1964: O governo caiu sem resistência

31 de março de 1964: o golpe as ruas

Nas primeiras horas da manhã de 31 de março de 1964, quando chegou ao Palácio Laranjeiras, no Rio,  o general Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência da República,  foi informado que havia “um levante na guarnição de Minas Gerais”.

Ele passou a informação ao presidente João Goulart, que indagou: “Você acha que isso é verdade?”. O general respondeu: “Acho, porque o general Mourão Filho e o general Luís Guedes estão conspirando há muito tempo”.

Dias antes, o general Assis Brasil havia dito ao presidente que Mourão era “um velhinho que não é de nada”.

Jango ficou fechado em seu gabinete. Saiu pouco depois das nove para visitar o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, que estava hospitalizado.

O ministro, no hospital, apontou o telefone na mesinha ao lado e tranquilizou o presidente. Estava acompanhando tudo, situação sob controle.

Jango mencionou Polícia Militar na mão do governador Carlos Lacerda, já em movimentos ostensivos pelas ruas do Rio. O general, impassível: “Deste telefone eu resolvo tudo, presidente”.

Manoel Leães, o Maneco, que foi piloto de Jango trinta anos, assistiu à conversa e em seu livro Meu Amigo Jango registra: “Até hoje acredito  que o ministro Jair Dantas Ribeiro estava mancomunado com outros generais golpistas, ao menos para facilitar a deposição do presidente”.

Dia 2 de abril: tropas ocupam pontos estratégicos no centro de Porto Alegre

A intenção de Jango, segundo diversos testemunhos, era substituir  o ministro pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Por que Jango não trocou o ministro? “Acho que ele não quis desmoralizar o general, talvez em consideração à sua doença”, diz Maneco. “O presidente João Goulart não quis substituir seu ministro para não desgostá-lo”, registra o historiador Hélio Silva.

O outro homem do dispositivo militar de Goulart era o general Assis Brasil.  Costumava dizer: “Não tem perigo. Comigo é na ponta da faca. Nosso dispositivo é o melhor já armado neste país”.

Assis Brasil disse, depois do golpe, “que nunca houve tal dispositivo militar”.

Eram três da tarde, quando Jango chamou o general Ladário Telles, que estava de férias em Friburgo. A mudança do comando no III Exército estava decidida há vários dias, mas só agora o presidente iria efetivá-la.

Seu plano era colocar o gaúcho Ladário Telles no Rio Grande do Sul, substituindo Benjamin Galhardo, que deveria voltar para o Rio e ocupar o lugar do general Castello Branco, na chefia do Estado Maior das Forças Armadas.

Castello era um dos líderes ostensivos do movimento contra o governo.

Rio: os tanques nas ruas

A caminho do palácio para a reunião com o presidente, o general Telles notou o “movimento desusado” no prédio do Ministério da Guerra: “Dizia-se que, no quinto e sexto andares, 200 oficiais armados preparavam-se para atacar o QG da 1ª Região Militar do I Exército, no terceiro e segundo andares”.

Hoje se sabe que eram sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha, que tinham ocupado quatro andares no prédio, para impedir a prisão de Castello Branco, o líder dos conspiradores.

A audiência com o presidente  durou poucos minutos. Um avião já estava à disposição para transportar Telles a Porto Alegre. Jango determinou também que ele, antes de embarcar, providenciasse a prisão de  Castello Branco.

Pela  hierarquia, cabia ao comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, executar a ordem. Ladário, então, transmitiu a ele a ordem do presidente. “Senti hesitação no general Âncora. Várias vezes fiz-lhe ver que o tempo passava e o general Castello se retiraria do Ministério sem ser preso. Somente às 18 horas Âncora chamou Castello. Me pareceu que a prisão seria efetuada…”

Àquela hora Castello Branco não estava mais no prédio do ministério. Saíra em companhia do general Ernesto Geisel e estava escondido num apartamento na avenida Atlântica.

Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal

Acreditando que a prisão seria efetuada, Ladário Telles foi para casa arrumar as malas. Eram 22h55 quando partiu. A bordo ouviu a declaração de Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, aderindo ao golpe. Chegou em Porto Alegre a 1h20, mas só na madrugada conseguiu assumir o comando, de onde, se esperava, resistiria ao golpe.

Já era tarde demais.

 

Quando Jango chegou a Porto Alegre, na madrugada de dois de abril, o Congresso já estava dando posse a outro presidente.

O presidente João Goulart chegou a Porto Alegre às 3h15 da madrugada de dois de abril. Desceu do avião fumando e tenso, mas procurou mostrar-se sorridente ao chegar ao saguão do aeroporto, onde o esperavam o comandante do III Exército, general Ladário Telles, o deputado Leonel Brizola, o prefeito Sereno Chaise, o deputado Pedro Simon e outros.

No carro, a caminho da casa do general Ladário Telles, quase não falou. Descansou um pouco e às 8h da manhã saiu na porta da casa onde falou rapidamente aos jornalistas. Disse que iria resistir.

Em seguida reuniu-se com os chefes das unidades do Exército no Rio Grande do Sul para avaliar as chances de resistência.

Há dois dias, ele via seu governo desmoronar. Primeiro no Rio, depois em Brasília e, finalmente, em Porto Alegre. Em Brasília,inclusive, àquela hora  já tinha outro na sua cadeira, o deputado Rainieri Mazzili, entronizado na madrugada pelos golpistas.

O general Telles foi o primeiro a falar e se mostrou disposto a seguir as instruções do presidente, inclusive partindo para o contra-ataque aos golpistas. Jango quis ouvir os outros generais.

O primeiro deles, Floriano Machado, disse que “qualquer resistência seria uma aventura”. Os outros seguiram no mesmo tom.

Apenas Leonel Brizola insistia em resistir, propondo a formação de corpos de voluntários que seriam apoiados por unidades que se mantinham fiéis ao presidente em São Leopoldo, Vacaria, São Borja e Bagé.

Jango atalhou: “Não quero derramamento de sangue em defesa do meu mandato”. E ordenou ao general Ladário: “Tome providências para me dirigir ao aeroporto”.

Jango voou para São Borja, onde se deslocou entre suas fazendas enquanto aguardava concessão de asilo pelo governo uruguaio. Dois dias depois, desembarcava na base aérea de Pando, próximo a Montevidéu. O golpe estava vitorioso.

4 de abril: Jango desembarca em Pando, no Uruguai. Começava o exílio

Ninguém acreditava no golpe

No dia 31,  uma terça-feira,  Porto Alegre amanheceu fria e com chuvisqueiro. O governador despachava no Palácio como se nada estivesse acontecendo. Desde cedo corriam boatos de golpe, mas isso não era novidade. O noticiário morno dos jornais do dia não indicava qualquer anormalidade.

O Correio do Povo trazia na capa um terremoto no Alasca, com manchetes para Camboja, Hungria, Espanha e Rússia. Um destaque local era a crise de atendimento na agência dos Correios, em Santa Rosa.

Outra notícia importante foi o casamento de dona Vanisa Melo com o senhor Theodoro Medeiros, em Santa Maria. O único texto sobre o Brasil era do presidente americano Lyndon Johnson acusando Jango de ter muitos comunistas no governo.

Os jornais da época desinformavam tanto assim porque ou estavam alinhados com os conspiradores, ou totalmente contra, como no caso do tablóide Última Hora – sendo o único da esquerda, cometia o mesmo pecado dos demais de defender apenas um lado.

Anos depois, Breno Caldas, dono do Correio do Povo, admitiria a parcialidade: “A posição do Correio foi favorável diante dos acontecimentos de 64. Cooperamos para sua eclosão. Aqui havia um foco dinâmico da esquerda manobrado pelo governador Brizola. Nós estávamos contra a situação que ele representava. Desta maneira, a revolução de 64 foi para nós bem-vinda, desejada e saudada”.

O resultado óbvio da parcialidade generalizada é que o povão pouco sabia das coisas. Naquele 31, os jornais traziam apenas algumas dicas da tempestade que desabaria sobre a vida política.

Na primeira página do Diário de Notícias a manchete era quase uma mensagem em código do golpe: “Em Minas Gerais, Exército e FAB em rigorosa prontidão”, sem nenhum explicação do contexto.

O mais lido cronista social da época, Ibrahim Sued, deu em sua coluna do Diário apenas uma notinha de política: “O novo ministro da Marinha é um gagá que será joguete nas mãos de Leonel Brizola e sua troupe de comunistas”. Ele fechou a coluna com uma frase romântica, “quem nunca amou, nunca viveu”.

O mesmo Diário trazia uma mensagem de Páscoa do arcebispo Dom Vicente Scherer. Ela sim vinha carregada de política: “Cabe-nos, diletos fiéis, render graças a Deus haver preservado em nosso país a paz pública e a capacidade de resistir às adversidades econômicas e sociais”.

Lendo hoje as declarações dos luminares da política gaúcha da época, seria possível perceber que alguma coisa grave iria mesmo acontecer. Por exemplo, o ex-prefeito José Loureiro da Silva,deu uma entrevista na sede da Ação Democrática Feminina (ADF), reproduzida naquele  dia pelo Correio, criticando “a ocupação de cargos da administração pública por comunistas”.

Ainda no fatídico dia 31, os jornais anunciaram uma possível reunião secreta que deveria acontecer no dia 2, no Palácio Piratini, entre os governadores Ildo Meneghetti (RS), Carlos Lacerda (RJ) e Adhemar de Barros (SP),  três conspiradores da primeira hora.

O Diário trazia uma nota interessante. Nela até se poderia identificar um dos golpistas – coisa que naquela hora poucos sabiam. Ao pé de uma lista de associados da Caixa de Assistência Social dos Oficiais, constava que “o general Humberto de Alencar Castello Branco vai deixar a chefia do Estado-Maior do Exército” – ele, Castello, deixou sim, mas para assumir, quase duas semanas depois, a cadeira de Jango.

Como 31 era terça e segunda os jornais não circulavam, eles traziam notícias do domingo anterior, de Páscoa. Alguns foram cordiais com o prefeito Sereno Chaise, que passara aquele dia visitando obras, e à primeira-dama Terezinha, por entregar 25 mil barras de chocolate Neugebauer para crianças carentes nos bairros da periferia.

Jornais saúdam o golpe

As narrativas daqueles dias variam: muita gente viu muita gente nas ruas, mas a maioria viu só algumas escaramuças no centro. A tal massa, que já começava a se sentir órfã, ainda tentou agitar, com protestos no eixo Borges de Medeiros, rua da Praia, Largo da Prefeitura e Praça da Alfândega nos dias primeiro e dois de abril. Houve repressão e correrias. Alguém deu tiros numa das janelas da CEEE,  não houve vítimas.

Porto Alegre, primeiro de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo,
viu a repressão

O Correio do Povo descreveu os protestos do dia primeiro como “atos de desatino de moradores de vilas e estudantes, sentindo-se abandonados à própria sorte”. O jornal saudou o golpe contra “o pólo infeccioso que tem em seu agente o ex-governador Leonel Brizola”.

Legislativo em parafuso

No centro da cidade, qualquer aglomeração era dispersada com violência

A Assembleia Legislativa entrou em parafuso no dia primeiro. Os deputados trabalhistas queriam instalar uma sessão permanente no teatro São Pedro, porque temiam que com o golpe a casa fosse fechada “pelos esbirros do governador Ildo Meneghetti”, como diziam.

No plenário, o deputado Paulo Brossard de Souza Pinto, mais tarde um formidável opositor da ditadura, fez um discurso a favor do golpe: “Felizmente para nós, as Forças Armadas encontraram em seu íntimo a defesa das instituições democráticas e a ordem constitucional que as exprime”.

A resposta veio de Pedro Simon, num duro protesto contra a deposição do presidente. Na Câmara de Vereadores, o presidente Célio Marques Fernandes, mais tarde prefeito nomeado pela ditadura, convocou uma sessão extraordinária – apressava-se para assumir o cargo vago com a prisão de Sereno Chaise, horas depois.

Apesar do feriado bancário e escolar, que esvaziou a cidade, uma massa descrita como “janguista-esquerdista-brizolista-comunista” saiu às ruas, mas não chegou a reunir  mais de três mil pessoas. Policiais do Dops e soldados da Brigada e do Exército dissolviam com violência as aglomerações. A Folha da Tarde saiu pouco depois do meio-dia, já trombeteando a vitória e elogiando o rigor das tropas na manutenção da ordem.

Brizola: “Tomem os quartéis a unha”

O ponto alto da resistência foi o comício da noite do dia primeiro no Largo da Prefeitura. Brizola falou por volta das oito, para duas mil pessoas.

Brizola vinha botando fogo na massa todo dia pelo rádio e repetiu no comício seu mantra:

“Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército. Atenção, sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas… O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas… tomem a iniciativa, a unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores…”

Dali ele foi para o QG do III Exército usar o rádio para falar com Jango. O presidente estava voando para Porto Alegre e os dois teriam concordado que nenhuma reação seria organizada enquanto ele não chegasse. Mas Jango só chegaria na madrugada do dia 2 de abril, quando já era tarde para a resistência.

“A noite em que chegaram os tanques”

A casa que foi cenário do último ato de Jango no governo ainda está lá.

Foi ali, na esquina da Cristóvão Colombo com a Carlos von Koseritz, que o general Ladário Telles hospedou Jango nas suas últimas nove horas como presidente do Brasil, em 2 de abril.

A casa já foi mais elegante, na época em que o bairro era mais nobre – hoje ela está numa esquina barulhenta, vizinha de um hotel e de um restaurante japonês. Os vizinhos amam sua presença porque um destacamento 24 horas guarda o pedaço.

A tropa se esmera para cuidar do pequeno jardim da frente, com uma burocrática roseira no centro, uma cerca viva de metro e meio de altura e uma discreta guarita.

Naquele dia  2 de abril, a calma das noites da Cristóvão foi quebrada às 4 horas. O professor Francisco Outeiro, vizinho, lembrou anos mais tarde: “Acordei com aquele barulho enorme, estranho e assustador. Meu pai disse ‘são as lagartas dos tanques nos paralelepípedos’. Abrimos a janela e eram mesmo tanques”.

Dia 3 de abril:
já não há mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas

A barulheira também incomodou seu Albino Neitcke,  dono da padaria Vitória, na esquina oposta da Koseritz. Mais tarde, às 7 da manhã, quando abriu a loja, soldados apareceram ordenando que ele afastasse mulheres e crianças.

“Eles ocuparam todas as esquinas com seus tanques”, lembrou seu Albino. “Um deles ficou estacionado no meu jardim”. Outra lembrança: “Minha mulher não deu bola para a ordem e ficou trabalhando, aquele foi um dia de muito movimento”.

No Parque da Redenção, o canhão desperta curiosidade

A marquise da padaria ficou tomada por fotógrafos. “Deputados e outros políticos entravam toda hora na loja para tomar café, comer sanduíches, foi mesmo uma loucura”.

Seu Albino contou que os mordomos da casa do general vieram buscar quantidades extras de pão, manteiga, queijo e salame. “De repente, vi o Brizola sair da casa pela porta da frente, entrar num Fusca clarinho que estava estacionado no portão e descer a rua, ele mesmo dirigindo”.

Os jornalistas e os tanques sumiram para sempre. A padaria Vitória cresceu, continua firme na esquina. Mordomos do general ainda fazem compras ali. No jardim, um pé de cinamomo cresceu onde antes o tanque ficara estacionado.

Legalidade não se repetiu

No início da noite de 31 de março, o governador Ildo Meneghetti tentava saber a exata extensão da rebelião militar, quando foram cortadas as linhas telefônicas do Palácio Piratini. O governador convocou seus auxiliares para uma reunião. Havia chegado uma notícia alarmante: os sargentos haviam tomado um quartel em Bagé, obrigando o comandante a se refugiar em outra unidade.

O governador ficou também sabendo que ia chegar naquela noite um novo comandante para o III Exército, o mais poderoso dos quatro exércitos brasileiros, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.

A lembrança da Legalidade, menos de três anos antes, fazia do Rio Grande do Sul um ponto estratégico, onde certamente os defensores de Jango tentariam resistir. Mas agora a situação era outra.

A começar pela vitória da oposição a Jango e Brizola, que conseguira ganhar a eleição de 1962 e colocar o conservador Meneghetti, da UDN, no governo do Estado. Brizola estava em Porto Alegre no dia 31 de março. Só que agora ele era um deputado federal, não podia dar ordens à Brigada Militar nem requisitar emissoras de rádio para mobilizar a população em defesa do governo.

Além disso, ao contrário dos seus adversários, que há muito se preparavam para impedir que se organizasse uma resistência ao golpe no Rio Grande do Sul, os aliados de Brizola estavam completamente despreparados.

Mala de dinheiro para pagar a polícia

No dia  2, depois do meio dia, Jango decidiu partir para o exílio.  Não havia mais como resistir.

Foi aí que começaram as trevas. Os golpistas soltaram as rédeas do Dops para prender seus adversários.

Houve um pequeno atraso no cronograma das prisões porque a turma estava com os salários atrasados. Os zelosos policiais se recusavam a prender antes de receber.

“De repente, uma mala de dinheiro apareceu no Palácio da Polícia e todos foram pagos”, lembrou anos mais tarde o então delegado Cláudio Barbedo. Com tal estímulo, um dos primeiros presos foi o prefeito Sereno Chaise – entrou no xadrez vestindo um impecável sobretudo cor de camelo.

(Textos de Elmar Bones e Renan Antunes de Oliveira. Publicado originalmente na Revista JÁ)

Deixe uma resposta