Em discurso histórico em Porto Alegre, Lula pede desculpas a Brizola e Getúlio Vargas

Foi um lance de campanha, claro: Lula está de olho nos votos dos trabalhistas nas eleições municipais deste ano. Mas isso não tira a importância do pedido público de desculpas a Leonel Brizola e Getúlio Vargas, que o presidente fez em seu discurso histórico em Porto Alegre, nesta sexta-feira, 15 de março de 2024.

“Peço desculpas ao Brizola e ao Darcy Ribeiro pela nossa posição contra os CIEPS”, disse Lula referindo-se ao projeto de escolas de tempo integral implantados no Rio de Janeiro, durante os dois governos brizolistas. “A gente estava equivocado, hoje as escolas de tempo integral são uma unanimidade”.

Em seguida, Lula estendeu o pedido de desculpas a Getúlio Vargas, o líder máximo do trabalhismo no Brasil. “Eu já pedi também desculpas ao Getúlio pelo posicionamento  como sindicalista, sempre contra ele. Hoje a gente vê a coragem dele ao instituir em 1939 o salário mínimo, num  pais em que o regime de trabalho era análogo à escravidão, e em 1943 aprovar a Consolidação das Leis do Trabalho e mais tarde criou a Petrobrás. Foi tão grande o embate com os empresários da indústria que até hoje em São Paulo não tem uma viela com o nome de Getulio Vargas”.

As declarações de Lula em relação aos líderes trabalhistas vão além da autocrítica e incluem também o PT que sempre foi hostil ao trabalhismo varguista, porque lhe disputava os votos à esquerda, principalmente entre o operariado da indústria. Nessa postura, o partido do presidente sempre considerou Brizola um “caudilho populista” e Getulio Vargas um ditador que criou a legislação trabalhista inspirado na Carta del Lavoro, do fascista italiano Benito Mussolini.

 

 

 

 

o

Detalhes do 8 de janeiro reavivam polêmica histórica: Jango errou ao não reagir em 1964?

Um ano depois, estão sendo revelados os detalhes da ação golpista para derrubar o recém-empossado presidente Lula, no dia 8 de janeiro de 2023.

O que fica nítido é a operação canhestra para o golpe, desmontada rapidamente pela reação de Lula e a firmeza das atitudes do secretário da Justiça, Ricardo Capelli.

É inevitável a comparação com o que sucedeu nos dias 31 de março e 1 de abril, de 1964, quando um golpe militar, sem dar um tiro, derrubou e mandou para o exílio o presidente João Goulart.

Muitos protagonistas derrotados em 1964, Leonel Brizola à frente, morreram acreditando que se Goulart houvesse reagido, o golpe não teria se consumado.

Jango (como era chamado o presidente) também estava mal informado por seus assessores militares e, também,  foi surpreendido pela movimentação de tropas.  Mas teve reação oposta à de Lula.

Rejeitou propostas de militares e aliados para enfrentar a rebelião deflagrada em Juiz de Fora e deixou o Rio de Janeiro, deslocando-se para Brasília e depois para Porto Alegre.

Em Porto Alegre, numa reunião dramática na casa do comandante do III Exército, Leonel Brizola, então deputado federal, implorou a Jango que o nomeasse Ministro da Justiça, para que pudesse enfrentar o golpe.

Brizola vinha incitando à reação, desde o primeiro momento. Pregava pelo rádio: “Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército, atenção sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas…O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas…tomem a iniciativa à unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores”

Jango não aceitou mais uma vez a proposta de reagir, haveria “derramamento de sangue”. Preferiu exilar-se no Uruguai.

O general Olympio Mourão Filho, que botou as tropas na rua no dia 31 de março, registrou em seu diário o quanto era mambembe “Operação Popeye” que ele havia preparado para  deflagrar o golpe.

O golpe militar em 1964 vinha sendo preparado desde a posse de João Goulart, o vice que assumiu ante a renúncia de Jânio Quadros, o presidente eleito. Havia sido adiado pela pronta reação do então governador Leonel Brizola, em 1961.

Hoje se sabe das articulações e do apoio externo, principalmente dos Estados Unidos. Mas, àquela altura, os chefes militares que conspiravam estavam cautelosos e pretendiam adiar o movimento para tomada do poder.

De pijama e pelo telefone, Mourão anunciou o golpe e na manha do primeiro de abril,  botou os soldados do 10º de Infantaria (maioria recrutas)  a caminho do Rio de Janeiro para derrubar o governo. Mourão era um marginal na conspiração. Castello Branco, o líder de maior prestígio entre os conspiradores, ficou em pânico quando soube, achou que Mourão ia por tudo a perder. O general Amaury Kruel, comandante do II Exército, não acreditava: “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”.

Mourão venceu, Jango morreu no exílio, o golpe que era “preventivo”, para punir corruptos e subversivos, se desdobrou numa ditadura que durou 21 anos e que, 60 anos depois, ainda ronda a democracia brasileira, como um fantasma. O 8 de janeiro talvez tenha sido o primeiro passo para exorcizá-la definitivamente.

 

 

Desmonte do plano diretor de Porto Alegre começou há mais de três décadas: a cidade perdeu

O que está ocorrendo agora com o Plano Diretor de Porto Alegre é a culminância de um processo que começou há mais de três décadas.

Mais precisamente em 1987 e, ironicamente, num governo trabalhista, de  Alceu Collares, quando o setor imobiliário começou a se impor ao planejamento urbano.

Ironicamente, porque o Plano Diretor de Porto Alegre, pioneiro no Brasil, foi aprovado na gestão do prefeito trabalhista Leonel Brizola, e se tornou referência em termos de planejamento urbano até no exterior.

Os planejadores, uma geração de urbanistas gaúchos que alcançaram projeção nacional, tinham clareza da dinâmica das cidades, tanto que estabeleceram uma revisão a cada dez anos.

O Plano Diretor, concebido pelos urbanistas da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs e chancelado por Brizola, foi aprovado em 1959.

Em 1964 veio  o golpe militar e vieram os prefeitos nomeados. O Plano resistiu, até por que dos quatro mandatos nomeados, dois foram ocupados por Guilherme Socias Villela, economista de grande sensibilidade para as questões urbanas.

Quando voltaram as eleições para prefeito, em 1986, elegeu-se Alceu Collares. O plano tinha quase 20 anos e não passara por uma revisão.  O setor imobiliário acumulara forças e os próprios planejadores reconheciam a necessidade de mudanças adaptativas a uma nova realidade.

Mas o que ocorreu no governo municipal de Collares não foi a revisão de um Plano Diretor da cidade.

O que ocorreu foi o início do desmonte da estrutura pública que garantia um planejamento urbano com alguma independência do setor que obtém seus lucros da venda do espaço urbano.

Os governos petistas (1988/2003) conseguiram conter a onda até por ali.  A revisão de 2009 já foi sob a égide do setor imobiliário.  A partir dali, as revisões foram sendo adiadas, enquanto leis especificas, como a do Centro Histórico e o Quarto Distrito,  iam detonando a ideia de um planejamento que estabelece regras tendo em vista a cidade como um todo.

As cidades são organismos vivos e se reinventam.  Mas colocar o desenvolvimento de uma capital como Porto Alegre sob domínio de um setor econômico, para o qual praticamente não há regras…

Eleições 2022: É preciso lembrar a lição de Leonel Brizola

O Partido dos Trabalhadores liberou seus filiados no segundo turno da eleição para o governo do RS, desde que não votem em Onix.

Significa que há uma tendência no eleitorado petista de anular o voto para não apoiar Eduardo Leite, que com sua agenda neo-liberal impõs pesadas derrotas ao partido.

A decisão do ex-governador de ficar neutro na disputa nacional entre Lula e Bolsonaro reforçou a rejeição.

Pesadas, porém, as consequências de um governo bolsonarisa no RS, é pouco provável que vingue a tese do voto nulo.

A esquerda terá que reconhecer que Eduardo Leite alcançou uma posição estratégica: é o que pode vencer o bolsonarismo no Rio  Grande do Sul.

Se conseguir, será o primeiro governador reeleito, num Estado que não dá segunda chance a seus governantes.

Será um candidato natural à Presidência em 2026, quando terá 40 anos e será talvez um nome para uma chapa de coalisão que pode até envolver PSDB/ PT/PMDB, quem sabe.

Mas isso é conjetura. O concreto agora é que só ele pode barrar a possibilidade de um governo de Onyx Lorenzoni, que Bolsonaro define como “uma espécie de Coringa meu”.

É preciso lembrar a lição de Leonel Brizola em 1989, quando ficou fora do segundo turno por um percentual ínfimo e, imediatamente, declarou apoio a Lula, engolindo o “sapo barbudo”.

 

Deputado do PDT repudia ataques de Ciro e declara apoio a Lula

Ex-deputado estadual do Paraná, Haroldo Ferreira (PDT) , em carta enviada ao presidente da legenda, Carlos Lupi, anuncia seu afastamento do diretório nacional do partido e de vice-presidente da Fundação Leonel Brizola.

A razão de sua atitude é a decisão de apoiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no lugar do candidato da sigla ao planalto, Ciro Gomes (PDT).

A integra da carta do depuado paranaense:

Prezado Presidente Carlos Lupi,

A despeito do apreço e consideração que lhe tenho, assim como identificação com o trabalhismo brizolista, cabe-me o dever pessoal de lhe encaminhar meu pedido de afastamento da Vice Presidência da Fundação Leonel Brizola, Nacional e Regional do Paraná, bem como do Diretório Nacional do PDT, para, como Dirigente, não incorrer em ato de infidelidade partidária.

Como estamos vivenciando, o Brasil passa por momento crucial de garantia de nossas liberdades individuais e coletivas, com ataques constantes, persistentes e orquestrados de fragilização de nossas Instituições Democráticas.

Instituições que foram duramente conquistadas e inseridas na Carta Constitucional Federal de 1988, após sacrifícios da Nação, de brasileiros e brasileiras que enfrentaram as forças da Ditadura com perdas, mortes, desaparecimentos, exilios e torturas.

Malgrado este momento em que o PDT Nacional, através da candidatura presidencial de Ciro Gomes, marqueteado por João Santana, imprime uma campanha odiosa contra o principal candidato de oposição ao regime bolsonarista, lhe impondo pesadas críticas, inclusive, no campo pessoal e familiar.

De tal forma que Ciro Gomes, seja hoje, dentro do nosso campo político, o principal detrator de Lula, servindo direta ou indiretamente, de linha auxiliar para a candidatura oficial de situação.

Tal conduta equivocada, além de não agregar eleitoralmente, nos afasta do campo progressista nacional, nos isola em um gueto indefinido ideológico, inexpressivo de articulação, negando a história dos posicionamentos de Brizola, como em 1989, ao apoiar Lula, apesar de diferenças existentes à época.

É lamentável que Ciro Gomes, homem nacionalista, preparado e provado na luta política, tenha adotado uma estratégia errática de tentativa de desconstrução da imagem de Lula, ao invés de focar no PND, Programa Nacional de Desenvolvimento, que contém propostas para o Brasil real de fato, em que sempre acreditamos.

Meu ambiente de convivência política, do campo progressista, democrático, trabalhista, socialista, do SUS, saúde pública e coletiva, ambiental e reforma sanitária brasileira, nos cobra pela atitude política de nossa candidatura presidencial.

Constrage-me, sobremaneira, a repercussão dos ataques pessoais ao Lula, como munição eleitoral, nas redes sociais, impulsionados por bolsonaristas.

Isto posto, informo ao Presidente que passo a defender a bandeira da liberdade e do estado de Direito democrático, engajado na campanha eleitoral de Luís Inácio Lula da Silva, e que assim o destino o queira futuro Presidente do Brasil.

Respeitosamente,

Haroldo Ferreira, médico – Paraná

ABI lança Rede da Legalidade inspirada em Leonel Brizola que impediu o golpe em 1961

ABI anuncia nova Rede da Legalidade contra o golpe que será lançada nesta segunda-feira (15), às 21h00.

O programa contará com João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST e mais: o ex-diretor da Petrobras e conhecido como o pai do pré-sal, Guilherme Estrela, Misael, da Rádio Favela de BH e os jornalistas Paulo Miranda, da TV Comunitária Brasil, Leonardo Attuch, diretor do site Brasil 247 e da TV 247, e os conselheiros da ABI, Ivan Proença,Beto Almeida e Irene Cristina.

A TV Comunitária pode ser assistida pelo canal 12 na NET-DF, pelo facebook, instagram e site e pelo link no youtube: https://youtu.be/q6jrcrGCh-k.

E a TV Comunitária do Brasil pode ser assistida pelos canais 28 da SKY e da OiTV, 3 da ClaroTV, 239 da Vivo/GVT e 20 da Nossa TV.

Nova Rede da Legalidade recebe mais adesões de rádios e tevês comunitárias, educativas e alternativas, além de canais progressistas na web.

A TVT, a TV dos Trabalhadores, canal digital aberto 44.1 de São Paulo também vai participar da transmissão nesta segunda-feira, 15 de agosto das 21 às 22 horas.

O ato de lançamento da nova Rede da Legalidade será transmitido, por satélite, para todo o território nacional, pela TV Comunitária Brasil, e ainda no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Florianópolis, Curitiba, Amazonas, Recife e Ourinhos, além das rádios Favela de BH e Timbira do Maranhão.

O Grupo de Trabalho responsável pela montagem da Rede da Legalidade é formado por representantes de São Paulo, Espírito Santo, Brasília, Rio de Janeiro, Maranhão, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Ceará.

A iniciativa da ABI, a centenária entidade defensora da democracia, reúne personalidades do mundo político, cultural, religioso e de outros setores da sociedade civil de oposição ao governo Jair Bolsonaro. O objetivo é impedir um golpe de estado da extrema direita, que insiste na ameaça de não querer aceitar o resultado da eleição para presidente da República, a não ser que o eleito seja o atual mandatário do País, o que impõe ao campo progressista a missão de defender o Estado de Direito.

Inspirada na inesquecível experiência histórica comandada, em 1961, pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, quando 165 emissoras de rádio mobilizaram o povo brasileiro para derrotar uma investida golpista que queria impedir a posse do então vice-presidente João Goulart como Presidente da República, após a renúncia do presidente Jânio Quadros.

31 de março de 1964: general conta em seu diário como deflagrou o golpe, pelo telefone

A uma e meia da madrugada de 31 de março de 1964, general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário*.

Repassa as últimas 48 horas, vividas sob grande tensão.

Há quase uma semana ele se considera pronto para o golpe, mas desconfia que o estão traindo.

Esperava um manifesto do governador de Minas, Magalhães Pinto, que seria a senha para colocar as tropas na rua.

Em vez de mandar o texto para ele antes, o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado!

“Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou. “Meu peito doía de rachar. Tive que por uma pílula de trinitrina embaixo da língua”

Olympio Mourão Filho, general de três estrelas, está em sua casa, em Juiz de Fora, onde há sete meses comanda a poderosa 4.a  Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro. Está mesmo descontrolado:

“Idiotas. O chefe militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a História…e o Guedes ( general Carlos Luís Guedes, comandante em Belo Horizonte), um falastrão vaidoso que aceitou um papel triste… Fizeram isso, bancando os heróis porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo irresponsável, arriscando uma revolução tão bem planejada, num momento de vaidade”

Depois da explosão, acalma-se:.

“Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho.  Não faz mal…”

Em seu plano original, Mourão previa sair no início da noite, com 2.300 homens, para chegar ao Rio de Janeiro antes de clarear o dia e tomar de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde se encontrava o presidente João Goulart.

Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado pelas manobras do governador Magalhães que, mineiramente, temia se envolver numa aventura.

Mourão ainda fazia anotações em seu diário, quando tocou a campainha de sua casa. Eram dois emissários do governador.

Vinham dizer que Magalhães já havia “dado o passo”, Minas se levantara contra Goulart.  Com aquele manifesto ambíguo?

Impaciente, ele os despacha rapidamente e volta ao diário, sente que estão lhe passando a perna:

“Vou partir para a luta às cinco da manhã…  Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil. Por consequência seremos, em última análise, vitoriosos ! E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro”

Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a telefonista de plantão na central de Juiz de Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”.

Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou.

No primeiro telefonema tentou alcançar o coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG…”O telefone estava enquiçado. Tõcou então para o  major Cúrcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que ganhara no quartel, pelo uso constante do cachimbo.

Em seguida,  convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos dois apareceu; Mourão foi encontrá-los dois dias depois, quando chegou ao Rio, no gabinete do general Costa e Silva, que já havia assumido o comando militar do levante).

A seguir,  ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor o presidente.

Em seguida alcançou o deputado Armando Falcão , para que avisasse Carlos Lacerda,  governador da Guanabara,  o mais notório inimigo do  governo Goulart.

Falcão,  astuto conspirador,  ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar da insurreição e que evitara sempre se envolver com Mourão.

Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força  militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários.

Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antonio Carlos Muricy, “conspirador tonitroante”, mas sem comando.

Muricy diz que foi chamado a Minas por Mourão, que está rebelado. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”.

Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua saraivada de chamadas,  fez questão  de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”.

E  não esconde o  “orgulho pela originalidade”:

“Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”.

Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu amigo Antonio Neder, “que dormia como um santo”. Gritou:  “Acabo de revoltar a  4a Divisão de Infantaria e a  4ª Região Militar”.

O amigo “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”.

Mourão responde: “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou agindo  certo, pode crer”.  Na verdade não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel.

Entrou no banheiro,  fez a barba e leu alguns salmos da Bíblia, como fazia todos os dias. Estava aberta no versículo 37, o Salmo de David : “A prosperidade dos pecadores acaba e somente os justos serão felizes”.

Leu e transcreveu em seu diário o salmo  inteiro:

“Não te indignes por causa dos malfeitores , nem tenhas inveja  dos que obram em iniquidade. Por que cedo serão  ceifados como erva e murcharão como a verdura. Confia no senhor e faze o bem: habitarás na terra, e verdadeiramente serás alimentado. Deixa a ira e abandona o furor, não de indignes para fazer o mal”.

A leitura da Bíblia remete o general à rua doutor Bozzano, em Santa Maria, 1522, onde morava em março de em 1962, onde tomou sua decisão de impedir a tomada do Brasil pelo “comunismo de Brizola”.

Ele vinha contando os dias: foram dois anos dois meses e 23 dias desde o início de sua conspiração, em Santa Maria, até ali naquele banheiro de onde ia partir para derrubar o governo.

“Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!”

Entrou no chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois).

A essa altura a notícia de um golpe militar se espalhava rapidamente, mas o comandante  do levante ainda não saíra de casa.

“A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”(Gaspari).

***

O fechamento do aeroporto de Brasilia pouco depois das nove horas da manhã do dia 31, confirmou a boataria. O governo acionava seu dispositivo de segurança para conter um golpe.

Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco, saiu de seu apartamento, em Ipanema, no Rio.

Foi  para o Ministério da Guerra,  no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar.  De lá ainda insistiu com o general Carlos Luís Guedes, comandante em  Belo Horizonte,  e o governados Magalhães Pinto para que detivessem  Mourão. “Senão voltarem agora serão derrotados”.

Guedes, depois em suas memórias, tentou associar-se à iniciativa de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho, e  assim continuaria um bom tempo.

Guedes naquelas alturas ainda  tentava saber se os americanos estavam dispostos a ajudar imediatamente com “blindados, armamentos leves e pesados , munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações…”.

Para mais tarde, informou, precisaria de equipamento para  50 mil homens!

Ao meio dia, já se movimentavam tropas do governo para atacar Mourão.

“Na avenida Brasil principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões.  Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm…Noutra, em  22 carros ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o  1º.Batalhão de Caçadores” (Gaspari).

Fardado, de capacete, Mourão foi fotografado no início da tarde, no QG da 4ª. Divisão de Infantaria.

No Rio correu o boato que o dispositivo militar do governo, mandara prender Castello Branco.  Sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha formaram um comando para protegê-lo. Os expedicionários instalaram-se no sexto andar, em torno de Castello  .

“Desligaram os elevadores principais e bloquearam as passagens de quatro pavimentos. A revolta controlava os corredores do quinto ao oitavo andar, enquanto o governo funcionava no resto”.

No décimo andar,  o gabinete do ministro da Guerra estava vazio, ele estava hospitalizado.

Quando os carros de choque da Polícia do Exército chegaram  para desalojar os revoltosos, eles já estavam fora.

Castello, acompanhado do  general Ernesto Geisel  já estavam alojados num “aparelho”, comandando  no golpe.

Chamado por Mourão, o general Antonio Carlos Muricy fora  incumbido de chefiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio.

Ao inspecionar os homens de que dispunha, Muricy  percebeu que mais da metade eram recrutas e a munição dava para poucas horas.

Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do  10º Regimento de Infantaria,  coronel Clóvis Calvão não apoiava o levante.  Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel, colocando um dos seus no lugar.

Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargento de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa.

Nada disso influiu no apetite do general. A uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta.

“Tinham-se passado oito horas  desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari)

O embaixador americano soube da rebelião a essa hora.  Imediatamente avisou o Departamento de Estado: “(…) pode ser a última hora para apoiar uma ação contra Goulart”.

“Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”.(Documento do Departamento de Estado ao secretário Dean Rusk de 31 de março).

O general Mourão ainda é um personagem enigmático e seu papel no golpe não está bem dimensionado.  Ele se considerava o mentor, o realizador de tudo, o que certamente não foi.

Em janeiro de 1962, quando ele se declarou em conspiração,  o movimento para depor o governo  já funcionava a pleno no Rio de Janeiro. Ele mesmo tentou se integrar  ao grande movimento conspiratório, mas por  se considera “o comandante” e por ser indiscreto em seus atos e palavras, foi sendo afastado. Ele mesmo registra isso em seu diário.

Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.

Em suas memórias, Mourão Filho diz que foi “acordado” para o perigo comunista num jantar oferecido ao governador Leonel Brizola, quando este falou de seus planos a ele e ao general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, brizolista, que passava suas férias em Santa Maria, em 1962.

Brizola havia frustrado a primeira tentativa de golpe com o movimento da “Legalidade”, um ano antes, e se preparava para disputar a sucessão de João Goulart.

Na versão de Mourão, o golpe foi contra Brizola, mais do que contra Jango,

*“Diário de um revolucionário”, Olympio Mourão Filho, L&PM Editores, 1978.

1964: O governo caiu sem resistência

Nas primeiras horas da manhã de 31 de março de 1964, quando chegou ao Palácio Laranjeiras, no Rio,  o general Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência da República,  foi informado que havia “um levante na guarnição de Minas Gerais”.

Ele passou a informação ao presidente João Goulart, que indagou: “Você acha que isso é verdade?”. O general respondeu: “Acho, porque o general Mourão Filho e o general Luís Guedes estão conspirando há muito tempo”.

Dias antes, o general Assis Brasil havia dito ao presidente que Mourão era “um velhinho que não é de nada”.

Jango ficou fechado em seu gabinete. Saiu pouco depois das nove para visitar o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, que estava hospitalizado.

O ministro, no hospital, apontou o telefone na mesinha ao lado e tranquilizou o presidente. Estava acompanhando tudo, situação sob controle.

Jango mencionou Polícia Militar na mão do governador Carlos Lacerda, já em movimentos ostensivos pelas ruas do Rio. O general, impassível: “Deste telefone eu resolvo tudo, presidente”.

Manoel Leães, o Maneco, que foi piloto de Jango trinta anos, assistiu à conversa e em seu livro Meu Amigo Jango registra: “Até hoje acredito  que o ministro Jair Dantas Ribeiro estava mancomunado com outros generais golpistas, ao menos para facilitar a deposição do presidente”.

Dia 2 de abril: tropas ocupam pontos estratégicos no centro de Porto Alegre

A intenção de Jango, segundo diversos testemunhos, era substituir  o ministro pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Por que Jango não trocou o ministro? “Acho que ele não quis desmoralizar o general, talvez em consideração à sua doença”, diz Maneco. “O presidente João Goulart não quis substituir seu ministro para não desgostá-lo”, registra o historiador Hélio Silva.

O outro homem do dispositivo militar de Goulart era o general Assis Brasil.  Costumava dizer: “Não tem perigo. Comigo é na ponta da faca. Nosso dispositivo é o melhor já armado neste país”.

Assis Brasil disse, depois do golpe, “que nunca houve tal dispositivo militar”.

Eram três da tarde, quando Jango chamou o general Ladário Telles, que estava de férias em Friburgo. A mudança do comando no III Exército estava decidida há vários dias, mas só agora o presidente iria efetivá-la.

Seu plano era colocar o gaúcho Ladário Telles no Rio Grande do Sul, substituindo Benjamin Galhardo, que deveria voltar para o Rio e ocupar o lugar do general Castello Branco, na chefia do Estado Maior das Forças Armadas.

Castello era um dos líderes ostensivos do movimento contra o governo.

Rio: os tanques nas ruas

A caminho do palácio para a reunião com o presidente, o general Telles notou o “movimento desusado” no prédio do Ministério da Guerra: “Dizia-se que, no quinto e sexto andares, 200 oficiais armados preparavam-se para atacar o QG da 1ª Região Militar do I Exército, no terceiro e segundo andares”.

Hoje se sabe que eram sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha, que tinham ocupado quatro andares no prédio, para impedir a prisão de Castello Branco, o líder dos conspiradores.

A audiência com o presidente  durou poucos minutos. Um avião já estava à disposição para transportar Telles a Porto Alegre. Jango determinou também que ele, antes de embarcar, providenciasse a prisão de  Castello Branco.

Pela  hierarquia, cabia ao comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, executar a ordem. Ladário, então, transmitiu a ele a ordem do presidente. “Senti hesitação no general Âncora. Várias vezes fiz-lhe ver que o tempo passava e o general Castello se retiraria do Ministério sem ser preso. Somente às 18 horas Âncora chamou Castello. Me pareceu que a prisão seria efetuada…”

Àquela hora Castello Branco não estava mais no prédio do ministério. Saíra em companhia do general Ernesto Geisel e estava escondido num apartamento na avenida Atlântica.

Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal

Acreditando que a prisão seria efetuada, Ladário Telles foi para casa arrumar as malas. Eram 22h55 quando partiu. A bordo ouviu a declaração de Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, aderindo ao golpe. Chegou em Porto Alegre a 1h20, mas só na madrugada conseguiu assumir o comando, de onde, se esperava, resistiria ao golpe.

Já era tarde demais.

 

Quando Jango chegou a Porto Alegre, na madrugada de dois de abril, o Congresso já estava dando posse a outro presidente.

O presidente João Goulart chegou a Porto Alegre às 3h15 da madrugada de dois de abril. Desceu do avião fumando e tenso, mas procurou mostrar-se sorridente ao chegar ao saguão do aeroporto, onde o esperavam o comandante do III Exército, general Ladário Telles, o deputado Leonel Brizola, o prefeito Sereno Chaise, o deputado Pedro Simon e outros.

No carro, a caminho da casa do general Ladário Telles, quase não falou. Descansou um pouco e às 8h da manhã saiu na porta da casa onde falou rapidamente aos jornalistas. Disse que iria resistir.

Em seguida reuniu-se com os chefes das unidades do Exército no Rio Grande do Sul para avaliar as chances de resistência.

Há dois dias, ele via seu governo desmoronar. Primeiro no Rio, depois em Brasília e, finalmente, em Porto Alegre. Em Brasília,inclusive, àquela hora  já tinha outro na sua cadeira, o deputado Rainieri Mazzili, entronizado na madrugada pelos golpistas.

O general Telles foi o primeiro a falar e se mostrou disposto a seguir as instruções do presidente, inclusive partindo para o contra-ataque aos golpistas. Jango quis ouvir os outros generais.

O primeiro deles, Floriano Machado, disse que “qualquer resistência seria uma aventura”. Os outros seguiram no mesmo tom.

Apenas Leonel Brizola insistia em resistir, propondo a formação de corpos de voluntários que seriam apoiados por unidades que se mantinham fiéis ao presidente em São Leopoldo, Vacaria, São Borja e Bagé.

Jango atalhou: “Não quero derramamento de sangue em defesa do meu mandato”. E ordenou ao general Ladário: “Tome providências para me dirigir ao aeroporto”.

Jango voou para São Borja, onde se deslocou entre suas fazendas enquanto aguardava concessão de asilo pelo governo uruguaio. Dois dias depois, desembarcava na base aérea de Pando, próximo a Montevidéu. O golpe estava vitorioso.

4 de abril: Jango desembarca em Pando, no Uruguai. Começava o exílio

Ninguém acreditava no golpe

No dia 31,  uma terça-feira,  Porto Alegre amanheceu fria e com chuvisqueiro. O governador despachava no Palácio como se nada estivesse acontecendo. Desde cedo corriam boatos de golpe, mas isso não era novidade. O noticiário morno dos jornais do dia não indicava qualquer anormalidade.

O Correio do Povo trazia na capa um terremoto no Alasca, com manchetes para Camboja, Hungria, Espanha e Rússia. Um destaque local era a crise de atendimento na agência dos Correios, em Santa Rosa.

Outra notícia importante foi o casamento de dona Vanisa Melo com o senhor Theodoro Medeiros, em Santa Maria. O único texto sobre o Brasil era do presidente americano Lyndon Johnson acusando Jango de ter muitos comunistas no governo.

Os jornais da época desinformavam tanto assim porque ou estavam alinhados com os conspiradores, ou totalmente contra, como no caso do tablóide Última Hora – sendo o único da esquerda, cometia o mesmo pecado dos demais de defender apenas um lado.

Anos depois, Breno Caldas, dono do Correio do Povo, admitiria a parcialidade: “A posição do Correio foi favorável diante dos acontecimentos de 64. Cooperamos para sua eclosão. Aqui havia um foco dinâmico da esquerda manobrado pelo governador Brizola. Nós estávamos contra a situação que ele representava. Desta maneira, a revolução de 64 foi para nós bem-vinda, desejada e saudada”.

O resultado óbvio da parcialidade generalizada é que o povão pouco sabia das coisas. Naquele 31, os jornais traziam apenas algumas dicas da tempestade que desabaria sobre a vida política.

Na primeira página do Diário de Notícias a manchete era quase uma mensagem em código do golpe: “Em Minas Gerais, Exército e FAB em rigorosa prontidão”, sem nenhum explicação do contexto.

O mais lido cronista social da época, Ibrahim Sued, deu em sua coluna do Diário apenas uma notinha de política: “O novo ministro da Marinha é um gagá que será joguete nas mãos de Leonel Brizola e sua troupe de comunistas”. Ele fechou a coluna com uma frase romântica, “quem nunca amou, nunca viveu”.

O mesmo Diário trazia uma mensagem de Páscoa do arcebispo Dom Vicente Scherer. Ela sim vinha carregada de política: “Cabe-nos, diletos fiéis, render graças a Deus haver preservado em nosso país a paz pública e a capacidade de resistir às adversidades econômicas e sociais”.

Lendo hoje as declarações dos luminares da política gaúcha da época, seria possível perceber que alguma coisa grave iria mesmo acontecer. Por exemplo, o ex-prefeito José Loureiro da Silva,deu uma entrevista na sede da Ação Democrática Feminina (ADF), reproduzida naquele  dia pelo Correio, criticando “a ocupação de cargos da administração pública por comunistas”.

Ainda no fatídico dia 31, os jornais anunciaram uma possível reunião secreta que deveria acontecer no dia 2, no Palácio Piratini, entre os governadores Ildo Meneghetti (RS), Carlos Lacerda (RJ) e Adhemar de Barros (SP),  três conspiradores da primeira hora.

O Diário trazia uma nota interessante. Nela até se poderia identificar um dos golpistas – coisa que naquela hora poucos sabiam. Ao pé de uma lista de associados da Caixa de Assistência Social dos Oficiais, constava que “o general Humberto de Alencar Castello Branco vai deixar a chefia do Estado-Maior do Exército” – ele, Castello, deixou sim, mas para assumir, quase duas semanas depois, a cadeira de Jango.

Como 31 era terça e segunda os jornais não circulavam, eles traziam notícias do domingo anterior, de Páscoa. Alguns foram cordiais com o prefeito Sereno Chaise, que passara aquele dia visitando obras, e à primeira-dama Terezinha, por entregar 25 mil barras de chocolate Neugebauer para crianças carentes nos bairros da periferia.

Jornais saúdam o golpe

As narrativas daqueles dias variam: muita gente viu muita gente nas ruas, mas a maioria viu só algumas escaramuças no centro. A tal massa, que já começava a se sentir órfã, ainda tentou agitar, com protestos no eixo Borges de Medeiros, rua da Praia, Largo da Prefeitura e Praça da Alfândega nos dias primeiro e dois de abril. Houve repressão e correrias. Alguém deu tiros numa das janelas da CEEE,  não houve vítimas.

Porto Alegre, primeiro de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo,
viu a repressão

O Correio do Povo descreveu os protestos do dia primeiro como “atos de desatino de moradores de vilas e estudantes, sentindo-se abandonados à própria sorte”. O jornal saudou o golpe contra “o pólo infeccioso que tem em seu agente o ex-governador Leonel Brizola”.

Legislativo em parafuso

No centro da cidade, qualquer aglomeração era dispersada com violência

A Assembleia Legislativa entrou em parafuso no dia primeiro. Os deputados trabalhistas queriam instalar uma sessão permanente no teatro São Pedro, porque temiam que com o golpe a casa fosse fechada “pelos esbirros do governador Ildo Meneghetti”, como diziam.

No plenário, o deputado Paulo Brossard de Souza Pinto, mais tarde um formidável opositor da ditadura, fez um discurso a favor do golpe: “Felizmente para nós, as Forças Armadas encontraram em seu íntimo a defesa das instituições democráticas e a ordem constitucional que as exprime”.

A resposta veio de Pedro Simon, num duro protesto contra a deposição do presidente. Na Câmara de Vereadores, o presidente Célio Marques Fernandes, mais tarde prefeito nomeado pela ditadura, convocou uma sessão extraordinária – apressava-se para assumir o cargo vago com a prisão de Sereno Chaise, horas depois.

Apesar do feriado bancário e escolar, que esvaziou a cidade, uma massa descrita como “janguista-esquerdista-brizolista-comunista” saiu às ruas, mas não chegou a reunir  mais de três mil pessoas. Policiais do Dops e soldados da Brigada e do Exército dissolviam com violência as aglomerações. A Folha da Tarde saiu pouco depois do meio-dia, já trombeteando a vitória e elogiando o rigor das tropas na manutenção da ordem.

Brizola: “Tomem os quartéis a unha”

O ponto alto da resistência foi o comício da noite do dia primeiro no Largo da Prefeitura. Brizola falou por volta das oito, para duas mil pessoas.

Brizola vinha botando fogo na massa todo dia pelo rádio e repetiu no comício seu mantra:

“Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército. Atenção, sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas… O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas… tomem a iniciativa, a unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores…”

Dali ele foi para o QG do III Exército usar o rádio para falar com Jango. O presidente estava voando para Porto Alegre e os dois teriam concordado que nenhuma reação seria organizada enquanto ele não chegasse. Mas Jango só chegaria na madrugada do dia 2 de abril, quando já era tarde para a resistência.

“A noite em que chegaram os tanques”

A casa que foi cenário do último ato de Jango no governo ainda está lá.

Foi ali, na esquina da Cristóvão Colombo com a Carlos von Koseritz, que o general Ladário Telles hospedou Jango nas suas últimas nove horas como presidente do Brasil, em 2 de abril.

A casa já foi mais elegante, na época em que o bairro era mais nobre – hoje ela está numa esquina barulhenta, vizinha de um hotel e de um restaurante japonês. Os vizinhos amam sua presença porque um destacamento 24 horas guarda o pedaço.

A tropa se esmera para cuidar do pequeno jardim da frente, com uma burocrática roseira no centro, uma cerca viva de metro e meio de altura e uma discreta guarita.

Naquele dia  2 de abril, a calma das noites da Cristóvão foi quebrada às 4 horas. O professor Francisco Outeiro, vizinho, lembrou anos mais tarde: “Acordei com aquele barulho enorme, estranho e assustador. Meu pai disse ‘são as lagartas dos tanques nos paralelepípedos’. Abrimos a janela e eram mesmo tanques”.

Dia 3 de abril:
já não há mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas

A barulheira também incomodou seu Albino Neitcke,  dono da padaria Vitória, na esquina oposta da Koseritz. Mais tarde, às 7 da manhã, quando abriu a loja, soldados apareceram ordenando que ele afastasse mulheres e crianças.

“Eles ocuparam todas as esquinas com seus tanques”, lembrou seu Albino. “Um deles ficou estacionado no meu jardim”. Outra lembrança: “Minha mulher não deu bola para a ordem e ficou trabalhando, aquele foi um dia de muito movimento”.

No Parque da Redenção, o canhão desperta curiosidade

A marquise da padaria ficou tomada por fotógrafos. “Deputados e outros políticos entravam toda hora na loja para tomar café, comer sanduíches, foi mesmo uma loucura”.

Seu Albino contou que os mordomos da casa do general vieram buscar quantidades extras de pão, manteiga, queijo e salame. “De repente, vi o Brizola sair da casa pela porta da frente, entrar num Fusca clarinho que estava estacionado no portão e descer a rua, ele mesmo dirigindo”.

Os jornalistas e os tanques sumiram para sempre. A padaria Vitória cresceu, continua firme na esquina. Mordomos do general ainda fazem compras ali. No jardim, um pé de cinamomo cresceu onde antes o tanque ficara estacionado.

Legalidade não se repetiu

No início da noite de 31 de março, o governador Ildo Meneghetti tentava saber a exata extensão da rebelião militar, quando foram cortadas as linhas telefônicas do Palácio Piratini. O governador convocou seus auxiliares para uma reunião. Havia chegado uma notícia alarmante: os sargentos haviam tomado um quartel em Bagé, obrigando o comandante a se refugiar em outra unidade.

O governador ficou também sabendo que ia chegar naquela noite um novo comandante para o III Exército, o mais poderoso dos quatro exércitos brasileiros, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.

A lembrança da Legalidade, menos de três anos antes, fazia do Rio Grande do Sul um ponto estratégico, onde certamente os defensores de Jango tentariam resistir. Mas agora a situação era outra.

A começar pela vitória da oposição a Jango e Brizola, que conseguira ganhar a eleição de 1962 e colocar o conservador Meneghetti, da UDN, no governo do Estado. Brizola estava em Porto Alegre no dia 31 de março. Só que agora ele era um deputado federal, não podia dar ordens à Brigada Militar nem requisitar emissoras de rádio para mobilizar a população em defesa do governo.

Além disso, ao contrário dos seus adversários, que há muito se preparavam para impedir que se organizasse uma resistência ao golpe no Rio Grande do Sul, os aliados de Brizola estavam completamente despreparados.

Mala de dinheiro para pagar a polícia

No dia  2, depois do meio dia, Jango decidiu partir para o exílio.  Não havia mais como resistir.

Foi aí que começaram as trevas. Os golpistas soltaram as rédeas do Dops para prender seus adversários.

Houve um pequeno atraso no cronograma das prisões porque a turma estava com os salários atrasados. Os zelosos policiais se recusavam a prender antes de receber.

“De repente, uma mala de dinheiro apareceu no Palácio da Polícia e todos foram pagos”, lembrou anos mais tarde o então delegado Cláudio Barbedo. Com tal estímulo, um dos primeiros presos foi o prefeito Sereno Chaise – entrou no xadrez vestindo um impecável sobretudo cor de camelo.

(Textos de Elmar Bones e Renan Antunes de Oliveira. Publicado originalmente na Revista JÁ)