes fiz-lhe ver que o tempo passava e o general Castello se retiraria do Ministério sem ser preso. Somente às 18 horas Âncora chamou Castello. Me pareceu que a prisão seria efetuada…”

Àquela hora Castello Branco não estava mais no prédio do ministério. Saíra em companhia do general Ernesto Geisel e estava escondido num apartamento na avenida Atlântica.

Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal

Acreditando que a prisão seria efetuada, Ladário Telles foi para casa arrumar as malas. Eram 22h55 quando partiu. A bordo ouviu a declaração de Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, aderindo ao golpe. Chegou em Porto Alegre a 1h20, mas só na madrugada conseguiu assumir o comando, de onde, se esperava, resistiria ao golpe.

Já era tarde demais.

 

Quando Jango chegou a Porto Alegre, na madrugada de dois de abril, o Congresso já estava dando posse a outro presidente.

O presidente João Goulart chegou a Porto Alegre às 3h15 da madrugada de dois de abril. Desceu do avião fumando e tenso, mas procurou mostrar-se sorridente ao chegar ao saguão do aeroporto, onde o esperavam o comandante do III Exército, general Ladário Telles, o deputado Leonel Brizola, o prefeito Sereno Chaise, o deputado Pedro Simon e outros.

No carro, a caminho da casa do general Ladário Telles, quase não falou. Descansou um pouco e às 8h da manhã saiu na porta da casa onde falou rapidamente aos jornalistas. Disse que iria resistir.

Em seguida reuniu-se com os chefes das unidades do Exército no Rio Grande do Sul para avaliar as chances de resistência.

Há dois dias, ele via seu governo desmoronar. Primeiro no Rio, depois em Brasília e, finalmente, em Porto Alegre. Em Brasília,inclusive, àquela hora  já tinha outro na sua cadeira, o deputado Rainieri Mazzili, entronizado na madrugada pelos golpistas.

O general Telles foi o primeiro a falar e se mostrou disposto a seguir as instruções do presidente, inclusive partindo para o contra-ataque aos golpistas. Jango quis ouvir os outros generais.

O primeiro deles, Floriano Machado, disse que “qualquer resistência seria uma aventura”. Os outros seguiram no mesmo tom.

Apenas Leonel Brizola insistia em resistir, propondo a formação de corpos de voluntários que seriam apoiados por unidades que se mantinham fiéis ao presidente em São Leopoldo, Vacaria, São Borja e Bagé.

Jango atalhou: “Não quero derramamento de sangue em defesa do meu mandato”. E ordenou ao general Ladário: “Tome providências para me dirigir ao aeroporto”.

Jango voou para São Borja, onde se deslocou entre suas fazendas enquanto aguardava concessão de asilo pelo governo uruguaio. Dois dias depois, desembarcava na base aérea de Pando, próximo a Montevidéu. O golpe estava vitorioso.

4 de abril: Jango desembarca em Pando, no Uruguai. Começava o exílio

Ninguém acreditava no golpe

No dia 31,  uma terça-feira,  Porto Alegre amanheceu fria e com chuvisqueiro. O governador despachava no Palácio como se nada estivesse acontecendo. Desde cedo corriam boatos de golpe, mas isso não era novidade. O noticiário morno dos jornais do dia não indicava qualquer anormalidade.

O Correio do Povo trazia na capa um terremoto no Alasca, com manchetes para Camboja, Hungria, Espanha e Rússia. Um destaque local era a crise de atendimento na agência dos Correios, em Santa Rosa.

Outra notícia importante foi o casamento de dona Vanisa Melo com o senhor Theodoro Medeiros, em Santa Maria. O único texto sobre o Brasil era do presidente americano Lyndon Johnson acusando Jango de ter muitos comunistas no governo.

Os jornais da época desinformavam tanto assim porque ou estavam alinhados com os conspiradores, ou totalmente contra, como no caso do tablóide Última Hora – sendo o único da esquerda, cometia o mesmo pecado dos demais de defender apenas um lado.

Anos depois, Breno Caldas, dono do Correio do Povo, admitiria a parcialidade: “A posição do Correio foi favorável diante dos acontecimentos de 64. Cooperamos para sua eclosão. Aqui havia um foco dinâmico da esquerda manobrado pelo governador Brizola. Nós estávamos contra a situação que ele representava. Desta maneira, a revolução de 64 foi para nós bem-vinda, desejada e saudada”.

O resultado óbvio da parcialidade generalizada é que o povão pouco sabia das coisas. Naquele 31, os jornais traziam apenas algumas dicas da tempestade que desabaria sobre a vida política.

Na primeira página do Diário de Notícias a manchete era quase uma mensagem em código do golpe: “Em Minas Gerais, Exército e FAB em rigorosa prontidão”, sem nenhum explicação do contexto.

O mais lido cronista social da época, Ibrahim Sued, deu em sua coluna do Diário apenas uma notinha de política: “O novo ministro da Marinha é um gagá que será joguete nas mãos de Leonel Brizola e sua troupe de comunistas”. Ele fechou a coluna com uma frase romântica, “quem nunca amou, nunca viveu”.

O mesmo Diário trazia uma mensagem de Páscoa do arcebispo Dom Vicente Scherer. Ela sim vinha carregada de política: “Cabe-nos, diletos fiéis, render graças a Deus haver preservado em nosso país a paz pública e a capacidade de resistir às adversidades econômicas e sociais”.

Lendo hoje as declarações dos luminares da política gaúcha da época, seria possível perceber que alguma coisa grave iria mesmo acontecer. Por exemplo, o ex-prefeito José Loureiro da Silva,deu uma entrevista na sede da Ação Democrática Feminina (ADF), reproduzida naquele  dia pelo Correio, criticando “a ocupação de cargos da administração pública por comunistas”.

Ainda no fatídico dia 31, os jornais anunciaram uma possível reunião secreta que deveria acontecer no dia 2, no Palácio Piratini, entre os governadores Ildo Meneghetti (RS), Carlos Lacerda (RJ) e Adhemar de Barros (SP),  três conspiradores da primeira hora.

O Diário trazia uma nota interessante. Nela até se poderia identificar um dos golpistas – coisa que naquela hora poucos sabiam. Ao pé de uma lista de associados da Caixa de Assistência Social dos Oficiais, constava que “o general Humberto de Alencar Castello Branco vai deixar a chefia do Estado-Maior do Exército” – ele, Castello, deixou sim, mas para assumir, quase duas semanas depois, a cadeira de Jango.

Como 31 era terça e segunda os jornais não circulavam, eles traziam notícias do domingo anterior, de Páscoa. Alguns foram cordiais com o prefeito Sereno Chaise, que passara aquele dia visitando obras, e à primeira-dama Terezinha, por entregar 25 mil barras de chocolate Neugebauer para crianças carentes nos bairros da periferia.

Jornais saúdam o golpe

As narrativas daqueles dias variam: muita gente viu muita gente nas ruas, mas a maioria viu só algumas escaramuças no centro. A tal massa, que já começava a se sentir órfã, ainda tentou agitar, com protestos no eixo Borges de Medeiros, rua da Praia, Largo da Prefeitura e Praça da Alfândega nos dias primeiro e dois de abril. Houve repressão e correrias. Alguém deu tiros numa das janelas da CEEE,  não houve vítimas.

Porto Alegre, primeiro de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo,
viu a repressão

O Correio do Povo descreveu os protestos do dia primeiro como “atos de desatino de moradores de vilas e estudantes, sentindo-se abandonados à própria sorte”. O jornal saudou o golpe contra “o pólo infeccioso que tem em seu agente o ex-governador Leonel Brizola”.

Legislativo em parafuso

No centro da cidade, qualquer aglomeração era dispersada com violência

A Assembleia Legislativa entrou em parafuso no dia primeiro. Os deputados trabalhistas queriam instalar uma sessão permanente no teatro São Pedro, porque temiam que com o golpe a casa fosse fechada “pelos esbirros do governador Ildo Meneghetti”, como diziam.

No plenário, o deputado Paulo Brossard de Souza Pinto, mais tarde um formidável opositor da ditadura, fez um discurso a favor do golpe: “Felizmente para nós, as Forças Armadas encontraram em seu íntimo a defesa das instituições democráticas e a ordem constitucional que as exprime”.

A resposta veio de Pedro Simon, num duro protesto contra a deposição do presidente. Na Câmara de Vereadores, o presidente Célio Marques Fernandes, mais tarde prefeito nomeado pela ditadura, convocou uma sessão extraordinária – apressava-se para assumir o cargo vago com a prisão de Sereno Chaise, horas depois.

Apesar do feriado bancário e escolar, que esvaziou a cidade, uma massa descrita como “janguista-esquerdista-brizolista-comunista” saiu às ruas, mas não chegou a reunir  mais de três mil pessoas. Policiais do Dops e soldados da Brigada e do Exército dissolviam com violência as aglomerações. A Folha da Tarde saiu pouco depois do meio-dia, já trombeteando a vitória e elogiando o rigor das tropas na manutenção da ordem.

Brizola: “Tomem os quartéis a unha”

O ponto alto da resistência foi o comício da noite do dia primeiro no Largo da Prefeitura. Brizola falou por volta das oito, para duas mil pessoas.

Brizola vinha botando fogo na massa todo dia pelo rádio e repetiu no comício seu mantra:

“Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército. Atenção, sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas… O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas… tomem a iniciativa, a unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores…”

Dali ele foi para o QG do III Exército usar o rádio para falar com Jango. O presidente estava voando para Porto Alegre e os dois teriam concordado que nenhuma reação seria organizada enquanto ele não chegasse. Mas Jango só chegaria na madrugada do dia 2 de abril, quando já era tarde para a resistência.

“A noite em que chegaram os tanques”

A casa que foi cenário do último ato de Jango no governo ainda está lá.

Foi ali, na esquina da Cristóvão Colombo com a Carlos von Koseritz, que o general Ladário Telles hospedou Jango nas suas últimas nove horas como presidente do Brasil, em 2 de abril.

A casa já foi mais elegante, na época em que o bairro era mais nobre – hoje ela está numa esquina barulhenta, vizinha de um hotel e de um restaurante japonês. Os vizinhos amam sua presença porque um destacamento 24 horas guarda o pedaço.

A tropa se esmera para cuidar do pequeno jardim da frente, com uma burocrática roseira no centro, uma cerca viva de metro e meio de altura e uma discreta guarita.

Naquele dia  2 de abril, a calma das noites da Cristóvão foi quebrada às 4 horas. O professor Francisco Outeiro, vizinho, lembrou anos mais tarde: “Acordei com aquele barulho enorme, estranho e assustador. Meu pai disse ‘são as lagartas dos tanques nos paralelepípedos’. Abrimos a janela e eram mesmo tanques”.

Dia 3 de abril:
já não há mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas

A barulheira também incomodou seu Albino Neitcke,  dono da padaria Vitória, na esquina oposta da Koseritz. Mais tarde, às 7 da manhã, quando abriu a loja, soldados apareceram ordenando que ele afastasse mulheres e crianças.

“Eles ocuparam todas as esquinas com seus tanques”, lembrou seu Albino. “Um deles ficou estacionado no meu jardim”. Outra lembrança: “Minha mulher não deu bola para a ordem e ficou trabalhando, aquele foi um dia de muito movimento”.

No Parque da Redenção, o canhão desperta curiosidade

A marquise da padaria ficou tomada por fotógrafos. “Deputados e outros políticos entravam toda hora na loja para tomar café, comer sanduíches, foi mesmo uma loucura”.

Seu Albino contou que os mordomos da casa do general vieram buscar quantidades extras de pão, manteiga, queijo e salame. “De repente, vi o Brizola sair da casa pela porta da frente, entrar num Fusca clarinho que estava estacionado no portão e descer a rua, ele mesmo dirigindo”.

Os jornalistas e os tanques sumiram para sempre. A padaria Vitória cresceu, continua firme na esquina. Mordomos do general ainda fazem compras ali. No jardim, um pé de cinamomo cresceu onde antes o tanque ficara estacionado.

Legalidade não se repetiu

No início da noite de 31 de março, o governador Ildo Meneghetti tentava saber a exata extensão da rebelião militar, quando foram cortadas as linhas telefônicas do Palácio Piratini. O governador convocou seus auxiliares para uma reunião. Havia chegado uma notícia alarmante: os sargentos haviam tomado um quartel em Bagé, obrigando o comandante a se refugiar em outra unidade.

O governador ficou também sabendo que ia chegar naquela noite um novo comandante para o III Exército, o mais poderoso dos quatro exércitos brasileiros, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.

A lembrança da Legalidade, menos de três anos antes, fazia do Rio Grande do Sul um ponto estratégico, onde certamente os defensores de Jango tentariam resistir. Mas agora a situação era outra.

A começar pela vitória da oposição a Jango e Brizola, que conseguira ganhar a eleição de 1962 e colocar o conservador Meneghetti, da UDN, no governo do Estado. Brizola estava em Porto Alegre no dia 31 de março. Só que agora ele era um deputado federal, não podia dar ordens à Brigada Militar nem requisitar emissoras de rádio para mobilizar a população em defesa do governo.

Além disso, ao contrário dos seus adversários, que há muito se preparavam para impedir que se organizasse uma resistência ao golpe no Rio Grande do Sul, os aliados de Brizola estavam completamente despreparados.

Mala de dinheiro para pagar a polícia

No dia  2, depois do meio dia, Jango decidiu partir para o exílio.  Não havia mais como resistir.

Foi aí que começaram as trevas. Os golpistas soltaram as rédeas do Dops para prender seus adversários.

Houve um pequeno atraso no cronograma das prisões porque a turma estava com os salários atrasados. Os zelosos policiais se recusavam a prender antes de receber.

“De repente, uma mala de dinheiro apareceu no Palácio da Polícia e todos foram pagos”, lembrou anos mais tarde o então delegado Cláudio Barbedo. Com tal estímulo, um dos primeiros presos foi o prefeito Sereno Chaise – entrou no xadrez vestindo um impecável sobretudo cor de camelo.

(Textos de Elmar Bones e Renan Antunes de Oliveira. Publicado originalmente na Revista JÁ)