Um corpo, sem o tampo do crânio

Por Renan Antunes de Oliveira, em Araquari (SC)
A Polícia Militar de Santa Catarina tentou encobrir o sumiço do deficiente mental Wesley Lopes, de 25 anos.
Ele foi visto, pela última vez, sendo metido à força num camburão do 27º Batalhão da Polícia Militar (BPM), na noite de 27 de setembro de 2013.
Ele foi apelidado de “Amarildo catarinense” pela semelhança do ocorrido com aquele pedreiro sumido na UPP da Rocinha.
Se nas favelas do Rio de Janeiro é difícil identificar e punir policiais que cometem crimes em serviço, nos grotões do Brasil é quase impossível – Araquari fica a 180 km de Floripa, no litoral norte catarinense.
O delegado da cidade, Rodrigo Aquino Gomes, agiu no primeiro dia pós sumiço e indiciou dois policiais militares do 27º BPM como responsáveis pelo desaparecimento de Wesley.
Em seguida, Gomes deu inicio à busca pelo cadáver: eram poucas as chances dele ser encontrado vivo.
Para encobrir o caso e proteger os PMs suspeitos, a corporação e a Secretaria de Segurança Pública produziram e mantiveram uma farsa continuada por um ano e três meses, até janeiro.
O balé das mentiras começou na primeira versão oficial do comandante dos soldados envolvidos: ele disse que eles não estiveram no local do sumiço, não prenderam Wesley e nem o levaram no camburão – naquele dia ainda não se falava em morte.
Mas uma testemunha viu Wesley ser levado da rua Santo Antônio. Anotou a placa do camburão e descreveu os soldados – com base nesta testemunha o delegado Gomes desentocou os dois.
A PM então mudou a versão: admitiu que os soldados X e Y prenderam Wesley – os nomes deles foram protegidos pela corporação. O delegado exigiu que o preso fosse entregue na delegacia, mas a PM já não pode apresentá-lo: era o sumiço total.
Para dar jeito de verdade, a PM usou a desculpa padrão: os dois PMs teriam ido ao local (uma casa branca, no número 602 da rua Santo Antônio) investigar denúncia anônima de narcotráfico.
Os soldados disseram que soltaram Wesley “numa esquina”, perto de casa, “minutos depois” da abordagem.
Soltar nunca aconteceu: do alto da Santo Antônio é possível saber qual dos moradores está na rua – todos se conhecem e Wesley era o louquinho do pedaço. Jamais ficaria incógnito nela. Ninguém o viu, nunca mais.
O delegado Gomes continuou as buscas, mesmo sem apoio da PM. Montou volantes com amigos e familiares. Procurou por todos os becos e matagais do bairro, sem sucesso: pelo faro do policial, Wesley estaria morto e desovado por ali.
Três dias depois a PM deu mais uma versão mentirosa: Wesley teria sido visto num carro, com traficantes, também perto de casa, mas não teria descido porque não queria voltar .
O objetivo da versão número 4 era fazer cessarem as buscas do delegado.
O pai de Wesley, Jair, motorista de uma pedreira, disse no primeiro dia após o desaparecimento que “a PM está mentindo, tenho certeza que mataram meu filho” – e manteve a mesma versão até o dia em que o cadáver foi encontrado, quase um ano depois, em 17 de setembro de 2014.
Jair deu uma explicação simples para sua certeza enfim confirmada: “Eu sabia que eles estavam mentindo porque a doença mental de Wesley não lhe permitiria viver nas ruas sozinho. Ele nunca saia de perto de casa porque não saberia fazer nada, nem voltar”.
Na fase sem o corpo, o inquérito policial militar conduzido pela PM absolveu os soldados e os reintegrou à tropa. A juíza Nayana Scherer, que deixou a comarca no final de 2014, afirma que, antes de sair, tentou “de todas as formas saber quem deu sumiço no ‘nosso Amarildo’ “.
Ela disse que inicialmente suspeitou de violência policial. Para apurar o caso, interrogou o comandante do destacamento onde atuavam os PMs: “Ele me garantiu que eram dois soldados novos, um deles muito sério, e que ninguém do comando estava encobrindo o sumiço” – lembrando que naquela altura o corpo ainda não aparecera.
Sobre o não-sério dos dois PMs ela nada sabe. O capitão não dá mais entrevistas sobre o caso. O inquérito interno da PM subiu à Corregedoria. Os dois soldados acusados levaram apenas um peteleco, anotado na folha disciplinar de cada um, pela mentira sobre meter Wesley no camburão.
No fim, também foram inocentados: “Não há elementos suficientes (para condenação) na investigação” foi a conclusão dos corregedores, em Florianópolis.
Não satisfeita, a juíza Nayana chamou a força de elite da Delegacia de Desaparecidos da Polícia Civil.
Uma equipe de Floripa assumiu o caso na pequena cidade, hoje notável por sediar a fábrica da BMW.
A juíza fez sua parte autorizando escutas telefônicas e decretando sigilo no processo “para proteger as testemunhas dos supostos autores”.
Ela esperou em vão pelos resultados: “Crimes assim não são comuns em Santa Catarina, eu queria dar uma satisfação à família, estava curiosa para saber quem teria feito aquilo”.
A investigação classe A concluiu que Wesley estava vivo e bem. Numa descrição muito colorida, os agentes afirmaram que ele fora visto passeando em Balneário Camboriú em agosto de 2014, a 90 km de Araquari.
A Secretaria de Segurança deu o caso por encerrado, louvando o trabalho de seus policiais das duas forças, civil e militar.
“Não acredito que isto tenha acontecido, não fazia sentido”, disse a juíza. “A testemunha que vira Wesley era ligada a policiais, mas eles não o pegaram, quando àquela altura lhes convinha apresentarem Wesley vivo para acabar com as suspeitas (sobre os PMs)”.
Um dos investigadores agora acredita que Wesley morreu na mesma noite em que sumiu.
Em setembro do ano passado um lavrador encontrou a ossada num matagal perto da rua Santo Antônio.
O exame de DNA bateu, mas o resultado não foi revelado pela Secretaria de Segurança até o início deste ano.
O perito do IML de Joinville que examinou o cadáver não conseguiu saber a causa da morte.
O corpo, mesmo decomposto, não tinha marcas de tiros, nem pauladas, nem facadas.
Entretanto, faltava um pedaço de osso do crânio.
“Já vi casos assim. Foi como se alguém tivesse dado um tiro na boca e arrancado o tampo. O pedaço de osso faltante poderia mostrar a passagem da bala, seu calibre e outras evidências. Quem o matou, levou só o osso, apagando as provas”, disse o perito.
Quem se daria tanto trabalho para matar e esconder o louquinho da rua Santo Antônio?
Quando o corpo apareceu o delegado Gomes indiciou os PMs também pelo assassinato – mas, talvez assustado com a repercussão na cúpula da Secretaria de Segurança, não quis mais falar sobre o caso.
Ele mandou seu inquérito para o fórum de Araquari em fevereiro. O processo rola lá dentro como uma batata quente. Já está no terceiro promotor em menos de dois meses.
Uma mulher viu o sumiço – é a testemunha número um – e não teve medo. O nome dela foi preservado pela juíza Nayana “porque foi ela que deu origem à investigação”. A testemunha-chave acordou com gritos na rua naquela noite de 27 de setembro: “Wesley estava no meu portão me chamando, ele queria entrar”, fugindo da abordagem de PMs.
Ela espiou pela janela: “Vi quando ele foi puxado pela camisa para a calçada e arrastado para a rua pelos soldados”.
A mulher ouviu então o curto diálogo que selaria a sorte de Wesley:
PM 1: “Você é irmão do Robson?”
WL: “Sou”.
PM2: “Qual é o teu nome”
WL: “Wesley”.
PM1: “Soletre!”
Foi aí que a coisa pegou: Wesley era analfabeto. Tinha óbvias dificuldades de fala. Sabia dizer apenas meia dúvida de respostas essenciais. Soletrar era demais pra ele e então ele se calou.
“Acho que os PMs acreditaram que ele estava tentando enganá-los e se enfureceram”, disse a testemunha. “Aí eles começaram a bater nele e o meteram no camburão”.
A mulher da janela anotou as placas e correu para a casa do pai dele com a notícia. Seu Jair levou o caso ao delegado Gomes, que fez o serviço de acordo com a lei.
O delegado exigiu o GPS localizador das andanças do camburão dos PMs na noite do sumiço – isto ajudou a desmontar a primeira versão mentirosa do comando, indicando que a viatura permanecera estacionada na rua Santo Antônio bem na hora indicada pela testemunha (só então a PM admitiu que eles pegaram Wesley).
Faltava a comprovação de que o mesmo camburão estivera naquele matagal (onde mais tarde o corpo foi encontrado) na mesma noite.
O GPS mostrou que a dupla de PMs que sumiu com Wesley no ponto A da rua Santo Antônio esteve, naquela noite, no ponto B do matagal onde ele seria encontrado um ano depois.
Isto não significa que os PMs deram sumiço e mataram Wesley – eles são inocentes até prova em contrário.
Para culpá-los será preciso que o MPE aceite as provas do inquérito, faça a denúncia, que a Justiça a aceite e que os dois sejam condenados pelo júri.
Por segurança, seu Jair, que já demonstrou certa capacidade de farejar mentiras, mudou-se da cidade com a família.
Os dois soldados suspeitos ainda estão na tropa, cumprindo sua missão diária de proteger o povo catarinense.

Fuzilamento na Indonésia: quatro dias na cela do condenado

Renan Antunes de Oliveira
O paranaense Rodrigo Muxfeldt Gularte, 42, foi fuzilado na tarde desta terça-feira (28) na Indonésia, depois de 11 anos de batalha nos tribunais deste pais asiático para escapar da condenação à morte por narcotráfico.
A família tentou até a última hora obter clemência alegando que ele estaria esquizofrênico.
Passei quatro dias conversando com Rodrigo em fevereiro de 2005, na cela dele. Perguntei se ele entendia os riscos e consequências de seu ato – ele foi preso pela alfândega local com seis quilos de coca escondidos em pranchas de surf, em julho de 2004.
Resposta: “Se a parada tivesse dado certo eu estaria surfando em Bali, cercado de mulheres”.
Não deu certo. Preso, ele confessou o crime e foi condenado à morte.
Rodrigo enfrentou o pelotão de fuzilamento na companhia de um padre católico irlandês. O último pedido dele à prima Angelita Muxfeldt foi para ser enterrado em Curitiba. Há controvérsias sobre o estado mental dele na hora final.
A mãe, dona Clarisse, que lutou o bom combate para salvá-lo, não quis assistir o filho que trouxe ao mundo ser morto tão longe. A prima encomendou uma cruz de madeira artesanal para o caixão e vai trazer as cinzas dele para casa.
O Rodrigo que eu entrevistei na cadeia me pareceu um sujeito muito normal – pode ser que tenha pirado depois.
As autoridades indonésias afirmavam que ele fingia a doença para escapar da condenação.
Rodrigo era um traficante light. Fazia a rota Floripa-Bali-Amasterdã-Floripa para o traficante da pesada Dimi Papageorgiou, um carioca de pais gregos, apelidado de “barão do ecstasy”.
Rodrigo fizera várias viagens de “ensaio” para trazer ecstasy do exterior. Na primeira tentativa de levar tanta coca para Bali ele caiu. Dimi o visitou na cadeia, mas na volta ao Brasil foi preso pela PF.
TRECHOS DAS CONVERSAS NA CADEIA
O que mais me impressionou em 2005 foi o clima irreal na cadeia de Tangerang (subúrbio de Jakarta), onde Rodrigo e o carioca Marco Archer – fuzilado em janeiro – eram celebridades.
Entre a quarta-feira 9 e o sábado 12 de fevereiro, eles deram muitas gargalhadas relembrando suas aventuras.
Os dois não estavam nem aí para a possibilidade de enfrentar o Criador, via pelotão de fuzilamento, ou passar o resto de suas vidas presos na Ásia. Se sentiam como se tudo fosse apenas uma bad trip.
Rodrigo foi mais usuário do que traficante. Começou cheirando solvente aos 13 anos.
Dona Clarisse, a mãe de Rodrigo, mobilizou o Itamaraty para protegê-lo. Apelou para Lula, Dilma, papa Francisco e ao presidente da Indonésia, sempre sem sucesso.
Havia uma expectativa otimista no Itamaraty. No início, alguns diplomatas acreditavam que seria possível reduzir a pena de Rodrigo para prisão perpétua, em segunda instância, negociando em dinheiro uma redução maior ainda na terceira, para 20 anos, com soltura em sete, talvez 10 – na época o Judiciário indonésio adotava uma regra não escrita de trocar tempo de encarceramento por uma pena pecunária.
Os custos para dar jeitinho nas sentenças e as despesas para manter Rodrigo numa cela cinco estrelas eram calculados em 200 mil dólares – a mãe dele é rica e tentou pagar.
Mudanças políticas na Indonésia acabaram com o projeto de resgate por dinheiro.
No julgamento de Rodrigo, em 2005, já era possível prever. O povo muçulmano lotou o tribunal e pedia ‘‘morte aos traficantes ocidentais cristãos’’, descrição na qual se encaixam Rodrigo e Marco Archer.
O pedido da massa deixou o governo firme para rejeitar as campanhas internacionais por direitos humanos, livre de dúvidas existenciais sobre a pena de morte.
Nos momentos de maior delírio Rodrigo sonhava em voltar às praias de Floripa e contar aos amigos como escapou daquela fria.
Ele admirava muito Marco Archer. Eu pedi um exemplo da vida dele, Marco: “Ué, viajou pelo mundo todo, teve um monte de mulheres, foi nos lugares mais finos, comeu nos melhores restaurantes, tudo só no glamour, nunca usou uma arma, o cara é demais.”
Ele me disse aquilo e parou por alguns segundos. Refletiu um pouco e me pediu ajuda: “Por favor, brother, quando você for escrever, dê uma força, passe uma imagem positiva nossa, pra ajudar na campanha” (pela libertação).
Então diga lá o que você vai fazer quando for solto: “Bota aí que eu quero trabalhar 10 anos pro governo dando palestras pra crianças sobre a roubada que é o tráfico”.
Ele disse isto e saboreou o efeito das palavras. Tragou seu Marlboro. Parecia sério, até jogar a fumaça pra cima. Quando soltou tudo, o corpo já estava se chacoalhando. É que ele não conseguiu conter o riso.
GLÓRIA NA CADEIA
Rodrigo se exibiu para mim deslumbrado com a prisão, seu momento de glória: “Somos (com Marco) os únicos entre 180 milhões de brasileiros” (hoje o Brasil já tem 200 milhões).
Ele parecia deslumbrado com a notoriedade obtida com o narcotráfico – cujo pico de audiência é entre jovens ricos praticantes de esportes radicais.
Rodrigo queria botar um diário na internet, coisa que nunca faria.
Enquanto Rodrigo esteve em Tangerang ele comprou privilégios: “Aqui é como numa pousada, muito legal, só que jogaram a chave fora”, me disse. Parecia satisfeito, mesmo sendo acostumado ao conforto de sua suíte com sauna, na casa da família, em Curitiba.
Enquanto os 1300 presos muçulmanos viviam amontoados em 10 por jaula, ele tinha uma exclusiva. Equipada com TV, ventilador, geladeira, forno elétrico, som pauleira, jardim privativo. Ele criava pássaros, bonsais e a gata Tigrinha.
Ele usava os presos pobres como faxineiros cabeleireiros e pedicures. Podia receber gente sem formalidades, todos os dias. Rodrigo foi visitado pela família, pela namorada, a empresária carioca Adriana Andrade, e pelo parceirão Papageorgiou.
A balada na cadeia não parava nunca. Rodrigo também tinha uma namorada local, prima de outro condenado, em quem dava uns amassos na sala do comandante – subornado para usar o sofá.
Podia consumir ecstasy e outras drogas. Nas noites quentes rolava um chopinho gelado, cortesia de um chefão local, preso no mesmo pavilhão.
Como Tangerang é uma prisão provisória, nos arredores de Jacarta, Rodrigo vivia como naquela piada da hora do recreio no inferno. O secretário do diabo poderia anunciar o fim dos privilégios a qualquer momento.
Este dia finalmente chegou. Depois de sentenciado, ele foi transferido para a ilha onde seria fuzilado – um Carandiruzão com 10 mil presos muçulmanos.
NAS DROGAS DESDE OS 13
Rodrigo nasceu em Foz do Iguaçu. É neto de latifundiário produtor de soja, filho de mãe milionária. O pai é um médico gaúcho de Santana do Livramento, Rubens Borges Gularte – fragilizado pela idade e por uma doença, ele desistiu de tentar salvar o filho. Era tudo com a mãe.
Aos 13, já em Curitiba, Rodrigo começou nas drogas, cheirando solventes. “Era um garoto maravilhoso, a alegria da família, nunca levantou a voz”, isso é tudo o que a mãe contava dele naquela época.
Com 18 foi preso fumando um baseado no parque Barigüi. O pai queria deixar que ele fosse processado. A mãe não concordou, subornou um delegado com mil dólares pra soltar o garoto: “Se fossem prender todos os que fumam”, justificou dona Clarisse.
O garoto ganhou seu primeiro carro. Botou amigos dentro e saiu pela América Latina como um Che Guevara mauricinho, bebendo e se drogando. “Fiz cada loucura”, me contou.
Aos 20 Rodrigo era um rapaz de 1,84m, magrão, modos educados, cheio de namoradas. Teve um breve romance com a professora catarinense Maria do Rocio, 13 anos mais velha, fazendo Jimmy, hoje com 23, autista. Raramente via o filho: “Eu não estava preparado para a paternidade”, disse – no dia do fuzilamento Rocio e o filho não foram localizados.
Rodrigo contou que viajava muito, na piração total: “Em Marrocos, fumei o melhor haxixe”. No Peru: “Coca da pura”. Na Holanda: “Ecstasy de primeira”.
Aos 24, sai bêbado e drogado de uma festa. Bate o carro num táxi, tenta fugir, bate noutro carro, abandona tudo e corre pra casa da mãe. Ela dá uma volta na polícia, chama um médico, interna o garoto.
Na ficha de internação, o médico anotou: “Mostrou onipotência, estava depressivo” – o diagnóstico de esquizofrenia só apareceria na reta final do fuzilamento.
Nos anos seguintes a mãe fez de tudo para ele dar certo. Abriu para Rodrigo uma creperia, em Curitiba. Não deu. Uma casa de massas, em Floripa. Não deu. Mandou pra fazenda da família. Não deu. Rodrigo foi estudar no Paraguai. Não deu. Ele se matriculou na UFSC. Não deu.
Rodrigo começou no tráfico: “Fiz várias viagens à Europa só para trazer skunk”, confessou pra mim.
“A COCAÍNA É DO MAL”
A prisão: “Os carinhas (Dimi e seus asseclas) me deram as pranchas com cocaína dentro (em Floripa). Embarquei em Curitiba, onde o raio x é ruim, pra desembarcar em Jakarta”.
Ele se lamentou: “Só depois soube que os japoneses doaram um raio x potente pros indonésios, eles pegaram a droga”.
Rodrigo filosofou: “Meu erro foi a coca. O skunk é energia positiva, o ecstasy dá um barato legal, mas a cocaína é do mal”.
O desabafo: “Se a parada tivesse dado certo eu estaria surfando em Bali, cercado de mulheres”.

Procura-se o matador de Vivian, morta a 148 passos de casa

Renan Antunes de Oliveira
A polícia de Santa Catarina tem quatro suspeitos pelo estupro e assassinato da universitária Vivian Lais Philippi, 17, ocorrido a um quarteirão de casa, em Içara, Santa Catarina, em 4 de março – faz mais de um mês, mas dói todo dia pros pais e irmãos.

As autoridades aguardam resultados de testes de DNA com material genético encontrado sob as unhas dela – o legista atestou que ela arranhou o agressor e lutou bastante até ser subjugada, asfixiada e morta.

O delegado Rafael Iasco disse que a investigação aponta para um crime de oportunidade: “Foi coisa de um só homem, possivelmente drogado, que estava escondido num barraco de obras na rua por onde ela passava”.

Vivian foi arrastada pelo agressor para a construção às 4 da tarde de um dia ensolarado, sem que os vizinhos percebessem.

Moradores contaram à polícia ter visto rondando por ali momentos depois do crime um jovem desconhecido, de altura mediana, moreno, de pele clara e cabelos encaracolados. Ele não foi mais visto. Centenas de outras dicas anônimas foram investigadas, sem sucesso.

Vivian Lais era a quinta filha do casal Plínio e Anna Philippi, descendentes de alemães e italianos: “Ela era nossa caçula”, disse o pai, um metalúrgico qualificado.

Os Philippi deram entrevista no seu novo apartamento, amplo e confortável, no centro de Içara: “Nós não poderíamos continuar na casa onde vivíamos com ela”, disse o pai.

Eles se mudaram da casa amarela do Jardim Silvana, local do crime, incapazes de suportar as lembranças: “Não dava mais pra ficar, era um lugar que ela enchia de vida, ficou só o vazio”, diz o pai.

A família tem recebido apoio da comunidade. Na semana passada, quase mil pessoas participaram de um ato pedindo justiça – a cidade é importante no polo carvoeiro e industrial da região de Criciúma. O delegado Evaldo Gregório disse que “foi o crime mais brutal e sem sentido que vi nos últimos 15 anos”.

Família vive com conforto

Vivian nasceu em Blumenau, mas cresceu no Jardim Silvana, uma região boa de Içara. O padrão de vida dos Philippi é elevado. O chefe da família é inspetor de qualidade de tratores, com vários cursos no exterior. Vivian tinha de tudo e todo conforto na casa.

Os irmãos delas são formados e já deram aos avós quatro netos. Na hora da dor, eles se apoiaram uns nos outros: “Os filhos é que estão nos dando muita força, somos uma família unida” conta Plínio.

Ele está inconsolável. Interrompe a entrevista a cada minuto para chorar um pouco, mas já quase sem lágrimas depois de um mês e uma semana de saudades.
Plínio exibe o álbum de formatura escolar da filha aos visitantes, com dezenas de fotos onde Vivian aparece sempre linda e sorridente.

O pai aponta a foto onde se lê uma tatuagem no braço direito dela, com os dizeres “Endless Love” (amor infinito). Ele se desmancha: “Minha filha era amorosa e inocente”.

A mãe passou a maior parte da entrevista deitada no quarto do casal, abraçada a uma almofada em forma de coração, feita com fotos deles com a filha: “A gente perde o rumo, o sentido”, murmura, abatida.

Um olhar pela casa e se vê várias fotos dela espalhadas em diferentes molduras, tamanhos e cores, sinalizando que ninguém quer esquecê-la.

Menina buscava independência

A mãe carrega a dor de ter sido a última pessoa a falar com ela: “Vivian tinha voltado da universidade (onde estudava Farmácia), almoçou e dormiu pouco”, conta dona Anna.

Foi da casa amarela que a bela menina de 1m70, 63 quilos e longos cabelos loiros saiu para morrer: Vivian acordou perto das 3, fez várias cópias do seu currículo e disse à mãe que sairia para distribuí-los em farmácias, onde queria obter um emprego.

“Era um sonho dela. Trabalhar e ser independente”, lembra o pai.

“Seu outro desejo era morar um tempo na Califórnia”, diz, com um sorriso amargo. Ele procura conforto trocando um olhar com Anna, a mãe concorda balançando a cabeça.

Às 3h15 da tarde da quarta-feira 4 de março ela saiu de casa para buscar o tal emprego e dar aquela mudada de vida, pra ser independente: “Eu tinha ido ao oculista e não pude levá-la”, diz o pai – nesta hora o homem não consegue parar de chorar.

Ele recebeu a notícia da tragédia de forma chocante: “Lá pelas 6h30 eu estava voltando para casa quando vi um bombeiro numa esquina do bairro. Parei para ver se ele precisava de ajuda. Ele perguntou se eu morava por ali. Eu disse que morava na casa amarela. Ele perguntou se eu conhecia uma menina de 17 anos – e me mostrou os documentos de Vivian”.

Plínio diz que ficou atordoado com o golpe e só lembra que o bombeiro estava chorando – até o bombeiro, acostumado com tragédias.

Religião é consolo
Agora ele quer justiça: “Quero que tirem este monstro das ruas, para que não aconteça com outras famílias”.

Plínio conta que não quis ver o corpo da filha: “A irmã dela foi fazer o reconhecimento”, diz, fecha e abraça o álbum de formatura.

O pai se tortura com mil pensamentos com a hora final da filha e buscou conforto na religião kardecista – em que se acredita que exista vida depois da morte: “Não faz sentido ela morrer e ficar esperando o Juízo Final”, começa, para depois abandonar o tema religioso.

“Sabe o que é pior ? Ela morreu do lado de casa. Num minuto estava viva, segura e feliz, noutro a tragédia”.

Ele explica: “Caminhei da minha casa até a frente da obra onde ela foi morta. Contei. Foram apenas 148 passos. Dói muito saber que não pude fazer nada por ela, tão pertinho”.

"Excelência, eu amava minha família"

Renan Antunes de Oliveira |

C
omo estava muito quente naquele dezembro, Liquinha passou todo dia dormindo com o ar condicionado ligado no quarto do sobrinho Pedro, na confortável casa da família na rua Tijucas. Pelas 7 da noite ele acordou faminto. Pediu bolinhos de carne pra dona Carmen. Ouviu um breve sermão do pai, seu Nilo, por ter faltado ao trabalho. A irmã Leopoldina gritou alguma coisa lá do quarto dando o maior apoio ao velho.
Liquinha os ignorou e foi buscar um vídeo na locadora – despediu-se da balconista dizendo que tinha “uma coisa muito importante pra fazer em casa”. No caminho, tomou três latinhas de Skol e comprou cocaína.
Já no quarto, a mãe lhe serviu os bolinhos. Ele botou o prato embaixo da cama: estava sem fome, de tanto cheirar coca.
Pouco depois das 10, Liquinha saiu da cama apenas de bermuda para aquela “coisa tão importante”: assassinar todos da casa com golpes de marreta e martelo.
Em menos de 15 minutos ele matou mãe, irmã, sobrinho e pai, nesta ordem – o crime que foi a única coisa notável em seus 38 anos de vida.
Em seguida, Liquinha tomou banho, comeu os bolinhos, correu para a rua, chamou os vizinhos e encenou uma farsa: “Socorro, mataram meu paizinho”.

A família assassinada, estampada em uma camiseta | Renan Antunes de Oliveira /JÁ
A família assassinada, estampada em uma camiseta | RAO /JÁ

Esta tragédia acontecida em 7 de dezembro de 2012 na cidade praiana de Penha foi revivida no Tribunal do Júri de Florianópolis na segunda semana de março de 2015.
O amplo auditório da corte estava ocupado por 20 familiares que vieram de Penha (a 115 km de Floripa) e por um bando de alegres estudantes de Direito interessados nas tecnicalidades do processo.
O júri ocorreu na capital porque o sentimento da população da pequena vila de pescadores desde a primeira hora era de linchar Liquinha.
A estrela da acusação foi outra irmã do réu, Zilda, 15 anos mais velha. Foi ela quem contou aos jurados que “ele me disse que queria ser conhecido como o maior matador de Santa Catarina” – lugar que já perdeu, em fevereiro, para o funcionário público Alcir Pederssetti, que matou cinco da família e a si mesmo, em Cordilheira Alta.
A irmã garantiu que Liquinha é “um psicopata, sem sentimentos, toda vida foi assim e talvez só eu tenha percebido”.
Um psiquiatra atestou para os jurados que Liquinha estava consciente quando cometeu os crimes e que sabia das consequências, levantando a bola para uma condenação certeira.
Em juridiquês: ele estava ‘imputável’, isto é, capaz de ser julgado e condenado, se os jurados assim o entendessem.
o réu
Luiz Carlos Flores, o Liquinha, hoje com 40, deu problemas desde a adolescência.
Na cidade pequena, os vizinhos sabiam que ele era um drogado. Passou pela maconha, bebida e estava firme na cocaína.
Foi pescador, motorista, pedreiro. Nunca estudou nem trabalhou direito. Era só biscateiro. Fazia alguma coisinha pra arrumar dinheiro pro vício e deu.
Entre os 11 filhos do casal ele ainda morava com os pais porque era o xodó da mamãe – a quem mataria a marretadas com tal ferocidade que conseguiu quebrar o cabo da ferramenta.
“Ela sempre o defendia de tudo e todos”, contou Carminha, irmã mais velha que ajudou a mãe a cuidar dele na infância.
De tudo ela o defendeu na escola, na rua, dos drogados – quando alguém vinha cobrar a conta do consumo da noite, dona Carmen pagava.
Seu Nilo só resmungava – ele era um autêntico manezinho, pescador aposentado, de uma tradicional família açoriana que remonta aos colonizadores do pedaço.
a mágoa
Zilda agia nos bastidores do tribunal como porta-voz da ala da família que pedia a mais longa condenação possível ao irmão.
Ela pediu isto ao promotor, que por sua vez queria condená-lo a 100 anos de cadeia – para ele cumprir no mínimo 20 em regime fechado.
A irmã disse que “desde pequeno ele ficava furioso quando era contrariado”.
Ela contou que a diferença de idade entre eles a fez ver o menino “com isenção”. Jurou que o respeitava nos encontros da família, mas temia “suas reações violentas”.
Uma das namoradas dele teria se queixado que uma vez Liquinha tentou estrangular o filho menor dela (de outra relação).
Zilda afirmou que a mãe tentou aliviar sua barra dizendo que fora briga de casal. Mais tarde, a mesma mulher procurou Zilda para contar que Liquinha havia tentado estrangular a mesma criança num segundo incidente, mas que ela chegou a tempo de impedi-lo. A mulher então anunciou o rompimento via Zilda e sumiu do mapa.
Tios, primos e irmãos desfilaram pela corte. Todos horrorizados pelo crime.
Um sobrinho conta que a família sofreu um racha irreparável quando um dos irmãos mais velhos, Roberto, de 53, passou a visitar Liquinha na cadeia, no que seria o mais parecido com uma absolvição.
Roberto: “Não há como perdoá-lo, isto é coisa para Deus. Mas eu não posso abandonar um irmão, se um dia ele for solto eu vou até acolhê-lo em minha casa”.
A maioria da parentada no tribunal era toda a favor dos 100 anos de cadeia para “o maldito que não é mais meu tio”, como disse um sobrinho no banco das testemunhas.
O julgamento
Liquinha subiu no banco dos réus exatos 824 dias depois do crime, para explicar o inexplicável. Mas ele não tinha a explicação: “Parece que foi um sonho”, “uma força me dominou”, “não queria fazer mal a ninguém”.
Fechou seu depoimento com a frase muito ouvida em tribunais: “Não lembro de nada”.
Para avivar a memória dele e ajudar na decisão dos jurados o promotor exibiu num telão um vídeo gravado pela polícia de Penha dois dias depois do crime. Nele, Liquinha faz uma confissão completa e dá o ciúmes da irmã como motivo do crime: na cabeça dele, os pais gostavam mais dela.
O promotor apresentou fotos das vítimas para os sete jurados – três homens com menos de 30, uma mulher de 30, duas com mais de 40 e um careca cinquentão. A de 30 chorou ao vê-las.
Na plateia, uma irmã do réu soluçava tão alto que um oficial da corte a levou para o corredor.
Liquinha acompanhou a exibição de fotos da perícia e a leitura da súmula dos crimes pelo juiz quase sempre de cabeça baixa, esfregando um dedo da mão esquerda numa unha da direita, olhar fixo nos mocassins pretos. Às vezes, alternava o olhar para as luminárias da corte.
A sessão durou das 9 às 19, ele deu umas choradinhas lá pelas 10, uma no depoimento perto das 12 e novamente ao final dele – mas era coisa pouca, sem muita lágrima, se recompunha em segundos.
O promotor chamou Liquinha de monstro, animal, fera, destruidor de uma família – só abrandando o ímpeto de sua performance duas vezes, uma para saudar a presença da esposa no auditório, outra para cumprimentar um amigo promotor de uma comarca distante que veio prestigiar sua performance acusatória.
o crime
O crime de Liquinha ficou conhecido como “chacina de Penha” e se tornou instantaneamente num dos mais notáveis da crônica policial catarinense.
Aconteceu numa noite muito quente, naquelas em que as famílias manezinhas ficam acordadas até mais tarde.
As testemunhas afirmaram que dona Carmen, 69,  pareceu intuir que alguma coisa ruim aconteceria.
Por volta das 9h30 da noite, ela ligou para a Zilda e disse que temia alguma violência de Liquinha, àquela altura no quarto de Pedrinho (10), a minutos de cometer seu desatino.
Nos autos consta que a irmã Leopoldina (41) estava trancada noutro cômodo, com Pedrinho, protegendo-se com uma faca sob o travesseiro pro caso do irmão atacá-la: “Eu a avisara para nunca abrir a porta e manter o menino sempre junto dela”, disse Zilda – imaginem o terror de se viver naquele ambiente.
Pouco depois das 10, na casa silenciosa, Liquinha disse alguma coisa para a mãe que a convenceu a segui-lo até um ponto do pátio distante 100 metros da residência. Ele carregava a marreta.
Não foi possível apurar o que ele disse, nem quando ela percebeu que morreria: o certo é que ele deu dois golpes na boca da mãe, quebrando os dois maxilares, fazendo saltar longe a dentadura postiça dela.
Os golpes foram tão fortes que os peritos acham que ela morreu na hora do primeiro. Em seguida, o filho ajeitou o cadáver, quase com carinho, numa posição confortável numa vala – para depois urinar sobre ele.
Aos jurados ele explicou que matou a mãe para que ela não sofresse com a morte da irmã Leopoldina, que ele pretendia matar por puro ciúmes: “Minha mãe gostava muito dela e não suportaria o sofrimento”. Nem juiz nem promotor perguntaram o porquê do xixi – talvez pela insanidade do gesto.
Suado e ensanguentado, já sem a marreta quebrada, Liquinha voltou para casa e pegou um martelo na gaveta da cozinha. Bateu na porta do quarto de Leopoldina. Ela falava com o namorado ao telefone e não queria abrir.
Falando em tom calmo, o mano pediu que ela lhe emprestasse a moto. Iludida, ela abriu uma fresta para passar-lhe a chave: “Eu acertei o olho dela com uma martelada”.
Ai ele a empurrou, entrou no quarto e acertou mais dois golpes, um na testa e outro na têmpora.
“Durou segundos”, ele contou ao delegado na fita exibida no tribunal. “Meu sobrinho acordou e eu disse que a vez dele ia chegar”. Três marteladas no rosto desfiguraram o menino.
O pai, de 71, acordou com a gritaria e correu para o quarto da filha, ainda de cuecas  – sendo recebido com três golpes, todos na cabeça: “Eu não tinha nada contra meu pai e Pedrinho, mas não queria testemunhas”.
Depois que seu patético pedido de socorro ( “mataram meu paizinho”) foi ouvido nas ruas, Liquinha recebeu bombeiros, paramédicos, vizinhos, familiares e a polícia. Ele estava banhadinho, de roupa limpa, mas tinha manchas de sangue nos pés.
E levava nas mãos o denunciador martelo ensanguentado. O primeiro policial na cena matou a charada na hora: doido de pedra. Liquinha citava criminosos imaginários e a polícia resolveu não contrariá-lo.
Havia sangue nas paredes e teto do quarto onde Leopoldina e Pedrinho foram encontrados. Também no hall onde o corpo do pai estava caído.
Não havia nenhum suspeito, ninguém na rua vira nada, os cachorros não latiram para supostos invasores – tudo apontava para Liquinha, mas a polícia demorava em prendê-lo porque primeiro queria entender o motivo para aquela carnificina. A tese do ciúmes da mana apareceria mais tarde – se perdeu na loucura geral.
Nas horas seguintes ao crime a vila de pescadores dançou um balé de doidos.
Liquinha continuou circulando entre as centenas de pessoas que desfilaram pelo velório e enterro como se nada tivesse acontecido – ele estava sempre sendo seguido por policiais à paisana.
Eu o entrevistei duas vezes, na madrugada do velório e antes do enterro. Na ocasião, consegui puxá-lo para um cantinho, tomar um café com ele. E fiz a pergunta que não queria calar – quem fez a matança?
Pude perceber que ele ainda estava naquela loucura dos embalados por coca, babando, agitado: “Se eu encontrar quem fez isto com minha família eu juro que o mato”. Prometia vingança contra o assassino imaginário.
As pessoas ao nosso redor interrompiam a conversa para dar-lhe condolências e fingiam acreditar na inocência dele.
Mudei de assunto e lhe perguntei quais eram seus planos. Me disse que estava esperando o enterro para ir de moto até Goiás para visitar uma namorada – e pediu para ser fotografado, sorridente, ao lado da motoca.
Liquinha e sua moto, com  a qual visitaria uma namorada em Goiás | RAO/JÁ
Liquinha e sua moto, com a qual visitaria uma namorada em Goiás | RAO/JÁ

o arrependimento
No Tribunal do Júri pude notar que Liquinha engordou bastante na prisão, talvez uns 20 quilos, deveria estar com mais de 100. Estava bem barbeado, cabelo aparado, vestindo calça e camisa jeans. Não olhou para a plateia de familiares, nem encarou primos, tios e sobrinhos que testemunharam.
Liquinha insistia em interromper o juiz durante o interrogatório para deixar bem claro um ponto: “Excelência, eu amava minha família”. O promotor ironizou tipo assim “imagine se não amasse”.
O matador descreveu o menino Pedrinho:  “Meu sobrinho era um anjo de criança”. Neste ponto ele derrapou um pouquinho: “Eu sei que tenho que pagar, estou arrependido” – dois soluços curtos acompanharam o momento de remorsos.
Quando o juiz perguntou pelos motivos dos crimes ele disse “eu não era a pessoa que sou hoje, fui vítima do uso da cocaína que me controlava” – a mesma tese com que a defesa tentou interná-lo numa clínica de rehab.
A tese de que o crime foi cometido por ciúmes da irmã consta do inquérito policial, mas ninguém pareceu realmente interessado em achar um motivo mais palpável.
Liquinha encontrou uma pessoa culpada por seu temperamento: “Minha mãe tapava minhas fraquezas”, resmungou, transformando o amor de dona Carmen num defeito.
De tempos em tempos ele voltava a professar aquele amor eterno à família. Lá pelas tantas disse que quando saísse da cadeia, queria constituir uma para si – ao que o promotor recomendou, com sarcasmo: “Faça como a Suzane Richtofen e case com um colega de cárcere”.
a condenação
Os jurados levaram menos de meia hora para concluir que ele merecia os 100 anos de cadeia, dando-lhe 97 anos e seis meses. O promotor achou de bom tamanho.
A defesa quer recorrer e pedir novos exames de sanidade mental. A tese é que ele tem que ter um parafuso frouxo, pelo detalhe que nem Freud explica: por que fazer xixi no cadáver da mãe?
O comportamento dele enquanto ainda negava a autoria também surpreendeu aos policiais.
Quando familiares encontraram o corpo de dona Carmen nos fundos da propriedade, Liquinha foi levado para fazer o reconhecimento. Ele só deu uma espiadinha para concluir “que merda, mataram minha mãe”.
Em seguida, tirou o pinto pra fora e fez xixi no mato, na frente de peritos, policiais e bombeiros.
Depois da condenação, Liquinha foi levado de volta à penitenciária da Agronômica, em Floripa. Ele está lá para sua proteção, porque detentos assassinos e estupradores da cadeia de Canhanduba tentaram matá-lo, horrorizados com a barbárie de seus crimes.
Hoje o matador cozinha pros carcereiros e diretores da prisão. Virou evangélico. Descobriu Cristo.
Todos na jaula atestam que ele tem um comportamento exemplar, o que vai contar quando pedir regime semiaberto, aquele no qual o condenado dorme na cadeia mas pode passar o dia na rua.
Como ele é réu primário, o pessoal acha que em 8 anos o cidadão Luiz Carlos Flores poderá sair livre, para recomeçar sua vida.
Ele disse pro irmão Roberto que quando cumprir a pena quer se mudar de Penha para outro lugar do planeta onde ninguém saiba sua história.
Vaya con Dios.

Giovani quer largar o crack

Por Renan Antunes de Oliveira

Quase toda vez que entro apressado no Jornal JÁ tomo cuidado para não pisar em meu amigo Giovani de Souza Pereira, um self made mendigo de 22 anos, podre de drogado. Gio é morador de rua. Há quase 10 fixou residência na nossa, a Augusto Pestana.

Nos dias de bom tempo ele puxa seus roncos estirado na frente do portão da redação. Por alguma razão, prefere o lado ímpar da Augusto. Já deve ter dormido em cada centímetro de chão desde a esquina da avenida Venâncio Aires até o JJ, no número 133 da Augusto.

A gente nota que ele dorme melhor quando o sol está alto. Sabemos que no nosso pedaço ele também se sente mais seguro. Os vizinhos não se atreveriam a chutá-lo, coisa que acontece quando vai dormir sob alguma marquise e é despertado por seguranças de lojas.

Aconhegadinho em algum farrapo Gio ronrona enquanto se recupera das noitadas de crack e das baladas de maloqueiros – adiante eu conto como é intensa a vida social dos sem teto.

Ele é a pessoa mais conhecida do quarteirão. Não sei quem são meus vizinhos, eles não sabem quem sou eu, mas todos conhecemos Giovani – de uma certa forma, ele nos une.

Gio é um amigo que posso chamar de meu desde 2003. Isto porque quando eu entrei no JJ ele já era um veterano da casa – quero dizer, do lado de fora da casa.

Pouco antes da minha estréia nas páginas ele fazia por aqui um bico de entregador. Pena, tivemos que demiti-lo porque nossa contratação informal virou um problema trabalhista: seriamos multados por explorar trabalho infantil.

A idéia de dar trabalho pra ajudar Gio foi do Mariano, filho do patrão. Ele teve pena, queria tirar o menino da rua e das drogas. Mariano agora anda na Alemanha. Casou, tem uma filha pequena, tá lá cuidando dela – mas nosso Gio, adulto, continua na calçada.

Todos nós que ficamos temos boas intenções com ele. Todos nos compadecemos. Todos tentamos ajudar, de uma forma ou outra.

Anos atrás, uma senhora lá do fim da rua notou que ele andava meio abatido – era uma gonorréia, que ela se prontificou a tratar com antibióticos.

Socos e “roubo”

Um senhor notou um inchaço na boca e o levou ao dentista. Alguma coisa foi feita e hoje nada está doendo – o problema mais visível é a sujeira amarela e a falta do canino esquerdo. Tá partido ao meio. Foi quebrado a socos por um motorista de táxi do ponto do HPS. Normalmente o pessoal ali gosta dele, mas naquele dia alguns estavam furiosos porque acharam – erradamente – que ele tinha roubado o rádio de um carro.

No JJ tivemos vários debates de como ajudá-lo. Cada nova estagiária se comove ao vê-lo na calçada. De tanto vê-lo, elas se acostumam. Depois, acabam pulando por cima dele pra poder entrar – hay que perder a ternura e endurecer, senão ninguém entra na redação.

Todo novo repórter passa pela fase de pensar em entrevistá-lo, depois desiste – eles querem alguma coisa mais longe, mais aventurosa, menos doméstica.

Com o passar dos anos eu andei viajando. Passei um ano nos States. Morei meses no Rio, fui pra Amazônia, pra Curitiba, pra Sampa. Cada vez que voltava ao JJ tinha notícias de Gio. Ele estava por ali, todo dia, sempre dormindo na calçada.

Concluímos que ajudar Giovani seria tarefa pros órgãos assistenciais do governo. Telefonamos até pra caixa prego, sem sucesso. Procuramos burocratas de três partidos diferentes, nos níveis municipal, estadual, federal – por telefone é mais difícil conseguir alguma coisa do governo do que pedir qualquer coisa nos 0800 das multinacionais de telefonia celular.

Sugerimos as igrejas católica e evangélica. E fomos até na sinagoga da rua Henrique Dias. Neca, Gio firme na miséria, drogado e sujo, dormindo na calçada.

Giovani parece ter sido um predestinado pra viver nas sarjetas, com vocação revelada cedo. Do pai ele nada lembra, nem o nome, só sabe que morreu. Era bugre. O filho herdou as feições, cor e tamanho. Até fazer oito vivia com a mãe numa casinha na Lomba do Pinheiro. Foi tirado da escola por ela “porque ele só ia lá para comer a merenda”.

Mãe e filho passavam o dia esmolando no Centro. Ele abria e fechava portas de táxis na frente do Guaspari – mas as gorjetas iam todas pra mamãe. “Ela não me dava dinheiro pra jogar fliperama”, conta ele, ainda parecendo revoltado. Fugiu dela e esmolou pra si mesmo.

começo aos 11

Foi pouco antes de fazer nove que ele começou sua carreira de self made mendigo. A primeira noite ao relento foi na Praça XV. Era frio, ele estava só de calça e camisa.

Nas drogas ele começou aos 11, cheirando solvente, o chamado loló. Foi uma fase difícil, porque sua turma de cheiradores de loló era perigosa – uns roubam dos outros para comprar a droga.

Um dia apareceu alguém do Conselho Tutelar e ele foi levado para o abrigo Miguel Dario, na Serraria. Fugiu de lá semanas depois. Uma vez a Brigada o pegou nas ruas e o mandou para outro abrigo, na Miguel Tostes. Fugiu em oito dias. Desde 1999 adotou e foi adotado pela vizinhança da Augusto Pestana. Às vezes, rola pela Redenção.

Depois da Era do Loló veio o Tempo da Maconha. Fumava todo dia. Pra comprar, fazia bico de flanelinha. Uma vez ele e uns amigos roubaram um depósito da UFRGS. Ele pegou uma TV, mas não conseguiu vendê-la porque foi preso antes.

Não puxou cana. Ganhou “liberdade assistida”, um privilégio para menores concedido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A assistente social do seu caso era dona Érica, ou “tia Érica’, como ele diz.

A prisão lhe rendeu uma ficha na polícia. É seu único documento. Cada vez que é pego num arrastão da Brigada diz o nome. Os brigadianos que por acaso ainda não o conheçam consultam seus computadores, encontrando sua ficha de ladrão em liberdade assistida.

O pessoal da lancheria do Marino não deixa mais ele assistir lá dentro os jogos do Inter, por causa do cheiro de suas roupas e porque supeitam que foi ele que arrombou as grades e roubou cigarros, tempos atrás.

Ele vive num prende e solta. Uma vez reclamou da brutalidade policial, mas aí levou uma coronhada forte no olho esquerdo que quase o perdeu. Estava tão sujo que nem o HPS quis tratá-lo. Foi consertado no postão da Vila Cruzeiro.

O máximo de grana que conseguiu juntar na vida foram 200 reais, na vez em que cuidou do estacionamento de uma churrascaria. Desde os 16, tudo o que ganha ele gasta com crack, a droga da hora, do mês, do ano, da vida dele – tem dias em que está um farrapo que mal pode andar.

Nos últimos tempos os moradores da rua notam que ele anda cada vez mais drogado, mais esfarrapado, mais imundo – tem gente apostando que qualquer dia morre de overdose.

Mas nem tudo está perdido. Saibam todos que ele tem planos de parar com as drogas.

Na terça 31 de março eu o chamei pra esta entrevista. Ele mandou dizer pelo lavador de carros que só viria se ganhasse um troco. Queria 10. Pro crack. Apareceu às 3 da tarde. Foi só entrar na sala pra gente sentir aquela murrinha.

Ele estava falante. Contou que passou a noite transando com uma moça conhecida como Mãe, moradora de rua como ele. O romance foi ali perto do Hospital de Clínicas e ele garante que usou camisinha: “Uma tia me ensinou a usar, tenho que me cuidar”.

Alguém duvidou deste cuidado, lembrando que corre a lenda de que ele é pai solteiro de uma menininha – ninguém nunca viu nem sabe quem é a mãe nem onde anda tal filha.

Ele insistiu que sim, usa camisinha. Afirmou que até os gays que o procuram para programas no Parque da Redenção exigem isso. Não, ele não se considera um michê, não como aqueles da Avenida José Bonifácio. Se diz autônomo. E que cobra 20 reais por sessão, depois das 10 da noite, nos matinhos do parque – a grana é pra comprar crack.

Ele tem um sonho na vida: ser eletricista. Fez um serviços para um tal Paulinho da Farmácia. Segurava a escada. O cara também deixou ele apertar alguns parafusos em tomadas – foi o suficiente para ele tomar gosto pela elétrica.

“Não votaria em ninguém”
Uma tia – tias são assistentes sociais e/ou alguma mulher que o ajude – se prontificou a levá-lo pruma clínica de desintoxicação qualquer dia destes.

Ele disse que pode ser, porque está cansado da vida que leva. Anda pensando em procurar tratamento médico. Está convencido que pode sair da droga quando quiser. E que durante o tratamento vai aprender a ser …eletricista: “Na clínica ensinam alguma coisa pra gente”.

Gio ainda acredita em si mesmo: “Não quero ser conhecido como o Giovani velho, drogado, rabugento, fedorento”.

Se votasse ? “Não votaria em ninguém”. Tem uma pequena divergência com dona Yeda, a quem cita nominalmente. Ele acha que ela botou policiamento demais contra os pobres: “A gente fica um montão de tempo preso no 9º (Batalhão da PM) levando porrada até um tenente sentir bondade e mandar a gente embora”. Magnânimo, ele pede moleza “não para mim, mas para o bem da cidade”.

Gio aceita tirar fotos no meio da rua. Não, ele não espera nada do pessoal do JJ. Nem do governo. Repete que qualquer dia vai pegar nojo da vida de drogado. E então, mudar.
Pede cinco reais, pro ajudar na dose de crack.

Fim da entrevista. São quatro da tarde. E lá vai Giovani às ruas, sujo e esfarrapado, só com cinco no bolso, mas cheio de confiança, repetindo a única lição que aprendeu nas calçadas: “Eu mesmo tenho que fazer por mim”.

O crime da rua Venezuela

Renan Antunes de Oliveira

As três últimas casas antes da rua virar mato são de madeira, pintadas de azul, verde e branco. Na azul, com uma roseira carregada de flores vermelhas, morava Viviane, 14 anos. Na verde vive Tati, 13. A branca é de Clairton, 17, primo de Viviane, apaixonado por Tati. O ódio entre as meninas adolescentes foi maior do que aquele pequeno pedaço do mundo e transbordou em tragédia.

A rua Venezuela é um beco sem saída às margens da BR116. Está quase sempre deserta. Seu João e dona Jovenilda, avós de Viviane e tios de Clairton, passam horas na calçada da casa azul, sob uns pés de cinamomo, tomando chimarrão. Nas conversas, quase sempre lembram da tragédia mais improvável já acontecida na pacata cidade de Ivoti, no Vale dos Sinos.

Aconteceu em dezembro, na noite do dia 18: Clairton matou Viviane a pedido de Tati.

Olhando para trás é fácil entender o crime – Tati, por todos os relatos, apesar de quase criança, tinha inveja de Viviane, adolescente com corpo e aparência de bem mais velha. Difícil é compreender como este sentimento comum deu em morte com gente tão moça.

Viviane reagia com zombaria à inveja da vizinha. A rivalidade das duas foi testemunhada por todos que as conheceram. Começou nos primeiros anos de escola delas, no tempo em que a rua ainda não tinha sido calçada com paralelepípedos.

Muitas vezes Viviane teve que voltar para casa quando estava a caminho do colégio porque Tati jogava barro nela. Viviane xingava a rival de bobinha – mas também revidava com crueldade calculada, dizendo que o pai dela era um bêbado, o que afetava muito Tati.

Viviane era fruto de um romance adolescente do pai. Ele morreu afogado no rio dos Sinos quando ela tinha 7. A mãe sumiu e deixou a menina com os avós. Ela tinha liberdade total na casa azul com roseira. Os velhos lhe davam tudo o que precisava e bastante conforto.

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Tati vivia num ambiente opressivo e repressivo. O pai bebum só a deixava ir à escola e à igreja evangélica. Soube-se depois do crime que Tati tinha sido estuprada aos 10 anos, por outro vizinho – o que a ruazinha tem de calma e florida parece ter de ruim.

A rivalidade entre as meninas foi ignorada por pais e professores. Todos achando que tudo ia passar quando elas crescessem.
Não foi assim. Lá por maio do ano passado, Clairton, um grandalhão desengonçado com quase 100 quilos, motoqueiro sem carteira, drop out da escola e drogado, notou Tati já mais crescidinha. E passou a fazer investidas – queria transar com ela de qualquer jeito.

A mensagem foi passada pelo irmão de Tati. Mas ela tinha aquele problema: depois do estupro, os pais não a deixavam mais sair de casa desacompanhada.

Prisioneira da casa verde, Tati via todos os dias Viviane passar pela frente da sua e ir para a casa branca de Clairton. Os primos eram amigos e confidentes. O rapaz morava no porão da casa, onde seus pais tinham feito um quartão com tv e computador, pra ele curtir seus amigos e drogas longe da família. Viviane tinha trânsito livre na toca.

Quem conheceu bem todos eles garante que os primos nunca transaram. O primeiro de Viviane foi Juarez, um vendedor da Liquigás, 10 anos mais velho – e por isso, o principal suspeito da polícia quando ela foi encontrada estuprada, estrangulada e morta no matagal às margens da rodovia BR 116, apenas 100 metros distante da casa branca.

Tati começou a ser cortejada por Clairton à moda antiga, por carta. Bilhetes em folhas de caderno escolar, trocados de mão por amigas comuns.


Foram estas cartas que esclarecem o crime. Em vários trechos estão as pirações de Tati, seu ódio contra a vizinha, o pedido para matá-la e a oferta irrecusável: se Clairton matasse Viviane, ela, Tati, transaria com ele.

Clairton respondeu cedendo à oferta: “Capaz que eu não deixaria tu fazer aquilo com a Vivi, pra mim tanto faz”, escreveu, sendo “aquilo” o matar a própria prima.

“Eu não sei de onde saiu tanta frieza, não consigo aceitar que tenha sido ele”, diz dona Jovenilda, inconformada com a dupla perda – depois do crime, nunca mais falou com o irmão, pai de Clairton.

Por alguma razão qualquer as cartas acabaram nas mãos de uma amiga de Tati. Quando o caso deu na TV ela as mostrou pros pais, que por sua vez as levaram aos pais de Tati. Eles, mesmo horrorizados ao perceberem o que a filha tinha escrito, ainda tiveram coragem de ir à polícia e entregar tudo, 12 dias depois da morte de Viviane.

As cartas mostram que Clairton se tornou cada vez mais participante na trama macabra de Tati: “Por mim, que se f… a Viviane, pode encher ela de bala”. Os dois passaram até a planejar um segundo crime: matar o estuprador de Tati, jamais identificado.

Clairton foi preso em 11 de janeiro, mas nunca confessou o crime. Até o final de março, ele continuava negando.

A polícia suspeita que ele teve cúmplices, três carinhas maiores de idade, marginais da pesada pra quem ele teria pedido ajuda – mas que agora teme delatar porque seria como pedir para ser morto.

As investigações continuam no mesmo ritmo lento da cidade. A polícia identificou um trecho das cartas onde Clairton diz que botou “200 reais na mão de um ‘louco’ (que tinha pedido 400), mas ele disse que tinha uma proposta melhor pra me fazer”, tipo de papo de um contrato para matar Viviane.

Na noite em que a matariam, Viviane foi vista pela última vez pelos avós em companhia do primo, mas eles nada suspeitaram.


Eram sete da noite. “Entrei em casa e vi que ela tinha tomado banho e saído limpinha e bem vestidinha”, conta dona Jovenilda. Na calçada, vó e neta conversaram sob os cinamomos. Viviane usava tamancos de salto alto, saiu pipocando pelo calçamento irregular, aos pulos pelos 50 metros da casa azul até a branca, passado pela verde onde, é bem possível, Tati espreitava na janela.

“Quando começou a novela das 9 e ela não voltou, eu liguei. Ela me disse que estava baixando músicas pelo celular do Clairton”, ainda lembra a vó. A velha senhora foi então até o porão do sobrinho, espiou por uma fresta, nada viu de suspeito, bateu na porta e perguntou pra Clairton por Viviane: “Tia, Ela foi embora faz tempo”, mentiu, com calma.

Na manhã seguinte, angustiada, dona Jovenilda foi na casa de Juarez. Ela não estava lá. Ele jurou que a respeitava muito e que estaria esperando que Viviane completasse 18 anos para ficar com ela – uma mentira que a avó dispensou, porque sabia de tudo: “Se ela quisesse ficar com ele eu deixaria, ela não precisaria mentir, nem fugir”.

Se não estava com Juarez, tentaram a casa da mãe, mas ela dificilmente passaria por lá. Então só restava a polícia. Dia 19 de dezembro, manhã de sexta. Na delegacia, disseram pra vovó que “uma menina na idade dela faz coisas que nem o diabo acredita”, avisando que buscas só iniciariam 72 horas depois.

A juíza Célia Lobanowisky acreditou nas coisas que a polícia diz que Tati e Clairton fizeram, mandando os dois para a Febem, ela em Nova Hamburgo, ele na da Porto Alegre.

No início de abril ela preparava a sentença sigilosa para puni-los. É uma tarefa inútil, já que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente os dois não podem ser presos. Suas fotos e seus nomes sequer podem ser publicados, o caso corre em segredo de Justiça.

Em juízo, Tati negou ter mandado matar Viviane. Disse que Clairton a interpretou mal e que fez tudo por conta própria – descontada a possibilidade dele ter agenciado o crime com aqueles carinhas pra quem ofereceu os 200 reais.


Quem quer que tenha matado Viviane foi bem cruel. Não se sabe os detalhes, nem quando e se ela percebeu que iria morrer, mas sabe-se o resultado da ação do matador/matadores.

Do porão da casa de Clairton ela foi levada por uma picada no matagal dos fundos da casa para perto de um tronco de guarapuvu, cerca de 100 metros distante.

Seu corpo foi encontrado apenas na manhã de 23 de dezembro, o quinto dia do desaparecimento, sem que a polícia tivesse organizado nenhuma busca. Foram outros irmãos e sobrinhos de dona Jovenilda e seu João que combinaram, na noite do dia 22, começar a procurar perto de casa.

Quem se ofereceu pra ajudar ? Clairton solícito com os tios.

“Eu sai procurando pelo lado do muro (de uma empresa de lacticínios) e fui indo pra baixo”, conta o avô. “Clairton me apontou uma árvore lá longe (o tronco seco do garapuvu) e me disse pra ir praquele lado, eu nem imaginei nada”.

Seu João, falando sob os cinamomos, chora quando lembra a cena final: “Eu dei uns passos perto de um córrego e vi um vulto no chão, gritei ‘ai está ela’ e sai correndo, porque tudo se escureceu na minha vista”.

E lá estava a menina mais bonita da rua Venezuela: morta, deitada de costas, sobre os braços amarrados pra trás por um fio elétrico, com um saco plástico enfiado na cabeça e um pano cobrindo o rosto.

Os legistas confirmaram que ela foi estuprada e morta por estrangulamento e asfixia. O assassino ou assassinos tentaram encobrir o crime queimando seu tórax, mas apenas chamuscaram o corpo.

O cadáver ficou exposto aos vizinhos por quatro horas, que fizeram cortejos para vê-la. Dona Jovenilda fez questão de ir ver o cadáver. Chocada, não quis que tirassem o pano do rosto – sob o qual, soube-se depois, estavam dentes quebrados. Ela disse que reconheceu a neta por um piercing que usava no umbigo: “Era a minha Vivi”.

 

Pietro Albuquerque: vida e morte do guri que virou lei

Por Renan Antunes de Oliveira | Com reportagem de Daiane Menezes

Anote o nome: Pietro. Pietro Albuquerque. Com certeza você ainda vai ouvir falar deste jovem classe média alta da Zona Sul. Morto de leucemia mielóide poucos dias antes de fazer 20 anos, ele já tem um lugar na história: em sua homenagem a Câmara Federal aprovou a “Lei Pietro”.

A proposta foi do pai dele, o deputado federal do PSB gaúcho Beto Albuquerque, apresentada em dezembro de 2007, logo depois do filho ter sido diagnosticado com a doença – o pai deputado sentiu as dificuldades do brasileiro comum para tratar leucemia pelo SUS.

A lei designa de 14 a 21 de dezembro “Semana de Mobilização Nacional para Doação de Medula Óssea” – como transplante é a única chance de cura, a lei transformou a dor da família Albuquerque em esperança para milhares de pessoas na mesma situação.

O projeto se arrastou um ano na Câmara – ao mesmo tempo a doença ia consumindo Pietro. Para tratar-se, ele recorreu a bancos de doadores em Paris e Nova York. Um dia depois de sua morte, em 3 de fevereiro, os parlamentares se deram conta do drama do colega e aprovaram a lei.

O mérito da proposta é mobilizar a sociedade para conseguir doadores no país: “Se meu pai não fizer mais nada no mandato, já terá feito muita coisa por muita gente”, diz Rafael, publicitário, 23 anos, irmão de Pietro.

É um elogio ao pai, mas também um fato: segundo estatísticas do Ministério da Saúde, todo ano quase 10 mil pessoas contraem leucemia. O Brasil tem 300 mil doadores cadastrados. É pouco: cada doente tem só uma chance em 100 mil para encontrar alguém compatível.

Entre os vários tipos da doença, a mielóide é a mais difícil de curar, mata oito de cada 10 pacientes. Na maioria das vezes ataca homens adultos, dos 50 pra cima, embora tenha acertado Pietro na flor da juventude, aos 18.

Em 14 meses de luta contra a doença, ele usou todo arsenal médico disponível. Era beneficiário da mãe no plano de saúde do Banco do Brasil e se tratou no melhor hospital brasileiro, o das Clínicas, em São Paulo.

APOIO
Foi preciso mudar de cidade porque não havia leito do SUS para pacientes da doença na base eleitoral do deputado: “Porto Alegre só tem sete ou oito leitos especiais para essa doença. Tentei outros lugares públicos mais próximos, mas também não consegui lugar para ele”, disse Beto – e se foi difícil para um dos líderes do governo, imagine-se para o cidadão comum.

Pietro teve apoio de pai, mãe, irmãos, madrasta, avós. Teve todo dinheiro necessário para todas as despesas. Fez quimioterapia e radioterapia. Foi mantido em quartos isolados para evitar contaminação. Tentou até o transplante de cordão umbilical, a última moda em soluções mágicas.

Quando nem os bancos de medula no exterior ajudaram, os médicos tentaram transplante de medula com material doado pela mãe. Esta cartada final da medicina também não funcionou.

Por todos os relatos, o Pietro que se foi era um cara na dele, muito tranqüilo. Nasceu em Passo Fundo, veio pequeno para Porto Alegre. Gostava de garotas, de ler, de música, de Floripa, de cinema, do Colorado, do gato Tinkleydison.


Olhando para trás, ele parecia saber que estava marcado para morrer cedo. Aos 16, publicou um livro com título premonitório: “Dias Contados”.

A obra saiu durante a Jornada Nacional de Literatura da Universidade de Passo Fundo. No texto de apresentação a professora Tânia Rosing escreveu que “Pietro de Albuquerque terá longa vida como escritor” – ela não teve a menor intuição do que estava por vir.

O livro é muito bom, ainda mais considerando que foi escrito quando o guri tinha 15. E são 296 páginas – uma façanha nestes tempos em que adolês falam por email e torpedos.

“Dias Contados” é sobre o cotidiano de quatro personagens meio autobiográficos: Yuri, Caíque, Cecília e Priscila. Seriam ele mesmo, seu irmão e duas primas. O irmão diz que muito do que está escrito é da vivência, “ele era muito observador”, mas que também há coisas inventadas porque “ele era muito criativo”.

No texto, o personagem Yuri se descreve como “um garoto bem sociável, nada tímido, mas também não muito extrovertido. Ao mesmo tempo em que gosta de dar uns beijos sem importância, é muito romântico”.

Pietro balançou um pouco, lá pelos 10 anos, quando os pais se divorciaram. “Foi surpreendente, inesperado, pois para todo mundo parecia um conto de fadas”, diz Rafael. “Pietro ficou muito pra dentro”, dando no ponto em que o brother se tornou introvertido.

Os dois ficaram vivendo com a mãe, dona Débora. Logo estabeleceram uma rotina sem o pai, que só viam nos fins de semana e datas especiais – o deputado, sempre ocupado em Brasília, casou de novo e tem mais uma filha, Nina, pequena.

Muitas das estrepolias contadas no livro foram a maneira que Pietro encontrou para lidar com a separação. A primeira frase: “O menino era muito parecido com o pai, embora tivesse alguns traços da mãe”.

Quando fala dele, o pai tenta não se emocionar muito: “O Pietro era um menino muito envolvido com a cultura”, disse, em entrevista, algumas semanas depois da morte.

Ele lia Josué Guimarães, Érico Veríssimo, Machado de Assis, Lima Barreto, Umberto Eco. “Eram autores que ele tinha que ler para o vestibular, mas que acabou gostando e indo adiante”, conta Rafael.

Beto e Pietro: nos bons tempos

O deputado agora está lendo o segundo livro do filho, “Quem tem coragem”, uma obra inédita que Pietro escreveu no hospital e deixou na memória de seu notebook. O texto tem uma leve marca da tragédia que se aproximava:

Agora, ele já podia comemorar aliviado o seu feito. Havia completado a sua missão. Havia terminado o que antes não havia conseguido. Restava-lhe esperar. Esperar por um juízo. Nunca fora de acreditar em destino, mas talvez os acontecimentos mais primordiais de sua vida o fizessem repensar. Era até irônico. Mais atrás, às suas costas, quatro homens de arma em punho vinham na sua direção sedentos por vingança. “Achar vai ser fácil, o difícil é conseguir sair”. E riu, preferindo nem olhar para o que lhe aguardava. E tirou do bolso o seu amuleto. Coragem, rapaz, coragem.
NAMORADOR

Até ser diagnosticado com a doença, Pietro vinha se dando bem na vida. Fotos mostram que ele não era de se botar fora. Não tinha namorada, mas era um “ficante” que “honrava as tradições” – é a linguagem de Rafael para descrever o irmão namorador.

Pietro queria ser escritor e roteirista de cinema. Já doente, passou no vestibular para cinema na federal de Santa Catarina.

Outra paixão era a praia do Campeche, em Floripa, onde vivem as duas primas do livro. Ia seguido pra lá. No álbum da família ele aparece em fotos na praia, saudável, sorridente, como se nada pudesse lhe acontecer.

Pietro não era do tipo consumista – seus gastos quase nunca eram maiores do que a pensão de 200 reais que recebia do pai. O programa preferido era ver filmes com a mãe e o irmão. O último foi Na Natureza Selvagem, a história amarga de um jovem andarilho americano morto no Alasca.

Ele queria muito viajar. Tinha ido pra Disney quando pequeno, conhecia um pouco Uruguai, Paraguai e Argentina, mas sonhava com lugares exóticos. Um plano maluco era mudar-se para Valetta ou Birkirkara, cidades de Malta, uma ilha do Mediterrâneo.

Parece 100 por cento garantido que ele planejava mesmo mudar-se para lá quando desse, tanto que o projeto estava no Orkut dele – e se está no Orkut é pra valer.

Outros sonhos ? Andar de trenó. Abrir uma padaria em sociedade com a prima Yve – ela também adoradora de Malta, país cuja característica mais notável foi ter sido cristianizado por São Paulo em pessoa.

Pietro acreditava em Deus, mas a última vez que pisou numa igreja foi na primeira comunhão, lá pelos 10 anos. Não acreditava em política. “Acho que é porque sempre vivemos com a política na família, ele acabou indiferente”, conta Rafael – um tio deles, Francisco Turra, também é deputado federal e cordial adversário do pai.

No Orkut ele se definia como quem “narra a vida na terceira pessoa”, além de ouvinte da banda Coldplay. Fotografava a si mesmo nas situações mais hilárias, como se dando um tiro imaginário quando rodou no vestiba da URGS.

Já minado pela doença, mantinha o bom humor na web, onde tinha 454 amigos. Estava ligado na comunidade “Doe Medula Óssea”. Na parte onde os internautas buscam namoradas ele só pedia como companheira ideal “uma medula nova bem fresquinha”.


A medula dele deixou de produzir sangue normal em algum momento no final de 2007. Os primeiros sintomas foram tonturas e náuseas. Um dia ele desmaiou durante uma aula no cursinho Unificado. No Hospital Mãe de Deus, os médicos diagnosticaram uma anemia profunda e pediram mais exames – em poucos dias a terrível doença foi descoberta.

A mãe estava com ele na hora do diagnóstico e foi sua enfermeira até o fim: “Os dois eram muito apegados, ficaram mais ainda”, lembra Rafael.

Dali pra frente a rotina da família virou de pernas para o ar. Pietro começou a fazer quimioterapia. Um mês no hospital, uma semana em casa. Em maio, depois de quatro meses de quimio, a traiçoeira doença parecia ter desaparecido: “Pensamos que ele se enquadraria entre os que conseguem se dar bem apenas com tratamento”, conta o pai – agora o deputado dedicava todos os fins de semana para estar junto com o filho.

A pequena melhora deu esperanças à família. Beto comemorou levando Pietro para Gramado e Canela, dias de brincadeiras com Nina. Ele ainda teve condições de ir pra Maceió com a mãe.

DOADORES

Em junho, o drama recomeçou. Ele começou a sentir-se mal outra vez. Testes confirmaram o pior. Foi aí que médicos e família começaram a procurar um doador de medula compatível – não adianta ser da família, tem muito a ver com o tipo de sangue e outras variáveis. Basta ver que o irmão era 80% compatível, mas ao mesmo tempo não era melhor do que os 65% de compatibilidade da mãe.

O transplante só é solução se é encontrado um doador cedo. Pietro demorou 10 meses para o primeiro e 13 para o segundo, quando então já estava muito debilitado. O que faltou ? Justamente pessoas cadastradas como doadoras.

Até no exterior, a busca por um doador compatível foi infrutífera – isto que o banco americano de medula tem 15 milhões de doadores. Em agosto, os médicos tentaram a nova técnica de usar cordões umbilicais.

Eles encontraram um na França e outro nos Estados Unidos. Sangue 80% compatível com o de Pietro. Mas era puro risco: até ali, só 500 transplantes assim tinham feitos no mundo. Por questões burocráticas, o transplante de cordão demorou até novembro, o que não ocorreria se o país tivesse um bom banco do material – como Pietro já tava mal, piorou mais.

O ano em São Paulo foi duro também para a família, mas ela se uniu em torno dele. Rafael conta que houve “entrega total de todo mundo. Ninguém media esforços. O pai era bom na tomada de decisões sob pressão. Cada um tinha um papel diferente. A mãe sempre dormia com o Pietro no hospital”.

Rafael ainda encontra tempo para dizer que a doença o fez descobrir de novo o pai em Beto: “Me reaproximei dele, fiquei com uma admiração imensa por quem ele é, pelo que ele fez”.
Os médicos iam fazendo o que podiam por Pietro. Rafa acha que “a medicina em São Paulo está cinco anos na frente de Porto Alegre em agilidade e remédios”, mas ela não faz milagres.

O transplante de material genético obtido dos cordões umbilicais do exterior pareceu dar certo. A medula pegou no tranco. Chegou a produzir sangue saudável, mas isto durou pouco. Pietro ganhou uma quase alta em São Paulo. Passava algumas horas por dia no ambulatório do HC e o resto do tempo num flat com a família – era o máximo possível de normalidade.

Exatos 85 dias depois, justo no Natal, a doença voltou. A tentativa seguinte foi o transplante de medula da mãe – a segunda chance para dona Débora Gelatti lhe dar a vida.

Para fazê-lo, é necessário que o paciente passe por pesadas sessões de quimioterapia e radioterapia – isto rala o corpo, com o objetivo de zerar a imunidade para não rejeitar o material doado.
Pietro enfrentou esta barra, mas foi para o transplante nas últimas energias. A operação caiu no dia 6 de janeiro, aniversário de Beto – se alguma coisa isto significa, que outros busquem o sentido: medula da mãe, no dia do pai.

O deputado apelou até para seu santo de devoção: “Se desse certo, nós iríamos visitar a terra de São Francisco, na Itália”.

Dali pra frente o quadro se complicou de vez. Ele teve uma sinusite que virou pneumonia, que virou infecção pulmonar, que virou Síndrome de Angústia Respiratória de Adulto, tudo isso em 16 dias após o transplante.

Nesta etapa ele já estava todo ligado em tubos e diferentes aparelhos. “Apesar de tudo, Pietro sempre foi muito confiante. O cara estava a fim de viver. Quando a gente falava o que estava fazendo, ele só dizia ‘beleza, vamos tentar’”.


E aí, entre 22 de janeiro a 3 de fevereiro foi só sofrimento. Pietro caiu na inconsciência, da qual não mais voltaria. Fazia gestos de sim com a cabeça, apertava a mão do interlocutor, mas já era pura agonia. Beto resume tudo: “Pietro foi um guerreiro”.

Na tarde do dia 3 os médicos avisaram a família que o menino deles estava em seus últimos momentos – ele morreria horas depois, mansamente, na madrugada. “Ali choramos tudo o que tínhamos, eu, meu pai e minha mãe”, lembra Rafael, agora tranqüilo. Um padre esteve no quarto e lhe deu a extrema-unção.

Recuperado e também sereno, o deputado diz que o filho lhe deixou uma tarefa: “Quero evitar que outros pais passem o que eu passei”.

Pietro foi enterrado no Jardim da Paz. Presentes, 17 deputados, o presidente da Câmara Michel Temer e o ministro das Relações Institucionais José Múcio, representando o presidente Lula.

A família retomou sua rotina. Na casa da Zona Sul, nada de culto a Pietro. Seu computador e a TV ainda estavam no mesmo lugar no início de março, mês em que ele faria 20 anos, mas as roupas já foram doadas para os pobres. A cama estava feita, embaixo escondia-se o gato Tinkleydison.

Fotos dele continuam nas paredes. Sobre a mesa, dois recuerdos do Pietro que se foi. Uma engraçada caneca imitando seio feminino. E um pequeno jipe feito com massa de modelar, envernizado e colorido, com pranchas de surf na capota – tipo coisa sonhada para seus dias na ilha de Malta.

SAIBA COMO E ONDE DOAR A MEDULA ÓSSEA

Falta abrir a caixa-preta

Renan Antunes de Oliveira

Existem falências e falências na economia brasileira. Mas nenhuma tem os ingredientes da monumental derrocada daquela que foi a primeira empresa aérea do país, a maior da América Latina e a 15ª do mundo.

A Varig conseguiu quebrar mesmo faturando US$ 1 bilhão por ano. Caiu na mão de especuladores estrangeiros pela bagatela de US$ 24 milhões. Eles a revenderam para a Gol por US$ 320 milhões.

Mesmo parecendo um negócio bem amarradinho, ele ainda pode gorar. Vai depender dos resultados da CPI do Apagão. Para usar linguagem aeronáutica: se a CPI conseguir abrir a caixa-preta da Varig, pode encontrar provas de que houve intervenção indevida do governo e corrupção no Judiciário para favorecer os investidores estrangeiros que serviram de intermediários da compra pela Gol.

Por 80 anos a Varig cruzou os céus e as crises econômicas do país. Foi pilotada pelas melhores cabeças do empresariado nacional – e mesmo sendo a marca mais conhecida do Brasil caiu com um rombo de quase R$ 8 bi.

Na quebra, arrastou o fundo de pensão dos empregados, outrora uma potência. Deixou quase 20 mil credores na chuva. Não pagou impostos. Deu o calote nos salários, FGTS e aposentadorias de 9 mil trabalhadores – é de se pesquisar se não se trata do maior caso de fraude trabalhista do continente.

Esta falência anunciada esteve no radar de empresários, políticos e juízes desde a década de 90. Leonel Brizola e Yeda Crusius, Aécio Neves e José Serra, Lula e Zé Dirceu, Dilma e Onix Lorenzoni, FHC e Collor – todos, em algum momento, deram seus pitacos para tentar corrigir a rota da companhia.

Nada funcionou. Em 2005, embarcou na viagem o vivaldino empresário chinês Lap Chan, testa-de-ferro do fundo de especuladores americano Matlin-Patterson.

Manobrando entre a nata da inteligência econômica brasileira, ele conseguiu a mágica de desmembrar a Varig da Fundação Ruben Berta para comprar a parte boa pelos US$ 24 milhões, em julho de 2006, para revendê-la pelos US$ 320 milhões, em março.

Esta manobra, rara até no mundo dos grandes negócios, nem foi ainda bem explicada e já parece assimilada pelo mercado – só ressalvando que a CPI ainda não decolou. Os donos da Gol compradora estão sendo incensados pelas revistas de economia como gênios da década.

Na quinta 26 de março, quase um ano depois da quebra e apenas um mês após a venda para a Gol, outra CPI, então aparentemente inofensiva, conduzida pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, se antecipou e pediu à Justiça a quebra do sigilo bancário e fiscal do chinês e do juiz carioca Luiz Ayoub, que autorizou o negócio (lembrando que a Varig foi vendida na primeira vez num leilão judicial conduzido por ele).

Juiz suspeito? O homem se sentiu ofendido e processou os deputados. Seu protesto foi abafado pelo escândalo da venda de sentenças pelos colegas.

Na mesma quinta, o Superior Tribunal de Justiça condenou a União a pagar a indenização de R$ 3 bilhões à Varig por prejuízos causados pelos planos econômicos de governos anteriores.

Se e quando tal sentença passar pelo STF, e quando for corrigida para quase R$ 7 bilhões, e se for paga pelo governo (que deverá descontar seus impostos….), o céu vai ficar nublado outra vez. Quem vai levar a bolada? A quebrada Fundação Ruben Berta? A Gol? É bom saber logo, antes que o chinês leve tudo.

Astúcias de um chinês chamado Lap Shan

Nos bons tempos a Varig mantinha 450 vôos diários, um enorme desafio logístico vencido com eficiência e classe: o serviço de bordo chegou a ser o melhor da aviação internacional. O luxo acabou com a chegada da Era do Amendoim com Barrinhas de Cereal.

A crise pintou no horizonte nos anos 90, quando ela estava bem de saúde e com muita gordura para queimar: tinha frota própria com 100 aviões e U$ 2,4 bilhões de patrimônio líquido positivo. No dólar de hoje, seriam 4 bilhões e 800 milhões de reais.

A Varig começou a quebrar quando perdeu o monopólio dos vôos internacionais. Os executivos da época foram sendo abatidos pelo preço da gasolina, por crises internacionais, pela competição com a concorrência e até por seus próprios umbigos: a empresa trocou seis presidentes em cinco anos.

Em uma década voando sem rumo a Varig vendeu a frota. E passou a alugar aviões. Assim, queimou a gordura de US$ 2,4 bilhões. Pior: abriu um rombo de US$ 2,5 bilhões. Gordura e rombo somados, ela perdeu quase US$ 5 bilhões, média de 500 milhões de dólares anuais de prejuízo.

De onde saiu tanta incompetência gerencial? No mundo dos grandes negócios dá para viver por anos rolando esta dívida. No da Varig seria barbada porque até em seu pior momento, março de 2006, ela ainda faturava 100 milhões de dólares por mês, US$ 1,2 bi por ano.

Com este dinheiro até um gerente medianamente inteligente seria capaz de rolar a dívida principal e ir cozinhando a crise por décadas: daria para esperar até a possível abertura de uma rota espacial para Marte, quando a empresa teria foguetes e se credenciaria para fazer tal viagem.

Mas não. Dando tiros e mais tiros no próprio pé, em novembro de 2005 a Varig vendeu sua subsidiária de carga VarigLog para o espertalhão chinês Lap Chan (foto).

Ele pagou US$ 69 milhões. Mas a VarigLog vendida levava junto uma dívida de US$ 153 milhões com a própria Varig, por serviços de transporte já realizados. Logo, a VarigLog valia os 69 pagos e mais os 153. Sacaram a operação? Seria tão bom como comprar um carro usado, cheio de barras de ouro no porta-malas.

Tendo feito este primeiro negócio com a Varig, o chinês ficou bem perto da garganta da empresa, preparando-se para beber seu sangue.

Os executivos brasileiros não enxergaram o vampiro voando na sala? Parece que não, porque logo o chinês se ofereceu para comprar o dinheiro em caixa da Varig…

Isto mesmo. Comprar dinheiro! E pagar com dinheiro. É duro de entender mas fácil de explicar: a Varig vendia uma passagem por 1.000 reais no cartão de crédito, para receber no fim do mês. O chinês pagava, adiantado, 500 pelos mil, aí Varig não precisava esperar o fim do mês.

Assim, a partir de dezembro de 2005 ele começou a comprar estes créditos futuros (as vendas de janeiro por cartão de crédito, dinheiro bom em poder das administradoras de cartões Visa e Mastercard).

Enforcada, a Varig foi vendendo seu dinheiro de caixa até junho, quando não tinha mais nem para pagar gasolina dos aviões. O dinheiro bom dela estava todo com Chan.

Aí Chan, já dono de uma parte da Varig, tentou comprar toda companhia por mais 400 milhões de dólares. Prometeu que se comprasse faria aparecer dinheiro para gasolina – imagine o vampiro guloso já agarrado no pescoço, mas procurando mais uma veia da vítima.

Não adianta agora demonizar o chinês. Ele é apenas um intermediário. Todo mundo sabia que ele não tinha um tostão furado. O dinheiro usado por ele para estas manobras veio do fundo Matlin-Patterson. De quem é o fundo? De grandes companhias aéreas americanas e de fundos de pensões do primeiro mundo. É o tipo fundo-abutre, que se nutre de empresas mal das pernas, comprando-as por uma ninharia, para revendê-las com lucro.

Quando o chinês fez a proposta dos US$ 400 milhões, os credores e os empregados da Varig sentiram o cheiro do golpe.

Os credores temiam que se Chan comprasse não receberiam suas dívidas, os empregados sabiam que ficariam sem salários.

Foi aí que entrou na briga esta honrada instituição brasileira chamada Justiça.

Três juízes da Vara de Falências do Rio de Janeiro (escolhidos porque é lá que a Varig tinha sede) passaram a acompanhar um processo de recuperação judicial, novo nome da concordata, falência, quebradeira.

Era muita areia para três cabeças sem dinheiro, sem nenhum traquejo pros negócios e assoberbadas por milhares de outros processos.

Eles deveriam achar solução para o megacomplexosuperproblema que por 15 anos consumiu a inteligência nacional – e rápido, porque o chinês estava com sede.

Emergiu desta trinca o juiz Luiz Ayoub, agora uma celebridade nacional. Ele bolou a solução de leiloar a Varig pela melhor oferta. Seria um processo transparente. Chamou as TVs e comandou o show de martelo na mão.

Os empregados formaram um consórcio batizado TGV (Trabalhadores do Grupo Varig) e se apresentaram.

Como lastro usaram seus créditos trabalhistas, as contribuições no fundo Aerus, dinheiro do banco USB e apoio logístico da Lan Chile.

Veio o leilão. O chinês não fez nenhum movimento. Os empregados fizeram uma proposta e venceram.

Nas duas semanas entre a vitória e o pagamento o governo entrou no rolo, consumando uma intervenção no fundo Aerus – com a medida, ele tirou o lastro dos empregados.

O juiz anulou o leilão e fez outro. Quem se apresentou desta vez? Não precisa ser gênio da economia para saber que foi o chinês. S.o.z.i.n.h.o! Ele, que tinha oferecido US$ 400 milhões pela empresa (aquela proposta recusada), que não participara do primeiro leilão, ainda estava interessado.

Como é que ele sabia que os empregados iriam ganhar e depois perder? Mistérios vampirescos. Esperando quieto, entrou sozinho no segundo leilão e nem precisou pagar os US$ 400 milhões, bastou oferecer 24. E levou.

Até seu Otto deve se revirar na tumba.

Faxineiro que chegou à presidência previu o fim
Os mais antigos varigólogos dizem que a Varig só foi bem administrada no tempo do seu Otto. Otto Ernest Meier. O imigrante durão que trouxe um avião da Alemanha e plantou as raízes do império do ar, no Rio Grande do Sul, em 1927.

O negócio parecia ir bem. Vapt vupt, Otto perdeu tudo. Dizem historiadores gaúchos que ele tinha uma queda por Hitler e por isso o presidente Getúlio Vargas manobrou pra tirá-lo do comando. Empresários turbinados pelo dinheiro público do Rio Grande assumiram o controle da companhia em 1941.

Na escala de 1945 a Varig sem Otto estava quase quebrada. Como avião era novidade, o empresariado gaúcho optou por doar o que sobrou do patrimônio para os empregados, voltando-se outra vez para carnes e couros – bota visão nisso.

Sob inspiração do primeiro faxineiro, Ruben Martin Berta, alçado a top executivo, foi criada uma fundação para gerenciar a companhia. Era para ser uma inovação democrática, último passo antes e o mais parecido com a tomada do poder pelos trabalhadores.

A fundação nasceu sem oposição porque era uma titica. Ninguém poderia imaginar que ela cresceria a ponto de ser um rabo tão grande capaz de balançar o cachorro.

Berta profetizou que a Varig gerenciada pela fundação só poderia quebrar se e quando os empregados (que em tese a dirigiriam) quisessem – quando ele morreu, em 1966, ela foi rebatizada com seu nome, aqui abreviado para FRB.

O homem não imaginava que antes do colapso final o Brasil produziria Fernando Collor. Em 1990, o presidente abriu o mercado da aviação nas rotas internacionais, dando o primeiro golpe na Varig.

Em 91, ainda sem se dar por vencida, a empresa encomenda novos aviões da Boeing e tenta decolar. Veio a Guerra do Golfo e com ela disparam os preços do petróleo, pinta uma recessão.

Ela vende seus aviões para bancos e empresas que alugam aviões. Passa a pagar aluguel para o que antes fora seu – pode tal idéia?

Depois de Collor, Fernando Henrique botou o segundo prego no caixão, com sua desvalorização do Real de 1999.

Em 2001 a moribunda passou a sofrer concorrência da Gol no mercado interno. Foi justo o ano do atentado de 11 de setembro, paralisando o setor aéreo. As dívidas da Varig aumentaram, a pequena Gol sentiu menos o golpe e tomou-lhe a freguesia.

A FRB continuou viva, até porque ela só existe para proporcionar benefícios sociais aos empregados da Varig. Quando não mais o fizesse deveria ser extinta, conforme seus estatutos e a Lei das Fundações.

Pelo receituário neoliberal, a FRB representa o passado glorioso e o presente fracassado da Varig por ter administrado a empresa privada como sendo uma estatal ineficiente.

No mercado, seus administradores eram vistos como nadando em mordomias, enquanto geriam a empresa com incompetência, para dizer o mínimo.

Até a quebradeira, a FRB era um INSS com dinheiro. Tinha a cia aérea para gerenciar e tirar dela lucro para pagar benefícios médicos, suplementar aposentadorias e até financiar casa aos empregados.

Atenção para um erro comum: os empregados nunca foram donos da Varig. Não tinham cotas, nem ações. E também não eram donos da FRB. A fundação é que era dona de tudo. Os empregados eram apenas isto: empregados.

Sem patrão, quem mandou na Varig na era pós herr Otto? O Colégio Deliberante da FRB. E depois dele o Conselho Curador da FRB, escolhido pelo Colégio, que por sua vez indicava o Conselho. Complicado, né? Bem, é mais fácil explicar como a Santa Sé escolhe o colégio cardinalício e os papas, inclusive com a composição química da fumaça branca que avisa a escolha do novo pontífice.

Alheios às lutas pelo poder dentro do Colégio e do Conselho, alheios também aos atos da diretoria da Varig, os empregados tinham a vida garantida pela FRB – com promessa de amparo vitalício pelo seu fundo de pensões, o Aerus, fundo este resultado de aplicações financeiras das épocas de vacas gordas.

Por três décadas foi quase tão seguro e confortável ser da Varig quanto ser empregado do Banco do Brasil ou da Petrobras.

Entre os anos 80 e 90 a Varig entrou na zona de turbulência do setor aeronáutico internacional e começou a se…modernizar. Dividiu-se, criaram-se subsidiárias, empresas agregadas, afiliadas, associadas, formou-se um cipoal de controladas, vendidas e arrendadas, hangares e hotéis, tanta coisa que só com bússola para se saber aonde ela ia. E a FRB inchou mais do que repartição pública às vésperas de eleição.

Quando a Varig quebrou em março do ano passado, seus 11 mil empregados ficaram órfãos. Mais da metade deles até hoje não conseguiu voltar ao trabalho. Desde a quebradeira a Aerus está pagando os benefícios com vales.

O generoso fundo de pensão minguou, acabou sob intervenção do governo. Seu futuro tem a mesma segurança de uma caixa de fósforos vazia na sarjeta em dia de enxurrada – no fim de abril dezenas de pensionistas e aposentados que tiveram benefícios cortados realizaram uma maratona de protestos nos aeroportos Congonhas, Galeão e Salgado Filho.

Até a criação da CPI do Apagão, a Assembléia do Rio de Janeiro foi a única tribuna popular interessada no futuro da companhia aérea nascida no RS. Mas isso porque o Rio também tomou um calote da Varig. O estado pagou R$ 240 milhões em ICMS recolhido indevidamente para que a empresa continuasse operando e assim mantendo empregos na Cidade Maravilhosa. Aí ela quebrou, vendeu a parte boa e se mudou para São Paulo, num calote dentro do calote.

Os empregados que perderam as vagas sofreram também uma pequena humilhação: em entrevista a uma revista, os novos controladores disseram que só estavam levando para a nova Varig “aqueles empregados que tratavam bem os passageiros” – parece que dois em cada três da turma posta na rua só estava de uniforme para destratar viajantes.

A Varig quebrada e mudada para Sampa encolheu quase ao tamanho que tinha quando era comandada pelo faxineiro, que assim viu cumprida sua profecia: “Os empregados vão acabar com ela”.

Vítima inocenta skinheads presos

Renan Antunes de Oliveira

Uma das vítimas (cujo nome é mantido em sigilo a pedido da família) do ataque de skinheads a judeus na noite de 8 de maio num bar da Cidade Baixa, não reconheceu os quatro homens presos pela agressão.

Mais: ele disse que a polícia e algumas testemunhas preparadas por ela fabricaram depoimentos para incriminar os acusados apenas para “satisfazer as exigências de segurança da comunidade judaica”.

No incidente, um grupo de 11 skinheads atacou três jovens, E.N.S., R.F.M. e A.F.G., aparentemente escolhidos para a violência entre os fregueses do bar Pingüim porque usavam “kipá”, um chapéu de cerimônias religiosas judaicas.

Uma das vítimas recebeu quatro facadas, no baço, fígado e pulmões. Passou 30 dias internada no HPS e ainda se recupera de cirurgias reparatórias. As outras sofreram apenas ferimentos leves.
Dias depois do incidente, que teve repercussão nacional (ocorreu no dia em que se comemora a derrota do nazismo com o fim da Segunda Guerra Mundial), o Departamento de Polícia Metropolitana localizou, prendeu e indiciou quatro dos 11 skinheads por tentativa de homicídio qualificado, formação de quadrilha e crime racial – todos foram para o Presídio Central aguardar julgamento porque o crime é inafiançável.

Os acusados são Israel da Silva, 24 anos, Laureano Vieira Toscani, 20, Valmir Machado Jr, 26, e Leandro Braun, 26, apontado no inquérito como o mais violento do grupo – o sobrenome dele é, por coincidência, o mesmo da mulher de Hitler, Eva.

Punição por tabela
Na quarta-feira (3/8), às 17 horas, na sede do JÁ, um dos jovens atacados examinou fotos dos acusados, as mesmas usadas no inquérito policial para identificá-los. Ele disse que “nunca” viu três deles, Leandro, Laureano e Valmir. Do quarto, acha que pode ser um dos atacantes “porque tinha os olhos puxadinhos, parecidos com os deste cara”. Mas ressalvou: “Não tenho certeza se é o mesmo”.

Ele falou que não disse à polícia que aqueles eram os agressores. Como então ela chegou àquela conclusão? “Não chegou. Pegou os quatro porque já eram fichados”, disse a testemunha.
O delegado Paulo César Jardim, chefe das investigações, disse que “várias testemunhas identificaram os agressores”. Mas, outras testemunhas também garantem que nenhum dos quatro estava no local na hora da agressão.

Mais do informante do JÁ: “Conversei com um dos meus amigos (dos outros dois atacados) dias depois do ataque, e ele me confessou que “fez uma coisa errada”, mas que “desta vez iríamos pegar eles”, referindo-se aos skinheads. Eu entendi que era uma denúncia falsa, mas que atingira os propósitos” (de prender skinheads).

Três dos acusados apresentaram testemunhas de que estariam em outro lugar na hora dos fatos. Leandro estaria em Caxias, Valmir dando expediente numa danceteria. Laureano num churrasco com amigos. O Jornal JÁ verificou os testemunhos independentes e confirmou as versões.

Tanto a acusação como a defesa dos skinheads se dá exclusivamente através de testemunhas oculares. Sobre a confiabilidade delas é bom notar esta estatística do judiciário americano: de 160 condenações equivocadas, 75% foram obtidas com base em testemunhas visuais.

No mundo skinhead
Como a polícia concluiu que os quatro estavam no mesmo bando? Porque nos arquivos eles aparecem como acusados num mesmo inquérito de 2003. Mas em 2005 Israel, Leandro, Valmir e Laureano não poderiam estar juntos simplesmente porque eram rivais.

Na ocasião, para safar-se de acusações, Israel denunciou outros skinheads, ficando marcado pelo grupo. Tanto que no presídio, Israel está em ala separada, para evitar contato com os supostos amigos – eles só estiveram juntos em julho, quando foram apresentados à Justiça.

Um investigador que trabalha no caso afirma que não importa se os quatro acusados foram ou ainda são neonazistas: “O que queremos é intimidá-los e dar uma lição nestes quadros. Todos já estiveram envolvidos em ataques anteriores e escaparam da Justiça”.

Leia íntegra da reportagem na edição de agosto do Jornal JÁ Porto Alegre, que está nas bancas.

O prefeito do além

O guri pobre, franzino e mal alfabetizado se apresentou pro serviço obrigatório no quartel do 13º GAC, o poderoso Grupo de Artilharia de Campanha, em Cachoeira do Sul. Sua ambição era grande: manejar os canhões de 155 milímetros da guarnição, os maiores da América Latina.

“Mas bah, tchê, ouvi dizer que tu é bruxo…”, começa um oficial, disposto a dispensá-lo. O recruta Marlon Arator explica que é apenas médium, como se diz da pessoa que encarna o espírito de gente morta. Garante que isso não prejudicará o Exército e implora pra ser alistado.

A cena aconteceu há quase 10 anos. Aquele soldado ambicioso passou dois anos na tropa, lá dentro fez o supletivo, chegou a cabo-artilheiro. Sonho realizado, ele trocou a farda pelo uniforme de médico espírita, incorporando um certo doutor Suzzenn, espanhol morto em 1814 – e montou um terreiro mediúnico onde já recebeu 500 mil pessoas.

O Marlon “médico” acabou preso, condenado pela Justiça por exercício ilegal da profissão. Para livrar-se da pena buscou a imunidade na política: foi vereador com 23, deputado estadual com 26, já é tolerado pelo sistema. Aos 29, é o prefeito de Cachoeira. Prepara-se para ser senador aos 30, nas eleições do ano que vem.

Ele admite que boa parte de suas conquistas terrenas se deve aos espíritos. O Marlon médium elegeu-se deputado estadual pelo PFL fazendo votos em 303 dos 496 municípios gaúchos – muito além da cidade onde atuava, coisa que só conseguiu com a força do nome nos centros espíritas.

Ele fez por onde ajudando a si mesmo. Está rico. É um monte de coisas ao mesmo tempo. Exímio carateca, apicultor, tesoureiro do PFL regional, presidente nacional da juventude pefelista, criador de ovelhas, acadêmico de Direito, baterista esforçado, compositor de música gauchesca e romântica, cozinheiro aplicado, pai solteiro e dedicado, Don Juan assumido, escritor, mestre maçom, despachante jurídico e minerador de cromita – cada atividade dele renderia um opúsculo.

Como político ele não é um sujeito carismático. Seu traço mais marcante é a extrema afabilidade. Trata todo mundo com muita cordialidade, dá atenção ao interlocutor. Não tem ataques de fúria no gabinete, como acontece com alguns poderosos, nem quando está no terreiro, onde raramente levanta a voz. É um beijoqueiro. Aos pedidos extravagantes ou impossíveis, responde com “vamos ver”, passando a sensação de que pode resolver todos os problemas do mundo.

A última dele? Quer dinamizar a Capital Nacional do Arroz criando uma atração turística única na Terra: o Museu do Além, dedicado aos espíritos do outro mundo – e ao de Marlon Arator.
Encarnando o doutor Suzzenn
O centro espírita onde Marlon Arator atende milhares de pessoas não tem nome. Nem placas indicando sua localização – ele adota o perfil discreto para evitar espalhar ainda mais a imagem popular de curandeirismo. Mas, na cidade onde ele é prefeito, todo mundo sabe onde fica o centro.

O terreiro de curas está abrigado num decadente galpão industrial de uma fábrica de plásticos falida, na Volta da Charqueada, bairro na entrada de Cachoeira, cidade a 200 km a oeste de Porto Alegre, com 90 mil habitantes.

A atração é Marlon, um dos tops do espiritismo nacional, uma celebridade no circuito do além. Amigos e colaboradores gostam de compará-lo a Chico Xavier, o maior dos médiuns brasileiros, já morto.

Como médium ele encarna os espíritos do médico espanhol Suzzenn, e, com menos freqüência, do alemão Richard, este desencarnado em 1844. Os três atendem cerca de 5 mil pessoas por mês, de graça e com hora marcada: sábado das 8h30 às 12h, intervalo para o almoço, das 13h até o último paciente com ficha, às vezes noite adentro.

Marlon diz que sua capacidade mediúnica de curar pessoas não é um dom, mas “uma dívida” dos espíritos: “São eles que ligam do além para cá, eu nunca posso chamá-los”, explicou o prefeito, durante entrevista de duas horas e meia em seu gabinete, iniciada às 17 horas da sexta-feira 24 de junho.

A primeira vez em que os espíritos o tomaram ele ainda era criança: “Eu tinha uns três ou quatro anos”, lembra. “Eu avisei que meu tio tinha morrido antes que alguém na casa soubesse”.
O que parecia um dom virou tormento. A capacidade mediúnica dele foi sufocada pelos pais: “Eles eram muito católicos, não aceitavam aquilo, tinham medo, vergonha, impediram meu desenvolvimento”, diz, com alguma mágoa.

Aos 16 anos ele deixou a casa dos pais, agregados numa fazenda no distrito de Piquiri. Foi para Cachoeira, pro Exército, foi vendedor de vinhos e couros para se sustentar – bebeu nestas fontes de renda até abrir o terreiro.

Está tratando gente desde 1995, quando ainda estava no Exército. Contam que ele começou avisando ao comandante do 13º GAC “vá embora porque sua mulher está passando mal”. O oficial duvidou, mas quando chegou em casa encontrou a esposa enfartada.

Em 1999, quando a fama dele já começava a se espalhar pela campanha e chegava à Serra Gaúcha, o Conselho Regional de Medicina o processou por prática ilegal da profissão. Marlon foi condenado à cadeia e multa de R$ 18 mil. Preso na delegacia local por alguns dias, não chegou a ir para o presídio, salvo “por uma alma caridosa e agradecida”, por graças alcançadas, que pagou a multa por ele. Não se sabe o nome do doador.

Na cadeia, nova manifestação de seu poder. Um preso passou mal, sangrava muito. Chamaram médico, mas o homem nada conseguiu fazer para estancar o sangramento. Aí os carcereiros apelaram para Marlon, ele deu um stop na sangueira.

Naqueles dias de cárcere, cerca de 3 mil pessoas fizeram vigília por ele fora da delegacia. Ele saiu dela candidato a vereador pelo PFL: “Não sou político. Tanto que concorri pelo primeiro partido a me convidar. Hoje não preciso da Câmara de Vereadores (onde não tem bancada), acho que ela só é necessária em cidade se o prefeito rouba”.

Ele afirma que entrou na política “como uma maneira de conseguir imunidade contra as perseguições”. Vereador eleito, quase não assumiu por causa da condenação – mas os desembargadores do TRE acharam lá uma brecha na lei, ele manteve o mandato.

Imunidade definitiva ele conseguiu em 2002, quando foi eleito deputado estadual, o único do partido naquela eleição. Virou o interlocutor gaúcho de gente como o senador catarinense Jorge Bornhausen, passando a dar pitacos na política de gente grande e nos males terrenos.

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Um museu para os espíritos
O projeto de construir um museu para os espíritos é todinho da cabeça de Marlon. O prefeito procurou na internet. Não achando nada parecido, gostou da originalidade da própria idéia e foi em frente.

Ele deu o primeiro passo em março, nomeando para a função de museólogo municipal um ex-sócio, o representante comercial João Carlos Schneider Costa – os dois exploraram o apiário Megapólen, na década de 90.

João Carlos está empolgado com a obra: “O objetivo é nobre, vamos dar um novo tipo de consciência à população. Hoje as pessoas usam só a parte subrepitiliana do pensamento, vamos conseguir que elas usem o neocórtex”, diz.

O repórter não entende nada. Aí o diretor do museu explica com simplicidade que “estamos somatizando o acervo, ele terá coisas fora do físico”.

Ainda não dá para entender. Ele desiste de explicar: “Teremos um setor para UFOs”, exulta.

Costa não tem experiência prévia no ramo. Sente-se qualificado porque gosta do xamanismo – coisa de pajés guatemaltecos. Diz que “a obra vai ser uma coisa abrangente”. Que buscou viver “várias experiências” para se capacitar ao cargo. A última delas no mês passado, quando foi a um encontro meio secreto na Igreja de São Miguel “com um daimista do Acre, para tomar aquela bebida do Santo Daime”.

João Carlos acredita nos poderes mediúnicos do prefeito Marlon. Disse que notou isso “logo que o conheci, ainda no primeiro terreiro”. Na época, ele foi um assessor do homem, ajudando a organizar as filas de pacientes.

A iniciativa do prefeito pegou a massa de surpresa. Já é piada na cidade, mas empresários sérios enxergam algo bom na iniciativa. Comparável àquela da cidade de Roswell, nos Estados Unidos, um lugar perdido no deserto cujo marketing é todo baseado na suposta presença de ETs.

A sede do Museu do Além será no antigo engenho de arroz Roesch. É um prédio imponente que ocupa vários quarteirões no Centro, dado à cidade como pagamento de tributos depois que o negócio quebrou.

A outra iniciativa notável de Marlon já foi abortada: ele ensaiou colocar portões na cidade, para impedir a fuga de assaltantes. Desistiu da idéia depois que as estatísticas mostraram apenas dois assaltos a banco em 20 anos.

Um dia no pavilhão da encarnação

Marlon sobe num banquinho e fala para 500 pessoas. Veste um paletó escuro sobre a roupa branca de médico. Mãos no bolso, nenhum gesto teatral, voz sempre no mesmo tom. Não promete curas, nem pede dinheiro.

A platéia é de gente séria, atenta – e encapotada, por causa do frio de junho. Na primeira fila, senhoras do interior, de rosário na mão, e gente em cadeira de rodas. Nota-se muitas bengalas, muletas, mulheres com crianças de colo. Algumas pessoas choram, revelando dores à espera de alívio.

Aos que estão doentes Marlon ensina que “a cura depende de mudança”. Aí o papo engrena: “Quer mudar? Deixe a vida comum!”

Ele diz à  multidão que “o problema é o caminho da futilidade”. Cada um que está lá dentro é especial porque “tu não nasceste para ser mais um, mas sim para crescer” – o povão nem pisca.

Maior pecador
Um grupo de auxiliares se encarrega de manter o lugar silencioso para o papo. Marlon fala sozinho. Bate de leve nos que são “comuns”: “Estes vão seguir na trilha da evolução” – o que há de errado nisso? Aí ele aconselha o bom conselho: “Deixe a vida comum e chame para ti coisas superiores. Se tu quiseres o sucesso, te associa ao lado de coisas grandes”.

O médium admite que não pode “dar lição de moral, talvez eu seja o maior pecador” (do galpão lotado). Ele sai do campo moral e entra no físico: ensina que o organismo é uma engrenagem. Recomenda que as pessoas façam “xixi e cocô na hora certa”, exaltando a importância das funções fisiológicas. O aviso é dado várias vezes durante a palestra.

Uma pitada de filosofia própria: “Bem e mal somos nós que criamos”. Às vezes, ele divaga para o terreno das “dicotomias”. Uma delas ? “Compro comida, levo para casa, é bom para mim, mas ruim para os outros, isto é dicotomia”.

Um resumo do discurso marloniano: “Deus está acima de todos nós”, reconhece.

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Hora da encarnação
No fim do papo, Marlon se recolhe para uma saleta com aquele time de auxiliares. Tira o paletó e exibe o jaleco do doutor Suzzenn. A turma ora por ele. É seu momento de maior fragilidade – a hora da encarnação.

O homem treme, baba um pouco, assume um ar sonado e pronto: em segundos é tomado por um espírito. Depois, ele explicou como se sente naquelas horas: “Meu metabolismo diminui a freqüência, chego ao estado delta. O espírito controla meu corpo pela atividade elétrica dos átomos do monada, somada com a atividade elétrica da glândula pineal”.

O resultado é “uma preguiça tamanha e tanto sono que não vejo mais nada. Meu metabolismo se reduz das 9 às 13, porque o espírito não desincorpora para que eu vá ao banheiro” – reforçando a tese de ir ao banheiro na hora certa.

Os assessores conduzem Marlon-Suzzenn para o consultório no fundo do galpão. Ele atende numa mesa simples, com dois retratos de Jesus ao fundo, o da Virgem ao lado. Tem vaso com flores de plástico, uma bonequinha e um calendário da Gatorade compondo o cenário. Uma fila se forma e as pessoas começam a lhe pedir socorro.

Sem anestesia
O médium não faz nada de extraordinário quando está encarnado pelo espírito do médico morto. A voz de Marlon continua a mesma, seus gestos são só um pouco mais lentos – os assessores já conhecem as manhas e interpretam suas falas.

O atendimento é de um paciente por minuto. Ele toma o pulso, pergunta qual o mal, anota um horário e data qualquer num canhoto verde. Isto significa que a pessoa vai ser operada pelo espírito de Suzzen no dia e hora marcados.

Muita gente insiste em levar exames médicos, raio-x, coisas pras quais ele não dá bola. O paciente não precisa contar todo caso – supostamente porque Suzzenn já intuiu tudo o que era preciso.
Em alguns casos Marlon-Suzzen operam o paciente ali mesmo, sem anestesia, nem antissépticos. Dia 27, uma senhora gorda tinha um problema qualquer, resolvido com um talho de quatro centímetros na mão direita.

A operada foi posta numa maca no meio da multidão. O sangue ficou pingando no chão. A paciente não deu um pio. Dormiu alguns minutos, foi despertada pelos assistentes, recebeu um curativo e saiu satisfeita.

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Gente em transe
Ele já perdeu a conta das operações. Parou de fazê-las por causa das pressões do Conselho Regional de Medicina. Em momentos como o da senhora gorda o galpão assume ares de uma enfermaria improvisada do SUS. As pessoas deitam em camas, macas e até corredores, depois de tocadas por Marlon.

O salão mediúnico tem uma grande urna verde para as pessoas depositarem pedidos de curas. Dona Gemela Jonaelka e seu Alsino Speroto não puderam ir, mandaram bilhetes através de amigos – mas Suzzenn avisa que não gosta de tratar pessoas que não buscam a cura pessoalmente. O repórter entra na fila, entre dona Gemma, com um pé quebrado, e Diogo, um garoto aparentando muita saúde.

O médium toma o pulso do repórter: “Faça um check up para problemas reumáticos” – diagnóstico novo, até então fora de minha ficha médica. Marca uma cirurgia astral para segunda-feira. Na saída, um assessor surge e sussurra: “Nada de carne vermelha, nem bebidas. Depois da operação, evite sexo por três dias”.

Não ao sexo
O caso mais sério do dia é o de Mateus Rosa Barros, 13 anos, adiantado câncer linfático, precisando transplante.

O caso é grave. Mas Mateus não parece preocupado, acha que melhorou – é a sua segunda consulta com Marlon. Um assessor lhe dá a recomendação padrão: “Nada de carne vermelha, nem vinho, nem sexo”…

Na sessão da manhã do dia 27 estavam também a mamãe Luciana, 29 anos, com o menino Artur, 3 meses. Esperando duas horas na fila. Quem tá dodói ? É o guri. Caso grave? “Alergia ao frio” – nada que um bom cobertor não resolva.

O espírito desencarna perto do meio-dia, permitindo que Marlon vá almoçar. Ele reincorpora a uma da tarde. O médium jura que já tentou mudar a rotina, sem sucesso: “Não posso contrariar os espíritos”.

Menino pobre, médium rico

Os críticos do prefeito Marlon dizem que o homem enriqueceu com o centro espírita, lembrando que ele chegou pobre a Cachoeira, em 1994.

O médium tem uma fazenda de 200 hectares, com 400 ovelhas, avaliada em R$ 1,5 milhão. Construiu uma casa confortável na cidade, onde vive com os pais. E circula numa camionete turbinada que vale R$ 90 mil. Sua única jóia é um brinco de brilhante na orelha esquerda.

Ao contrário de políticos que dizem ter menos do que têm, Marlon parece ter menos do que diz. Semanas atrás ele anunciou ao local Jornal do Povo que é “dono do direito de lavra de uma riquíssima jazida de cromita”, recém descoberta em suas terras e já “avaliada em 10 milhões de dólares”.

Ele faz grandes planos: “Vou explorar a jazida com uma empresa estrangeira”, deixando escapar que foi “um geólogo americano” quem fez a tal avaliação.

A jazida dele vale no máximo R$ 20 mil, segundo técnicos do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), ouvidos em Porto Alegre. O prefeito sequer tem o direto de lavra, só o de pesquisar. E pesquisar calcáreo.

A descoberta de uma jazida de cromita (para fazer aço inox ) por acaso, no meio do calcáreo, não seria suficiente para saber se ela pode ser explorada. Um estudo geológico levaria três anos. No estágio atual, seria como um garimpeiro encontrar um diamante na calçada e começar a esburacar a rua.

O anúncio pode ser entendido como uma tentativa de valorizar as terras e atrair investidores – antes que acabe em CPI é bom avisar que a lei impede a participação de uma autoridade em mineração.

Crise faz incorporar político
A primeira frase da entrevista do gabinete do prefeito é “não sou político”. Ele resmunga que tem dias em que politicar até lhe “dá desânimo”.

Difícil acreditar, de tanto que ele gosta do assunto. Parece que “incorpora” nele um dos fundadores do PFL, o ex-vice-presidente Aureliano Chaves: “Foi por causa dele que eu entrei para o liberalismo”.

E olhe as credenciais dele na política: vereador, deputado estadual, prefeito, vice do diretório gaúcho, presidente da juventude, tesoureiro do diretório nacional.

Marlon foi o único deputado eleito pelo PFL à Assembléia gaúcha em 2002. Ele se refestela na cadeira e conta com evidente satisfação as costuras que fez com o prefeito de Pelotas, Bernardo de Souza, e o de Porto Alegre, José Fogaça, para aumentar a bancada para três, sem votos.

Sem que ninguém lhe pergunte, oferece uma análise da crise desatada por Bob Jefferson: “Quer saber um segredinho? Dias atrás, no meio da crise, ouvi no rádio a leitura da carta de um militar da FAB que faz temer um certo movimento das Forças Armadas”.

Faz uma advertência: “Por muito menos do que está acontecendo agora, o Rio Grande fez a Revolução Farroupilha. Por muito menos caíram os presidentes do Equador e da Bolívia”.

De repente ele tem uma visão: “Se eu fosse o presidente do PFL iria levar uma mensagem a Lula. O presidente não é corrupto, mas está cercado por maus assessores. Diria pra ele que é hora de humildade”.

Política e mediunidade? “Não misturo as coisas. No meu centro espírita não tem propaganda de candidaturas” – verdade, pelo menos fora do calendário eleitoral.

Dicas de Nolram Rotara para Marlon Arator
Ele escreveu “Flamígera”, assinando como “Nolram Rotara”, seu nome às avessas. A obra contém tudo o que diz nas palestras. Na página 103: “Está errado relacionar a morte com o tombamento definitivo do corpo físico”.

Falando, Marlon parece bem concatenado. Eis uma coleção de frases soltas, tiradas de sua entrevista:

No início eu achei que a mediunidade era coisa da minha imaginação. Mas notei que meu organismo sente e decodifica sinais de voz. A voz do espírito é diferente da voz da imaginação.

O que me impulsiona é crer em Deus, por isso não cobro nada. Se fosse coisa da minha cabeça, cobrava 100 de cada um.

Os espíritos que encarnam em mim não estão nem aí se as pessoas não acreditarem neles. Quem quiser pensar que é maluquice, pode pensar.

O trabalho espiritual não sou eu que faço – ele é feito através de mim, com delicadeza, transparência e dedicação.

A política não fazia parte dos meus planos. Eu tinha aversão. Foi bom ser deputado para pararem de me perseguir, para ser respeitado, agora o médium em mim pode fazer muita coisa boa.

O PIB de Cachoeira? Não sei. Nosso orçamento é de R$ 50 milhões e está todo comprometido.

Me dou bem com o bispo da cidade. Os religiosos me encaram como um expurgo, como um trator. Se o Brasil não fosse religioso, o presidente Lula já teria caído.

Onde há religiosidade, há tolerância.

O sucesso tem a ver com a evolução e com a capacidade das pessoas. Hipócritas são os que pensam que não podemos usar a espiritualidade para nada, significa fazer um ostracismo da cultura, um assassinato do conhecimento.

O que seria do mundo se Buda fosse um grande investidor?  Ele daria certo em qualquer circunstância.

Tu seguiste o viés normal?

Não vais aproveitar com intensidade o teu conhecimento.

Não me acho um homem fiel. Não escondo de ninguém. A sinceridade precede a fidelidade.

O amor não pode ter a cultura do enclausuramento. Por isso não boto aliança no dedo. Tenho namorada, mas desejo outras onde elas estiverem. Uma vez por semana sou o melhor pai do mundo (para seu filho de cinco anos).

Chimarrão quente esfola e queima a mucosa do estômago.

Sofro de gastrite e me trato tomando Omeprazol.

Quero ser venerável (o último nível da maçonaria).

Faço frango ao molho de pêssego, costeleta de porco com champagne e espinhaço de ovelha ao molho de aspargo.

Receita para o sucesso que parece hipócrita:
1 – saber dividir inteligência, cultura e sabedoria
2 – ter conhecimento
3 – ter coragem de aplicar o conhecimento

A sorte não está num lugar estático.

ATUALIZAÇÃO EM JANEIRO DE 2009: Marlon Arator perdeu a reeleição à prefeitura e está sem mandato parlamentar. Continua em Cachoeira, atendendo em seu terreiro mediúnico.