Um corpo, sem o tampo do crânio

Por Renan Antunes de Oliveira, em Araquari (SC)
A Polícia Militar de Santa Catarina tentou encobrir o sumiço do deficiente mental Wesley Lopes, de 25 anos.
Ele foi visto, pela última vez, sendo metido à força num camburão do 27º Batalhão da Polícia Militar (BPM), na noite de 27 de setembro de 2013.
Ele foi apelidado de “Amarildo catarinense” pela semelhança do ocorrido com aquele pedreiro sumido na UPP da Rocinha.
Se nas favelas do Rio de Janeiro é difícil identificar e punir policiais que cometem crimes em serviço, nos grotões do Brasil é quase impossível – Araquari fica a 180 km de Floripa, no litoral norte catarinense.
O delegado da cidade, Rodrigo Aquino Gomes, agiu no primeiro dia pós sumiço e indiciou dois policiais militares do 27º BPM como responsáveis pelo desaparecimento de Wesley.
Em seguida, Gomes deu inicio à busca pelo cadáver: eram poucas as chances dele ser encontrado vivo.
Para encobrir o caso e proteger os PMs suspeitos, a corporação e a Secretaria de Segurança Pública produziram e mantiveram uma farsa continuada por um ano e três meses, até janeiro.
O balé das mentiras começou na primeira versão oficial do comandante dos soldados envolvidos: ele disse que eles não estiveram no local do sumiço, não prenderam Wesley e nem o levaram no camburão – naquele dia ainda não se falava em morte.
Mas uma testemunha viu Wesley ser levado da rua Santo Antônio. Anotou a placa do camburão e descreveu os soldados – com base nesta testemunha o delegado Gomes desentocou os dois.
A PM então mudou a versão: admitiu que os soldados X e Y prenderam Wesley – os nomes deles foram protegidos pela corporação. O delegado exigiu que o preso fosse entregue na delegacia, mas a PM já não pode apresentá-lo: era o sumiço total.
Para dar jeito de verdade, a PM usou a desculpa padrão: os dois PMs teriam ido ao local (uma casa branca, no número 602 da rua Santo Antônio) investigar denúncia anônima de narcotráfico.
Os soldados disseram que soltaram Wesley “numa esquina”, perto de casa, “minutos depois” da abordagem.
Soltar nunca aconteceu: do alto da Santo Antônio é possível saber qual dos moradores está na rua – todos se conhecem e Wesley era o louquinho do pedaço. Jamais ficaria incógnito nela. Ninguém o viu, nunca mais.
O delegado Gomes continuou as buscas, mesmo sem apoio da PM. Montou volantes com amigos e familiares. Procurou por todos os becos e matagais do bairro, sem sucesso: pelo faro do policial, Wesley estaria morto e desovado por ali.
Três dias depois a PM deu mais uma versão mentirosa: Wesley teria sido visto num carro, com traficantes, também perto de casa, mas não teria descido porque não queria voltar .
O objetivo da versão número 4 era fazer cessarem as buscas do delegado.
O pai de Wesley, Jair, motorista de uma pedreira, disse no primeiro dia após o desaparecimento que “a PM está mentindo, tenho certeza que mataram meu filho” – e manteve a mesma versão até o dia em que o cadáver foi encontrado, quase um ano depois, em 17 de setembro de 2014.
Jair deu uma explicação simples para sua certeza enfim confirmada: “Eu sabia que eles estavam mentindo porque a doença mental de Wesley não lhe permitiria viver nas ruas sozinho. Ele nunca saia de perto de casa porque não saberia fazer nada, nem voltar”.
Na fase sem o corpo, o inquérito policial militar conduzido pela PM absolveu os soldados e os reintegrou à tropa. A juíza Nayana Scherer, que deixou a comarca no final de 2014, afirma que, antes de sair, tentou “de todas as formas saber quem deu sumiço no ‘nosso Amarildo’ “.
Ela disse que inicialmente suspeitou de violência policial. Para apurar o caso, interrogou o comandante do destacamento onde atuavam os PMs: “Ele me garantiu que eram dois soldados novos, um deles muito sério, e que ninguém do comando estava encobrindo o sumiço” – lembrando que naquela altura o corpo ainda não aparecera.
Sobre o não-sério dos dois PMs ela nada sabe. O capitão não dá mais entrevistas sobre o caso. O inquérito interno da PM subiu à Corregedoria. Os dois soldados acusados levaram apenas um peteleco, anotado na folha disciplinar de cada um, pela mentira sobre meter Wesley no camburão.
No fim, também foram inocentados: “Não há elementos suficientes (para condenação) na investigação” foi a conclusão dos corregedores, em Florianópolis.
Não satisfeita, a juíza Nayana chamou a força de elite da Delegacia de Desaparecidos da Polícia Civil.
Uma equipe de Floripa assumiu o caso na pequena cidade, hoje notável por sediar a fábrica da BMW.
A juíza fez sua parte autorizando escutas telefônicas e decretando sigilo no processo “para proteger as testemunhas dos supostos autores”.
Ela esperou em vão pelos resultados: “Crimes assim não são comuns em Santa Catarina, eu queria dar uma satisfação à família, estava curiosa para saber quem teria feito aquilo”.
A investigação classe A concluiu que Wesley estava vivo e bem. Numa descrição muito colorida, os agentes afirmaram que ele fora visto passeando em Balneário Camboriú em agosto de 2014, a 90 km de Araquari.
A Secretaria de Segurança deu o caso por encerrado, louvando o trabalho de seus policiais das duas forças, civil e militar.
“Não acredito que isto tenha acontecido, não fazia sentido”, disse a juíza. “A testemunha que vira Wesley era ligada a policiais, mas eles não o pegaram, quando àquela altura lhes convinha apresentarem Wesley vivo para acabar com as suspeitas (sobre os PMs)”.
Um dos investigadores agora acredita que Wesley morreu na mesma noite em que sumiu.
Em setembro do ano passado um lavrador encontrou a ossada num matagal perto da rua Santo Antônio.
O exame de DNA bateu, mas o resultado não foi revelado pela Secretaria de Segurança até o início deste ano.
O perito do IML de Joinville que examinou o cadáver não conseguiu saber a causa da morte.
O corpo, mesmo decomposto, não tinha marcas de tiros, nem pauladas, nem facadas.
Entretanto, faltava um pedaço de osso do crânio.
“Já vi casos assim. Foi como se alguém tivesse dado um tiro na boca e arrancado o tampo. O pedaço de osso faltante poderia mostrar a passagem da bala, seu calibre e outras evidências. Quem o matou, levou só o osso, apagando as provas”, disse o perito.
Quem se daria tanto trabalho para matar e esconder o louquinho da rua Santo Antônio?
Quando o corpo apareceu o delegado Gomes indiciou os PMs também pelo assassinato – mas, talvez assustado com a repercussão na cúpula da Secretaria de Segurança, não quis mais falar sobre o caso.
Ele mandou seu inquérito para o fórum de Araquari em fevereiro. O processo rola lá dentro como uma batata quente. Já está no terceiro promotor em menos de dois meses.
Uma mulher viu o sumiço – é a testemunha número um – e não teve medo. O nome dela foi preservado pela juíza Nayana “porque foi ela que deu origem à investigação”. A testemunha-chave acordou com gritos na rua naquela noite de 27 de setembro: “Wesley estava no meu portão me chamando, ele queria entrar”, fugindo da abordagem de PMs.
Ela espiou pela janela: “Vi quando ele foi puxado pela camisa para a calçada e arrastado para a rua pelos soldados”.
A mulher ouviu então o curto diálogo que selaria a sorte de Wesley:
PM 1: “Você é irmão do Robson?”
WL: “Sou”.
PM2: “Qual é o teu nome”
WL: “Wesley”.
PM1: “Soletre!”
Foi aí que a coisa pegou: Wesley era analfabeto. Tinha óbvias dificuldades de fala. Sabia dizer apenas meia dúvida de respostas essenciais. Soletrar era demais pra ele e então ele se calou.
“Acho que os PMs acreditaram que ele estava tentando enganá-los e se enfureceram”, disse a testemunha. “Aí eles começaram a bater nele e o meteram no camburão”.
A mulher da janela anotou as placas e correu para a casa do pai dele com a notícia. Seu Jair levou o caso ao delegado Gomes, que fez o serviço de acordo com a lei.
O delegado exigiu o GPS localizador das andanças do camburão dos PMs na noite do sumiço – isto ajudou a desmontar a primeira versão mentirosa do comando, indicando que a viatura permanecera estacionada na rua Santo Antônio bem na hora indicada pela testemunha (só então a PM admitiu que eles pegaram Wesley).
Faltava a comprovação de que o mesmo camburão estivera naquele matagal (onde mais tarde o corpo foi encontrado) na mesma noite.
O GPS mostrou que a dupla de PMs que sumiu com Wesley no ponto A da rua Santo Antônio esteve, naquela noite, no ponto B do matagal onde ele seria encontrado um ano depois.
Isto não significa que os PMs deram sumiço e mataram Wesley – eles são inocentes até prova em contrário.
Para culpá-los será preciso que o MPE aceite as provas do inquérito, faça a denúncia, que a Justiça a aceite e que os dois sejam condenados pelo júri.
Por segurança, seu Jair, que já demonstrou certa capacidade de farejar mentiras, mudou-se da cidade com a família.
Os dois soldados suspeitos ainda estão na tropa, cumprindo sua missão diária de proteger o povo catarinense.

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