A chefa da Justiça manda recado. É pra valer?

GERALDO HASSE
Até que enfim a ministra Cármen Lúcia, atual chefa do Supremo, pediu aos membros do Judiciário que se empenhem no esvaziamento das prisões, lotadas por 600 mil presos, 40% dos quais trancafiados sem processo em consequência de três fatores principais: o crescimento da criminalidade, a diligência do aparato policial e a morosidade do sistema judicial.
À combinação dessas causas aliam-se outros ingredientes explosivos como a crise econômica, a corrupção no interior das penitenciárias e a influência do tráfico de drogas ilegais em todas as instâncias do poder. Tudo isso, junto, gera uma mixórdia dos diabos, aquecendo o caldeirão que se põe a ferver aqui e ali, ora nas ruas, ora num presídio, ora num palácio governamental.
Eis que vem a suprema juíza e lança ao seu exército o desafio: vamos acelerar os processos de modo a reduzir o volume de presos quase pela metade. Será possível? Vamos pagar para ver como se comportarão os milhares de juízes espalhados por todo o território nacional. O fato é que, se cada um deles tirar de cana um preso por dia, no final do ano a população carcerária terá caído pela metade. Na prática, pode não ser tão simples assim.
A libertação de presos que já cumpriram pena é um dever ético dos juízes. Soltar os presos provisórios ou temporários/preventivos também é obrigação da Justiça. Isso vale para pobres e ricos. E aqui vem um senão: talvez o apelo de Cármen Lúcia caia no vazio, pois o Judiciário não é lerdo à toa. Independentemente dos vícios corporativos, ele administra um sistema cheio de idas e vindas, cursos e recursos, avanços e recuos, tudo de acordo com uma infinidade de leis criadas em nome do Direito – e em nome do Direito não se faz Justiça.
Não é por acaso que há juízes se unindo a procuradores no afã de prender sem provas e condenar sem culpa comprovada nos altos escalões da economia e do governo. É exatamente por isso que o sistema judicial, junto com as redes policiais e o esquema penitenciário, desfruta de pouca credibilidade junto à sociedade, que não se conforma ao ver tantos militantes da Justiça enredados numa teia que se confunde com as redes mantidas pela Corrupção ou, seja, o Dinheiro.
É animador ver a juíza suprema cutucar o sistema, incitando-o a exercer seus deveres e prerrogativas, mas devemos admitir que esse é apenas o primeiro passo no caminho de uma Justiça realmente redentora.
Sabemos que grande parte dos crimes que abarrotam as cadeias é cometida sob efeito de drogas e/ou tendo por motivação disputas por pontos de venda ou áreas de distribuição disso ou daquilo.
Daí se entra num mundo absolutamente surreal: afinal, se as drogas alteram a percepção das pessoas, levando-as a cometer infrações à lei, onde está o problema: nas leis, nas pessoas ou nas drogas? Ou será a busca insana do Dinheiro que transtorna todos?
É de duvidar que Cármen Lúcia ou qualquer um dos seus 10 colegas do Supremo, os desembargadores dos estados e os juízes em geral tenham uma avaliação desse problema ou se disponham a se aprofundar no tema em busca de uma saída planejada.
Até agora, com raras exceções, os togados preferiram manter-se acomodados sob o manto das leis. A maioria não passa dos discursos bem intencionados. Todo início de ano as faculdades de direito convidam sumidades jurídicas para aulas magnas que não mudam uma vírgula sequer nas decisões judiciais. Na própria hierarquia do Judiciário se encontram procuradores e juízes e até funcionários com sensibilidade e disposição para mudar a rotina do Mal, mas a maioria se mantém inerme por medo ou preguiça, só fazendo o feijão-com-arroz de sempre.
Nos poderes executivos, a maior compreensão do problema está mais nos profissionais da saúde do que nos setores policiais ou penitenciários, onde uma parcela dos funcionários faz vista grossa diante do poder do tráfico.
No Legislativo, um ou outro galo sobe na tribuna para cantar, mas já nos acostumamos com as bancadas ágeis na defesa de interesses corporativos e lerdas no aprofundamento de questões cruciais – a maior delas é a saúde física e mental da população, item que depende do nível da educação e por aí vamos até trombar com a desigualdade social, mãe da miséria e da violência. Ou, seja, está tudo junto, sendo as drogas – do álcool ao crack – o denominador comum de grande parte das situações que levam às cadeias e aos hospitais, ao absenteísmo no trabalho e à evasão escolar. .
Assim chegamos à conclusão irrecorrível como uma sentença do STF: não adianta combater o tráfico de drogas, pois quem o sustenta é a demanda dos consumidores. O uso de drogas legais ou ilegais, leves ou pesadas, é questão de saúde, não caso de polícia. Estamos a enxugar gelo.
Após o primeiro lance da ministra Cármen Lúcia, quem terá coragem de encarar o Dragão?
LEMBRETE DE OCASIÃO
“O dinheiro fala. Mas bom mesmo é o dólar, que fala todas as línguas.”
Millor Fernandes

Um comentário em “A chefa da Justiça manda recado. É pra valer?”

  1. Diminuir a população carcerária fica difícil quando quase 50% dos presos está trancafiada baseado apenas no depoimento de PMs. Sem inquérito, sem investigação, sem provas, sem nada que corrobore a palavra dos brigadianos, que tem “fé pública”. Como que um sujeito com doutrina militar pode ter “fé publica” se o sujeito é treinado pra obedecer ordem do seu superior, mesmo que isso seja contra sua moral ou contra sua vida? Tem que mudar esse conceito já!

Deixe um comentário para Andres Vince Cancelar resposta