Marcelo Danéris, vereador de Porto Alegre pelo PT
Para uma cidade que já foi considerada a capital com melhor qualidade de vida do país, segundo a ONU, ver o governo Fogaça comemorar o terceiro lugar em premiação realizada por uma entidade local não pode ser exemplo de mudança para melhor. Ao mesmo tempo temas relevantes e graves para a população estão sem solução por parte da atual administração.
A crise da saúde, com as precárias condições do HPS, contas rejeitadas pelo Conselho Municipal da Saúde, postos fechados, sem medicamentos e médicos, e o Hospital da Restinga, promessa que não saiu do papel. A crise do lixo, com a falta de recolhimento e limpeza, além de suspeitas nas licitações do DMLU.
A crise com os funcionários, com uma greve de mais de vinte dias, e a crise envolvendo a revisão do Plano Diretor, sob investigação do Ministério Público. Outro exemplo é a inoperância da prefeitura para exigir do Estado uma solução para as obras da Avenida Baltazar de Oliveira Garcia.
Mesmo assim o governo Fogaça destaca a construção de 3,4 mil moradias, sendo que a maioria está no papel (Vilas Dique e Chocolatão), 700 são “casas de passagem” e mais de 1200 são programas do Governo Federal. Destaca também as 21 novas creches, cinco ao ano, quando antes eram conveniadas dez creches por ano. Essa ausência do poder público se reflete também no superávit artificial alcançado com um brutal corte dos investimentos, serviços e custeio, tão festejado pelo prefeito.
Os investimentos previstos para 2006 eram de 215 milhões de reais, mas foram aplicados menos da metade deste valor. Das 335 demandas definidas pelo OP em 2005/2006 apenas 29 tinham sido realizadas até maio de 2007. Depois de dois anos de abandono o Auditório Araújo Vianna foi entregue para a iniciativa privada por dez anos, em um processo de privatização branca.
Recentemente foi denunciado o descaso com os programas Fome Zero e Cozinhas Comunitárias, que em 2006 receberam pouco mais de 20 mil reais, contra 6,7 milhões gastos em publicidade. Isto revela um governo sem cuidado com a cidade, mais, a idéia “modernizadora” de administrar Porto Alegre como uma empresa tem se mostrado prejudicial para a população, sobretudo para quem mais precisa.
Autor: Elmar Bones
Réquiem para o rio Madeira
Rogério Grassetto da Cunha, biólogo, doutor em Comportamento Animal
Honestamente, não é por falta de vontade que não escrevo sobre temas mais positivos, soluções que estão dando certo ou propostas de novas soluções. Mas a liberação de licença prévia pelo IBAMA para a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira, assinada pelo presidente substituto (grifo meu) do órgão, Bazileu Alves Margarido Neto, no dia 9 de julho último, é tão grave, que o viés catastrófico acaba prevalecendo. Não se trata ainda da palavra final, pois ainda é necessária uma licença de instalação. Mas significa que, nas palavras de Luís Lopes, da sede do IBAMA que assina a nota no sítio do órgão, “as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau são ambientalmente viáveis (outro grifo meu) e que já podem ir a leilão pelo Governo Federal para concessão de uso”. Parece então que o Palácio do Planalto, com a forte ministra Dilma como general, ganhou esta briga contra a fraca ministra Marina Silva.
Como amplamente noticiado pela mídia, a licença inclui 33 condicionantes, ou seja, ações que deverão ser implementadas em diversos níveis, sob pena de seu cancelamento. Os termos do início da licença são aparentemente bastante rigorosos, dizendo que ela pode ser também cancelada se ficar comprovado que houve “omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença” ou se houver “graves riscos ambientais e de saúde”. Resta saber o que o fatiado e pressionado IBAMA entende agora por “graves riscos ambientais e de saúde”, se os alertas sobre o risco de epidemias, a degradação e a possível contaminação do rio foram considerados “ambientalmente contornáveis”. Parece piada! Como se alguém em sã consciência acreditasse que, depois desta concessão da licença prévia, o processo possa ser revertido, no país campeão do fato consumado e sob forte pressão dos grandes veículos de mídia, ampla e francamente favoráveis às usinas de uma forma geral.
Contudo, lendo-se as condicionantes (sem o olhar crítico de quem acompanhou o processo ou “sabe como as coisas são”), sai-se com uma ótima impressão. Elas detalham diversos aspectos que devem ser cuidadosamente estudados em relação aos possíveis problemas com acúmulo de sedimentos, resuspensão de mercúrio e, principalmente, relativos à fauna, em particular aos peixes. Se cumpridas à risca, parece (à primeira vista e olhando-se de fora) que os impactos poderão ser reduzidos. Diga-se também, a bem da verdade, que estas usinas são de modelo fio d’água, que necessitam de barragens e lagos menores que os das hidrelétricas tradicionais.
Há, contudo, algumas questões importantes que ficam no ar. Para a condução séria dos estudos requeridos e com o nível de pormenorização exigido, serão necessárias várias equipes de profissionais altamente capacitados em diversas áreas, que necessitarão ainda de recursos materiais e, principalmente, tempo. Serão despendidos os recursos necessários à contratação de profissionais realmente gabaritados às tarefas? Uma vez que tais profissionais serão pagos por empresas interessadas no projeto, qual a liberdade que terão para conduzir os estudos de forma transparente e independente e/ou de chegar a conclusões que possam contrariar os interesses de tais empresas? Dada a especificidade de muitas das exigências, estará o IBAMA tecnicamente apto a julgar se os projetos são adequados e se as medidas foram ou estão sendo conduzidas apropriadamente? Se estiver apto ou se recorrer a universidades e centros de pesquisas independentes (o que seria o ideal), o que fará se o julgamento levar a conclusões negativas ou mesmo se atestar que as usinas são ambientalmente inviáveis? Terá o órgão força política para negar a concessão de licença de instalação? Pior: quando for concedida a licença de instalação (por que, ao que tudo indica, inevitavelmente o será), quem irá assegurar-nos que as medidas mitigatórias e compensatórias continuarão a ser rigorosamente respeitadas, dado que governo e empreiteiras deixaram claro, embora não assumam de forma explícita, que consideram o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento? Todas essas são questões extremamente importantes que serão escamoteadas pelo governo e ignoradas pela mídia nos próximos meses.
Mas talvez a questão mais importante de todas seja: quem pode garantir que não haverá sérios impactos aos ecossistemas locais, à fauna de peixes em particular, à saúde da população de Porto Velho e de outras cidades próximas às barragens, e à situação sócio-econômica da capital rondoniense? Dada a extrema complexidade dos ecossistemas amazônicos, sobre os quais nosso conhecimento está apenas começando a engatinhar, ninguém pode garantir isto, nem IBAMA, nem empreiteiras, nem pesquisadores, nem governo. Repito: ninguém. Então essa passa a ser uma questão ideológica, e os que sempre estiveram a favor das usinas continuarão sendo, e elas serão construídas.
E já que estamos no mote das questões, mais uma. Vale a pena e é necessário correr o risco? A resposta é simples, não, e aqui vale a pena estender-se, já que a imperiosa necessidade da produção de energia para evitarmos um apagão parece ser a principal chantagem por trás da manipulação da opinião pública para que esta se torne favorável aos empreendimentos.
Mesmo desconsiderando possíveis (diria até prováveis) problemas ecológicos sérios os custos extremamente elevados destas usinas já depõem contra elas. Os valores mencionados já chegam à casa dos R$ 25,7 bilhões (bem, isto supondo-se que as estimativas realmente reflitam o custo real da obra, premissa não muito fácil de aceitar no Brasil). Para entender este valor tão alto, imagine só todo o custo de material e mão-de-obra para a construção de uma usina deste porte no Sul ou no Sudeste. Agora adicione a dificuldade de fazer isto tudo chegar numa região do país de acesso extremamente complicado.
Pois bem, mas falava eu dos custos. Como os documentos mencionam uma potência instalada de 6.450 mega-watts (milhões d watts – MW) para as duas usinas, o custo de implantação das mesmas será de quase R$ 4.000 por kilowatt. Valor altíssimo, considerando-se usinas hidrelétricas. Some-se a este valor a enorme quantidade de dinheiro que teremos que gastar com linhas de transmissão para trazer a energia até os centros consumidores. Documentos do PAC mencionam uma linha de transmissão de Porto Velho a Araraquara, em São Paulo! Considerando-se a distância entre estas duas cidades ( 2.800 km aproximadamente) e o custo médio de todas as obras de linhas de transmissão do PAC, adicionamos algo em torno de R$ 2,3 bilhões, para um total próximo a R$ 28 bilhões. Para se ter uma idéia de valores comparativos, a usina de Itaipu, com capacidade de 12.600 mega-watts (quase o dobro das duas do rio Madeira), custou aproximadamente R$ 29 bilhões.
As alternativas são várias e, considerando-se estes custos, viáveis, mas acima de tudo, se há um risco real de apagão, devia-se investir antes de qualquer coisa na repotenciação de 67 usinas antigas no Brasil. Um estudo conduzido na USP calculou que este trabalho permitiria adicionar mais de 11 mil MW de potência, quase tudo o que o PAC planeja acrescentar até 2010 e praticamente o dobro das duas usinas do Madeira. Custo: R$ 5,4 bilhões para parte deste potencial (8 mil MW). Detalhe: sem alagar nada que já não esteja alagado, sem gastar com novas linhas de transmissão (aliás, a melhoria das linhas em todo o país permitira mais ganhos ainda, a custos baixos e sem passivos ambientais), sem novos impactos ambientais … mas também sem obras caras que interessam principalmente às empreiteiras e que contam com seus fortíssimos lobbys.
Luiz Roberto Lopez: Uma Presença Insubstituível
Mário Maestri, historiador e professor da UPF
No dia 22 de julho, cumpre-se mais um aniversário do falecimento do historiador Luiz Roberto Lopez, em Porto Alegre. Nesses três últimos anos, foi enorme o peso da falta de Lopez, para seus amigos, companheiros, familiares e, sobretudo, para o imenso público, especialmente de Porto Alegre e do RS, ao qual se dirigia, em forma sempre brilhante, como professor, historiador, articulista, conferencista, polemista.
Como professor da UFRGS, historiador da Secretaria da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, diretor da discoteca Pública Estado, organizador e primeiro diretor do Memorial do RS e professor de cursos de Porto Alegre, Luiz Roberto Lopez construiu vasta e significativa obra, com destaque para as sínteses históricas sobre o passado do Brasil e da Europa moderna e contemporânea, registrada em livros, ensaios, artigos, etc., em parte dispersos ou inéditos.
Homem de vasta e sólida formação humanística, interessado na música, literatura, cinema, Luiz Roberto Lopez destacou-se na docência da história da Cultura, disciplina que lecionou, por longos anos, na UFRGS. Seus dois ensaios sobre a cultura brasileira, desde a descoberta do Brasil ao pré-modernismo, lançados em 1988 pela Editora da UFRGS, constituem um pequeno clássicos da historiografia da divulgação científica, pela qualidade e elegância do texto e interpretação fina e singular das questões abordadas.
Também na área da Cultura, Luiz Roberto Lopez venceu, em 1996, o prêmio literário Açorianos, principal distinção literária sulina, com o livro Sinfonias e Catedrais: representação da história na arte, publicado também pela editora da UFRGS. Nesse trabalho dedicado à análise da cultura ocidental, a partir das grandes expressões arquitetônicas e musicais do pós-Renascimento, reafirmou sua sensibilidade e opções analíticas.
Na abertura desse trabalho, lembrava que, hoje, “o problema” “não é mais reconhecer que o elemento social permeia a produção artística”, mas sim “descobrir como isso ocorre”. Também na introdução, explicou que, no período específico abordado, um dos objetivos centrais de seu trabalho “era mostrar que, ao longo do tempo, a História dos conflitos e interesses de classe também foi uma história de criatividade e beleza”.
Nesses tempos crescentemente áridos, de vira-voltas ideológicas contínuas, Luiz Roberto Lopez revelou-se intelectual intransigente no cumprimento de sua função social. Em forma irredutível, perseverou na permanente luta, no campo da ideologia, cultura e ciência, contra as visões irracionalistas e conservadoras. Quando jovem, em plena ditadura militar, abraçou o marxismo como método de interpretação do mundo, para servir-se dele, com crescente virtuosismo, até seu falecimento prematuro, aos 57 anos.
Luiz Roberto Lopez materializou como poucos a função do intelectual marxista, em seu domínio de intervenção, através do estudo sério e permanente da sociedade, do presente e do passado, nos seus aspectos históricos, sociais e culturais, a partir de suas contradições de classes insanáveis, sempre com o objetivo de disputar, não raro em duras polêmicas, a hegemonia das consciências, na luta pela construção de mundo onde o homem seja, finalmente, algum dia, amigo do homem.
Luiz Roberto Lopez deixou aos seus companheiros, alunos e amigos muito mais que a saudade do homem culto, espirituoso, fraterno, respeitoso, amante da vida em todas as suas dimensões. Deixou um exemplo de vida a ser recolhido, seguido, difundido.
Por iniciativa de sua companheira, Vera Lúcia Remedi Pereira, e dos membros do Centro de Estudos Marxistas do RS, do qual participou, com singular assiduidade e produtividade, desde a fundação, em 1995, até o encerramento de suas atividades, em 2003, os companheiros e amigos de Luiz Roberto Lopez se reunirão, no sábado 21 de julho, às 17h, no Plenarinho da Reitoria da UFRGS, para ato de registro do terceiro ano da morte da sua morte. Após a cerimônia, será discutida a proposta de formação de Associação dos Amigos e Companheiros do Historiador Luiz Roberto Lopez.
O Bom Fim: Onde Nasce a Noite
Haroldo de Souza, vereador pelo PMDB
“Andar pelos bares, nas noites de abril, roubar de repente, um beijo vadio.”
Só a lira inspirada do prefeito José Fogaça, poeta de Porto Alegre e da boemia, poderia descrever, em duas linhas, o perfil do Bom Fim nas suas longas noites. O mesmo Bom Fim que inspirou André Damasceno ao criar o inesquecível personagem “o Magro do Bonfa”, o Bom Fim que trinta anos atrás ouvia o violão plangente de Lupicinio Rodrigues a entoar suas canções inesquecíveis no famoso Clube dos Cozinheiros.
Mas há o Bom Fim do dia-a-dia, a correria ao redor de suas lojas e bazares, os cumprimentos da rotina diária nos bancos e inúmeros estabelecimentos. É esse Bom Fim que nos encanta e estimula, que guarda em seus limites a pequena e linda Igreja situada ali, na aprazível Av. José Bonifácio. É o mesmo Bom Fim que abriga o lendário Pronto Socorro, local tão relevante para a vida do porto-alegrense.
É ele, o velho Hospital, palco das tragédias diárias e de recuperações fabulosas, cenário da vida e da morte, que mais me preocupa como homem público. Ninguém haverá de contestar o extraordinário trabalho que ali desempenham médicos, enfermeiros e funcionários, todos empenhados numa luta insana, tentando salvar vidas, suturar ferimentos, remontar o que a vida urbana destroçou.
É preciso mantê-lo, mas é mais necessário ainda, dar-lhe condições materiais para impedir seu sucateamento, e a salvação do HPS passa pela construção do Pronto Socorro 2, anunciado para a Vila Restinga. Desafogando o velho guerreiro, ele continuará servindo com eficiência e dignidade a todos que o procuram.
Ao prefeito que tanto ama Porto Alegre, meu apelo nestas linhas e de minha tribuna popular na Câmara de Vereadores: Fogaça faz este gol na saúde e desencrava o HPS 2.
Empregos da silvicultura já chegaram ao RS, e alguns já se foram por falta de condições legais
Itamar Pelizzaro, jornalista
Porque muitos gaúchos não querem viver como seu pais e vêem na silvicultura uma alternativa de futuro melhor para os herdeiros
Afirmar que os empregos decorrentes de novos projetos de silvicultura ainda não chegaram é um atestado de desinformação. Eles chegaram, sim, mas lamentavelmente centenas já se foram, pela indefinição das regras necessárias para a criação de condições legais para os plantios florestais no Estado. Não é de hoje, o Rio Grande do Sul tem vários municípios com economia fortemente baseada no manejo florestal. Somente na cultura da acácia, são pelo menos 50 mil famílias que tiram seu sustento dessa árvore.
Todo o setor produtivo de base florestal gera cerca de 250 mil postos de trabalho no Estado, segundo dados oficiais. Somente nos últimos três anos, foram em torno de 31 mil novas vagas criadas. Esses números talvez sejam suficientes para explicar porque, nas recentes audiências públicas promovidas pela Fepam para debater a proposta de Zoneamento Ambiental da Silvicultura, centenas de trabalhadores defenderam com vigor seus empregos e pediram um estudo mais aprofundado, que contemplasse os aspectos socieconômicos, e não apenas o ambiental. Afinal, o estudo apresentado desconsiderou as pessoas e as suas necessidades vitais.
Alguns líderes sindicais têm se manifestado contra a geração de emprego e comentado sobre condições de trabalho que certamente desconhecem. Os trabalhadores florestais são recrutados nas cidades em que se desenvolvem os empreendimentos, e não “importados”. Esses empregos oferecem carteira assinada, condições dignas de transporte (em ônibus decentes, em não em caminhões) e alimentação (comida quente, e não bóia-fria), equipamentos de segurança, capacitação, benefícios sociais garantidos pela lei (13° salário, INSS, FGTS, férias) e outros, como plano de saúde privado. Os exemplos estão em todas as partes deste Rio Grande, em Santa Catarina e no Paraná, para não irmos mais longe.
Em face da satanização do eucalipto por alguns grupos nos últimos dois anos, o Rio Grande pôs o pé no freio, jogando milhares de empregos na corda-bamba. Tudo por causa de uma árvore plantada por estas plagas há 100 anos, de extraordinária capacidade de adaptação e produtividade, vítima do desconhecimento e de crendices. Por causa da desinformação ou de informações desatualizadas e estudos científicos arcaicos e distantes da realidade, está se condenando milhares de pessoas à migração forçada para as cidades grandes, em busca da subsistência. Por questões mais ideológicas do que verdadeiramente técnicas, comete-se uma brutal perversidade social.
É inegável a necessidade de preservação do Pampa, como também é inegável que muitos erros foram cometidos no passado, não somente pelo setor florestal, mas por diferentes setores produtivos que hoje já têm o ambiente como uma forte valor corporativo. Precisamos ter em mente que o Pampa começou a ser alterado no dia em que os jesuítas ali introduziram as primeiras cabeças de gado. No século passado, veio o soja, o arroz e outras culturas anuais intensivas. Como conseqüência do manejo incorreto ou da falta de cuidados com o ambiente, banhados sumiram, rios foram completamente assoreados e contaminados pelo uso inadequado de defensivos químicos. Milhares de toneladas de solo sucumbiram à erosão, imensas crateras nasceram e ponteiam os nossos campos. Tudo sem nenhuma interferência do famigerado eucalipto, uma árvore de grandes qualidades e que tanto ajuda o homem do campo fornecendo matéria-prima para casas, galpões, cercas, moeirões e lenha para a fogueira, sem falar da sua utilização por outras setores econômicos.
Para a preservação do Pampa, é sugerida uma série de alternativas – turismo, fruticultura, hortigranjeiros. Para isso, é imprescindível que se apontem as fontes de recursos para essas boas idéias ou elas não passam de retórica. Neste particular, são os investimentos da iniciativa privada que podem ser o emulador de novas atividades econômicas que também protejam a natureza. Em contrário, as alternativas se tornam impraticáveis do ponto de vista da sobrevivência do homem do campo. O setor florestal tem como prática hoje plantar um hectare e destinar outro à preservação/recuperação/conservação. Quem adota tal prática no país?
O que não se admite mais é termos um Rio Grande dividido em dois, com o PIB de municípios do Norte duas vezes maior do que em outros do Sul. A Metade Sul precisa de incentivos. Não de benefícios fiscais paternalistas, mas de alternativas reais e concretas para seu desenvolvimento econômico e a possibilidade real de conseguir preservar, conservar e recuperar o ambiente pampeano. Se não for da iniciativa privada, de onde virão os recursos para isso? Das prefeituras? Do tesouro estadual? Da União? Todos sabemos que não.
Atribui-se a Arquimedes um axioma interessante – “Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo” – que podemos transpor para o Rio Grande de hoje. Os plantios florestais, com todos os cuidados ambientais que a sociedade justamente exige e que o setor de base florestal implementa como poucos no Brasil, estão postos como potentes alavancas. Basta à sociedade gaúcha entender a silvicultura de precisão que é adotada pelas empresas e exigir sua aplicabilidade correta. Na Metade Sul, poucos querem continuar vivendo como cantou Elis Regina pelos versos de Belchior: “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Muitos têm o sonho de progredir, sem esquecer as raízes e a cultura em que foram criados, mas ir além do que foram seus pais. Caso contrário, o risco das gerações futuras é de continuarem entoando refrões pops mais atuais, como dos Engenheiros do Hawaí: “Se for preciso, eu volto a ser caudilho / Por essa Pampa que ficou pra trás / Porque eu não quero deixar pro meu filho / A Pampa pobre que herdei de meu pai”.
Zoneamento ambiental é mecanismo para proteger espécies já ameaçadas do Pampa
Paulo Brack, professor do Dep. de Botânica da UFRGS e membro do INGÁ
Até agora, quase nada foi dito quanto aos potenciais riscos às espécies ameaçadas, advindos do impacto dos plantios de extensas monoculturas arbóreas (eucaliptocultura) das três gigantes da celulose (Aracruz, Stora Enzo e Votorantim), se o zoneamento ambiental da silvicultura não for obedecido. Estas e outras empresas planejam, conjuntamente, o plantio de mais de um milhão de hectares, em sua grande maioria para áreas de campo, principalmente na metade Sul do Estado, ou seja, nos campos nativos do Pampa.
Os campos nativos possuem mais de três mil espécies vegetais, segundo especialistas em flora do Departamento de Botânica da UFRGS. Em 2002, foram realizados seminários com a participação de mais de cinqüenta botânicos do Estado e do Sul do Brasil, que redundou no Decreto Estadual 42.099/2002 que apresenta 607 espécies da flora ameaçadas de extinção para o Rio Grande do Sul. Destas, pelo menos, 257 espécies ocorrem em ambientes de campo e estão sujeitas à morte pelo sombreamento ou outro fator gerado pelos extensos maciços arbóreos de exóticas, em especial o eucalipto.
No que se refere às categorias de ameaça à nossa flora nativa, 66 espécies são criticamente ameaçadas, 97 estão em perigo, 79 são vulneráveis e 15 poderiam estar extintas. Do total, 235 são ervas, como petúnias, trevos, bromélias de rochas, orquídeas, porém, também ocorrem arbustos, árvores e palmeiras, destacando-se aqui a palmeira carandaí (Trithrinax brasiliensis) e três espécies de butiás (Butia spp.). Os grupos de plantas mais ameaçados pertencem à família das Cactáceas, com 69 espécies, sendo 47 espécies de cactos criticamente ameaçadas, seguindo-se por 40 da família das Compostas (família da margarida), 25 de Gramíneas, 24 de Bromeliáceas e 99 espécies pertencentes a outras 30 famílias de plantas.
No que se refere à situação de conservação destas espécies, desde o decreto de 2002, os governos não fizeram nada para avançar nas políticas de proteção à flora. E ao contrário, em 2003, deputados da base governista pediram sua revogação. É importante destacar que, até hoje, não existem programas de monitoramento específicos para, praticamente, nenhuma das 607 espécies ameaçadas da flora.
O mesmo ocorre com a fauna. Ou seja, se desconhece a situação de 100% das espécies quanto à possibilidade iminente de desaparecimento devido à expansão de atividades como agricultura, silvicultura ou outro fator de destruição de habitat. Quanto à existência de áreas protegidas, as Unidades de Conservação de proteção integral representam 0,68% do Estado, e tão somente 0,36% do Pampa, ou seja, 99,64% deste bioma não está protegido.
A situação é gravíssima se somar-se a isso outras dezenas de espécies da fauna ameaçada (Decreto Estadual 41.672/2002), destacando-se lagartos endêmicos de áreas rochosas do Pampa (Homonota uruguayensis) e dos Campos de Cima da Serra, o lagarto-de-vacaria (Cnemidophorus vacariensis).
O descaso com a biodiversidade não é de agora, e a alegada “falta de recursos” para o monitoramento e outras ações de proteção não é verdadeira. No ano de 2006, foram perdidos mais de 10 milhões de reais pelo contingenciamento e não uso, em finalidade definida por lei, dos recursos de multas e taxas próprias que deveriam ter ido para os fundos ambientais do Estado (FEMA e FUNDEFLOR).
Por outro lado, o governo estadual, atualmente, só destaca o problema da “lentidão das licenças”, não apontando nenhuma medida compensatória eficaz para enfrentar o problema e proteger nosso patrimônio natural. No aspecto das espécies ameaçadas, no dia 13 de junho último, a recém empossada presidente da FEPAM, Ana Pellini, originária da Secretaria de Segurança Pública, quando questionada por entidades ambientalistas, declinou em responder sobre o assunto. Argumentou que não estava familiarizada com o tema e não iria opinar sobre o mesmo.
Assim, com a força-tarefa criada em portaria específica pela direção da FEPAM para acelerar as licenças para a silvicultura, sem observar a questão das espécies ameaçadas, muito destacadas nas diretrizes do zoneamento, o patrimônio da biodiversidade do Rio Grande do Sul fica fortemente comprometido.
Outro aspecto ainda não levantado é a ausência de políticas públicas de controle ao extrativismo e à biopirataria tanto da flora como da fauna no Pampa do Rio Grande do Sul, sejam, ou não, constituídas por espécies ameaçadas. Alguns casos são clássicos e representam, no mínimo, centenas de milhões de dólares de perdas anuais, podendo-se destacar espécies nossas já utilizadas no exterior e com produtos patenteados ou comercializados por outros paises, destacando-se:
– 1) plantas medicinais como a cancorosa (Maytenus ilicifolia), o poejo (Cunila galioides), as carquejas (Baccharis spp.), a marcela (Achyrocline satureoides);
– 2) plantas ornamentais representadas por dezenas de cactáceas (Parodia spp., Echinocactus spp., etc.) e outras como verbenas e camarás (Glandularia spp., Verbena spp., Lantana sp.), as petúnias (Petunia spp. e Calibrachoa spp.), os lírios-do-campo (Zephyrantes spp., Cypella sp., Herbertia sp.), muitas destas levadas para Alemanha, Japão e Itália;
– 3) plantas forrageiras, como o capim-pensacola (Paspalum notatum) e grama-missioneira (Axonopus affinis), em grande parte utilizadas ou melhoradas nos EUA;
– 4) plantas frutíferas como feijoa (Acca sellowiana) e “cherry-of-Rio-Grande” (Eugenia involucrata), estas últimas cultivadas e melhoradas na Nova Zelândia e EUA.
Atualmente, a biopirataria parece continuar solta, como confirmam relatos de pesquisadores da área da Botânica e moradores da região rural de municípios da Metade Sul, visualizando-se freqüentes excursões de europeus que buscam e colhem plantas raras e ornamentais, retiradas de afloramentos rochosos, principalmente na chamada Serra do Sudeste.
A biopirataria atingiu também a fauna do sul do Brasil, destacando-se um princípio ativo no veneno da jararaca ( Bothrops jararaca), que também ocorre no Pampa, segundo a TECPAR (Instituto de Tecnologia do Paraná). O produto desta espécie é utilizado em medicamentos contra a hipertensão arterial, e foi patenteado por empresa estrangeira, gerando um ganho externo de 2,5 bilhões de dólares por ano.
Assim, se somadas as espécies ameaçadas e as que geram bilhões de dólares lá fora, podemos ver que o Rio Grande do Sul vai ficando na contramão da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e da sustentabilidade ambiental. Falando nisso, o maior evento internacional da biodiversidade, que ocorreu em Curitiba, no ano de 2006, a COP 8, (Conferência das Partes sobre a CDB), não teve a participação da SEMA ou de nenhum outro representante do então governo do Estado, que, por sinal, também tinha a participação do mesmo partido da atual governadora.
A teimosia em não observar os preceitos do Zoneamento Ambiental da Silvicultura, para não restringir os interesses das grandes empresas de celulose, somada a atual falta de controle da biopirataria e extrativismo no Pampa deixará o patrimônio em situação mais trágica do que se encontra, atualmente. O afrouxamento das regras ambientais e a ausência de iniciativas governamentais de proteção ao patrimônio representado pela biodiversidade do Estado não será um crime ambiental?
Preconceito Racial
Christian Lavich Goldschmidt, escritor e ator
O Brasil, sinônimo de pluralidade racial e multiplicidade cultural, ainda não aprendeu a respeitar os negros de seu país. Embora cada vez mais possamos ver a negritude colorindo as diversas áreas da sociedade, ainda estamos longe de alcançar a situação ideal: a de um Brasil livre do preconceito racial.
Os negros têm, lentamente, galgado degraus que os conduzem a uma carreira de sucesso. Geralmente é comum vermos isso acontecer com aqueles que se dedicam às artes ou ao esporte. Mais difícil, porém, é encontrarmos negros médicos, advogados, engenheiros e até mesmo políticos. A escassez de âncoras negros nos telejornais brasileiros, repórteres e apresentadores, também é visível. Salvo algumas raras exceções, a televisão brasileira é predominantemente branca. Essa disparidade fica ainda mais clara na Bahia, estado brasileiro que concentra a maior parte da população negra de nosso país.
A falta de políticas públicas que garantam à população negra do Brasil o acesso à educação é a maior responsável pela marginalização dos mesmos. Precisamos tirar o contingente negro das mazelas periféricas de nossas cidades. A solução está, em parte, em proporcionarmos condições ideais de moradia, oferecer aos adultos trabalho dignificante, e às crianças e jovens o direito a uma educação de qualidade em turno integral – porta de entrada para os cursos universitários. Enquanto tivermos uma sociedade dividida entre negros e brancos, onde uns nada têm e outros tudo podem, continuaremos a sofrer as graves conseqüências da injustiça social que prevalece em nosso país.
Porto Alegre (queremos) um Plano Diretor inteligente
Guilherme Dornelles, vice-Presidente da AGAPAN
Estatuto das Cidades
Agora é Lei: o Plano Diretor é um instrumento de gestão de todo o território do Município.
Há 5.000 prédios vazios e desocupados nesta cidade, e todos nós pagamos impostos para mantê-los assim, porque têm direito à rede de água, luz, esgoto, telefonia, escola, saúde, educação, transporte, lazer, segurança e serviços. Quanto custa isto? E a urbanização das favelas?
Os Vereadores – que estão sujeitos as pressões dos empresários da construção civil – decidem por nós, os moradores, qual o modelo de cidade em que iremos viver. São eles, os nossos políticos, que decidem se ao lado da sua casa será ou não construído um arranha-céu. Esta decisão torna-se Lei no chamado Plano Diretor. Você poderá ganhar muito dinheiro vendendo o seu terreninho com a sua casinha, para alguma incorporadora imobiliária, que irá construir um “tremendo” edifício. O seu vizinho, que ficará sem direito ao sol, ao vento, as árvores, com um trânsito infernal na rua outrora tranqüila, mais os problemas de saturação das redes de água, esgoto, telefone, energia, vagas nas escolas, filas nos postos de saúde, este não ficará muito satisfeito. Mas o problema será dele, porque você já resolveu o seu ao vender a sua casinha pra dar lugar a um arranha-céu.
Desta forma a cidade “cresce”. Onde você irá morar? Ah! Ofereceram um apartamento no prédio de 22 andares que será construído no local onde antes estava a sua casinha. Que ótimo negócio. Claro, ainda tem direito a um Box na garagem. Parabéns! E o condomínio, quanto custa? E o salário do porteiro? Do vigia? E as taxas extras? Quando faltar energia, como é que você fará para descer os 18 andares? E se incendiar o 10º andar? E as roupas lavadas, em qual varal (custo zero) serão colocadas para secar? Em qual andar estão os pés de frutas e a horta que havia no teu quintal? Terás de comprar todo o teu alimento no super-hiper-mercado, recém construído no terreno dos teus outros dez vizinhos, que agora, como tu, também moram em um apartamento, que “entrou” no negócio do terreno com a rede de supermercados. Todos se encontram felizes no super-hiper-mercado ao fazerem suas compras diárias. Pena que os cachorros não podem entrar, aliás, nem no mercado, tão pouco nos condomínios. Mas é o preço que se paga pelo “PROGRESSO”. As crianças, agora não precisam mais brincar nas calçadas nem nos pátios, pois o condomínio tem “playground”, todo cimentado e de plástico. No inverno, os aquecedores elétricos mantêm o apartamento bem aquecido, embora a conta da luz não pare de aumentar. Não é preciso mais se preocupar com aquele fogãozinho à lenha, que tornava a cozinha tão aconchegante nos dias mais gelados. Isso é coisa do passado. Vamos poupar lenha, estamos contribuindo para diminuir o efeito estufa.
Você deve explicar a sua atitude para as 900.000 famílias expulsas das suas terras pelas construções das grandes barragens, e para os milhões de hectares de florestas inundados pelos reservatórios destas mesmas hidrelétricas. Terras férteis e milhares de espécies destruídas, para manter o padrão de consumo das “grandes cidades”, cada vez mais energívoras.
Se os estudos apontam que para cada andar colocado acima do 5º pavimento, dobra-se o consumo de energia do prédio, como faremos para convencer os nossos políticos, no caso os Vereadores, que prédios com mais de 15 metros de altura são energívoros?
Como faremos para convencer os nossos políticos que em uma cidade com prédios mais baixos, os custos de manutenção com as redes de água, luz, esgoto, telefonia, educação, creches, postos de saúde, lazer, segurança, etc. são muito mais baixos?
Como faremos para convencer os nossos políticos que uma cidade bem planejada em termos de consumo e fluxo energéticos apresenta um custo de manutenção baixíssimo, tornando, conseqüentemente, os impostos mais baixos?
Como faremos para convencer os nossos políticos que a construção de prédios ecologicamente corretos cria muito mais empregos permanentes do que os mega-empreendimentos imobiliários?
Como faremos para convencer os nossos políticos que a manutenção dos terrenos com as suas chamadas “casas” e “pátios” é o modelo mais inteligente do ponto de vista ecológico, ao contrário dos grandes prédios energívoros e geradores das “bolhas de calor” do aquecimento global?
Nós, cidadãos desta cidade, que ainda é bela, perguntamos a você como faremos para convencer os nossos políticos a não destruí-la e torná-la mais um elefante-branco do aquecimento global?
Vamos nos revoltar e dizer NÃO aos arranha-céus, aos bichos-papões de energia, energia preciosa e cada vez mais cara, ao bolso e a natureza.
Queremos que os empresários e os trabalhadores da construção civil provem que são gerados mais empregos permanentes na construção de um arranha-céu de 25 andares do que na construção simultânea de cinco prédios ecologicamente corretos (máximo 05 pavimentos)?
A decisão sobre a altura dos prédios terá impacto direto sobre a geração de empregos permanentes, aumento de impostos e qualidade de vida. QUANTO MAIORES, PIOR!
Cada cidade tem o Central Parque que merece
Fraga
Para quem já foi considerada – ainda é? – a cidade da consciência ecológica, Porto Alegre está devendo a recuperação da Redenção. Criado para celebrar o centenário de uma página da história que mal preenche um 20 de setembro, este espaço é o Éden local.
Estão lá a flora e a fauna na medida das nossas posses ambientais. Árvores que florescem na irregularidade do desarranjo climático – a pingar céu e chão com os róseos das paineiras, o maravilha das buganvílias, o roxo dos ipês e jacarandás, os amarelos dos guapuruvus e ipês. Plantas que, reparando bem, na maioria já viveram a metade ou mais do calendário botânico. Logo, um arvoredo que precisa de mais reparos do que recebe, como a grama que desaparece a trote.
Está lá a sobra da Arca de Noé urbana, engaiolada para surpreender a única espécie de bicho ainda surpreendida – a infância. Aves e mamíferos com uma ração de monóxido de carbono a entupir sua delicadeza. Um minizoo ornado por balões e algodão doce, num colorido levado pra casa já digitalizado. Estão lá os macacos e as pipocas, musos de Raul Seixas em Ouro de Tolo.
Estão lá, todos os fins de semana e feriados, os Adãos e as Evas e suas proles de atuais ou futuros Cains e Abéis, e também os filhos dos paraísos dos condomínios gradeados e os excluídos de todas as cercas, cercados apenas pelo desamparo social. Vão para se divertir por um dia luminoso, como se a criação do mundo ainda estivesse em andamento. Na falta de melhor piquenique, olhos e ouvidos se saciam de algazarra e correria.
Lá estão, já divididas e proveitosas, a terra e a água, uma tomada por bicicletas e tênis, a outra por pedalinhos e tartarugas e cardumes. E os mal-cuidadas recantos pra estirar e lagartear. Lá está, na fronteira do verde pisoteado com o asfalto esburacado, o brique: o passado saqueado pelo presente, a quinquilharia como arqueologia social. Os passantes, movidos a chimarrão, sorvem o domingo. Apesar dos maus-tratos, a Redenção não se rende.
Pressões ambientais sobre o bioma Pampa
Antônio Eduardo Lanna, consultor em Recursos Hídricos
O bioma Pampa, que só existe no Rio Grande do Sul, ocupando cerca de 63% de sua área, está ameaçado. A ameaça mais evidente e que seguramente desperta maiores preocupações é com a monocultura de árvores exóticas, em especial o eucalipto.
Entretanto elas não param aí. O governo federal e o estadual do Rio Grande do Sul vêm anunciando a construção de duas de cerca de uma dúzia de barragens na bacia do rio Santa Maria, que se insere nesse bioma. Essas barragens, que inundarão áreas importantes quanto à biodiversidade e a presença de espécies endêmicas, servirão para disponibilizarão de água para irrigação do arroz primordialmente. A cultura de arroz gera outro impacto, ao ocupar áreas de preservação permanente, localizadas nas várzeas fluviais. Portanto, as barragens geram um duplo impacto: pela suas presenças e por gerarem outro tipo de agressão, representada pela expansão da área de arroz irrigado.
Fato surpreendente é que o impacto ambiental da ocupação de vastas áreas com eucalipto ainda tem como contrapartida a geração de riqueza e renda, embora os custos ambientais possam ser considerados demasiados. Ao contrário, as barragens, com finalidade primordial de irrigação de arroz, não são sequer viáveis economicamente. Qualquer estudo mais rigoroso que se faça a respeito da atividade orizícola conclui que este cultivo é excelente alternativa econômica quando existe disponibilidade natural de solos e água. Mas pode ser facilmente constatado que qualquer obra hidráulica de maior porte não pode ser paga pela renda gerada pelo arroz, seja ela resultante dos benefícios primários, seja proveniente dos benefícios secundários, incluindo as chamadas externalidades econômicas como os “efeitos multiplicadores” resultantes da dinamização da economia regional. Gerasse renda o arroz, os próprios arrozeiros se disporiam a empreender essas obras, e as regiões onde se localiza a orizicultura no Rio Grande do Sul apresentariam grande desenvolvimento e não o quadro de estagnação econômica que vem de vários anos.
Por que essas barragens estão sendo propostas pelo Estado? Quem ganha e quem perde com elas? Certamente os arrozeiros beneficiados ganharão já que a água lhes será fornecida a custos subsidiados: é informado que apenas pagarão os custos de operação e manutenção das barragens que são da ordem de menos de 1% dos custos de investimentos. Esse subsídio, como todo subsídio, seria justificável apenas se esse segmento apresentasse alguma carência socioeconômica, algo que não condiz com a realidade – os arrozeiros situam-se no estrato superior de qualquer escala que avalie a situação socioeconômica da população. Olhando por outra ótica, existem segmentos sociais que apresentam carências bem maiores e que mereceriam maior prioridade de apoio governamental do que os arrozeiros da bacia do rio Santa Maria.. Não é aceitável, portanto, que o governo, seja federal ou estadual, subsidie esse segmento não prioritário.
A região e os municípios onde se encontram as barragens e as áreas irrigadas poderiam ser beneficiados. Isto decorreria dos benefícios gerados durante a construção das barragens, devido aos gastos que seriam realizados na região, movimentando sua economia. Porém deve ser considerado que devido à não especialização regional, a maioria dos gastos seria com insumos adquiridos fora da região. Nela poderiam ser obtidos mão-de-obra não especializada e algum serviço igualmente não-especializado – ou seja, a maior parte dos investimentos seria dirigido a insumos encontrados fora da região, não trazendo maiores benefícios a ela. Com um agravante: esse tipo de construção costuma atrair mão-de-obra não especializada de outras regiões, geralmente trabalhadores braçais, que se fixa no entorno da obra. Concluída a obra resta ao município um problema social derivado de acúmulo de mão-de-obra desempregada, não especializada, que requererá apoio que drenará parte dos poucos benefícios gerados durante a construção.
Os municípios captarão, porém, a produção gerada nas áreas irrigadas. Contudo, o projeto das barragens comete um grande equívoco: imagina que a água armazenada nos reservatórios resultará proporcionalmente maior área irrigada. Isto seria correto se a área correntemente irrigada tivesse seu suprimento garantido em qualquer situação hidrológica, mesmo durante as estiagens mais intensas. Isto não é correto. As mesmas pessoas que apregoam os benefícios das barragens argumentam que elas evitarão os problemas de carência hídrica que têm sistematicamente afetado os rendimentos das lavouras arrozeiras. Ora, se maiores quantidades de água serão disponibilizados o racional seria que primeiro fossem destinados ao suprimento das áreas já desenvolvidas e somente depois à ampliação das áreas irrigadas.
No entanto, estudo da Universidade Federal de Santa Maria para o próprio governo do Estado do Rio Grande do Sul concluiu que em uma das barragens, a do arroio Jaguari, não permitiria qualquer expansão da área irrigada. Ela apenas permitiria que as áreas já desenvolvidas tivessem maior garantia de suprimento durante as estiagens mais intensas. Portanto, os benefícios obtidos pelos municípios contemplados com a irrigação do arroz foram exagerados e não podem ser usados para dimensionar as vantagens sob seus pontos de vista, sem melhores avaliações. O grave é que esta expansão de área irrigada, obtida por meio de equívocos ou manipulações das análises, está sendo usada para justificativa do investimento! Isto mostra que os próprios projetos das barragens, do arroio Jaguari e do arroio Taquarembó, já aprovados quanto às viabilidades econômicas no âmbito das instâncias técnicas do governo estadual e do governo federal, devem ser reavaliados e corrigidos dos erros que os invalidam como subsídios para decisões.
O que deveria ser considerado pelos municípios pretensamente beneficiados pelos projetos é se não haveria outras alternativas de investimento que trouxessem maiores benefícios, já que os que são anunciados carecem de rigor nas suas estimativas e podem resultar, inclusive, em prejuízos a médio e longo prazos. Esses poderão ser provenientes do comprometimento de áreas de expressivo valor ambiental e turístico, e especialmente pela consideração de que tais municípios já foram beneficiados por investimentos estaduais e federais, reduzindo as suas prioridades concernentes a outras oportunidades de investimento.
Um estudo lançado no final de 2006, contratado pelo Governo do Rio Grande do Sul, o Rumos 2015 , propôs estratégias de desenvolvimento para o Estado por região funcional. Naquela que abrange a bacia do rio Santa Maria não houve previsão de implantação de barragens. No que se refere à orizicultura foram propostos quatro programas; nenhum deles envolve a construção de barragens e um programa propõe a restauração das matas ciliares, enquanto as barragens acarretarão as suas eliminações. Eles são:
1) Desenvolvimento de pesquisas e divulgação, voltado a um melhor manejo agrícola, com projetos voltados à pesquisa de novos cultivares, divulgação de informações tecnológicas, capacitação em novas técnicas e gestão da comercialização;
2) Capitalização do potencial ambiental, voltado ao melhor controle e à eficiência no uso da água nas áreas irrigadas;
3) Manutenção do potencial ambiental, que propõe a proteção e recuperação do ambiente, em especial a restauração das matas ciliares;
4) Suprimento de infra-estruturas, que se reporta a um “upgrade” em armazenamento.
Esse estudo, acatado pelo atual governo do estado, poderá melhor direcionar os esforços de desenvolvimento da região, usando os mesmos recursos disponibilizados pelos governos federal e estadual para essas barragens, com resultados certamente mais vantajosos sob os enfoques econômico, social e ambiental.
Outro equívoco grave que é apresentado nos projetos relaciona-se à consideração de benefícios derivados de outros usos da água. Eles foram inseridos no projeto original, que previa unicamente a irrigação do arroz como beneficiária, por causa da Resolução Conama 369/2006. Esta resolução “dispõe sobre casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente – APP”. Matas ciliares, que são inundadas por reservatórios, e área de várzeas, aptas à irrigação de arroz, são APPs. Casos excepcionais para suas supressões não envolvem a irrigação do arroz, mas a construção de “obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos serviços públicos de transporte, saneamento e energia” entre outras possibilidades. Devido a isto foram incorporados outros beneficiários aos projetos entre eles o abastecimento de núcleos urbanos, recreação e irrigação de outras culturas que não o arroz, e até o controle de inundações. Isto serviu tanto para superar a restrição ambiental comentada, como para inflar os benefícios do projeto, já que como é sabido e foi acima afirmado, o arroz não gera benefícios para justificar obras deste porte.
Muitos desses benefícios são fictícios ou exagerados, como foram os benefícios atribuídos à irrigação do arroz. Para comentar apenas o de maior relevância social e econômica, que é o abastecimento de núcleos urbanos, eventuais problemas de atendimento a essas demandas são causados pelo excesso de uso de água pelo arroz.. Bastaria, portanto, a redução da área irrigada nas estações de estiagem mais intensas para permitir o atendimento dessas demandas, sem necessidade de construção de barragens. Sairia certamente mais barato e seria ambientalmente mais vantajoso compensar aos arrozeiros nesses períodos pela redução de produção do que construir uma barragem. O mesmo se pode dizer para alguns usos para recreação.
Não foi considerada nas análises dos projetos uma prática comum e necessária chamada de análise incremental. Por ela, cada uso de água deve ser retirado do projeto global e reavaliada a nova dimensão das estruturas que permitiria manter o suprimento aos demais usos – como esta dimensão é menor, os custos serão igualmente menores. O uso retirado somente é viável economicamente se os custos incrementais gerados por sua reinserção no projeto, ou seja, pelo aumento das dimensões das estruturas até à situação original, forem superados pelos benefícios que gera. Certamente essa viabilidade não ocorreria com o arroz irrigado que, por ser grande consumidor de água, corresponde à maior parte das dimensões das estruturas e, portanto, dos investimentos. Os demais usos poderiam eventualmente ser considerados viáveis economicamente, pois consomem menores quantidades de água e exigem menores dimensões do projeto. Contudo, essas menores dimensões corresponderiam certamente a projetos bem menores que aqueles atualmente considerados e que certamente teriam menores restrições ambientais.
Essa série de equívocos e incorreções nos projetos das barragens da bacia do rio Santa Maria culmina com uma proposta que mostra claramente a existência de decisões que fogem ao interesse público e colidem com as normas legais.
Na barragem do arroio Jaguari há necessidade de construção de um canal revestido de cerca de 40 quilômetros para aduzir água às áreas destinadas à irrigação do arroz. A necessidade de estrutura deste porte, por si só, mostra que certamente não houve uma análise econômica criteriosa para seleção desta barragem. Canais deste porte são caros e normalmente inviabilizam um investimento dessa natureza. Como o canal serve para suprir alguns poucos orizicultores o correto seria que eles pagassem pelo menos o investimento nesse canal, mesmo sendo isentados de pagar os investimentos na barragem. Não é isto que o projeto propõe, pois os custos desse canal serão também assumidos pelos governos federal e estadual. Ou seja, ambos os governos pretendem doar recursos públicos de valor considerável, que poderiam ser aplicados em investimentos que gerariam benefícios mais expressivos, a um grupo de pessoas que já se encontra em uma posição privilegiada na escala socioeconômica da região, do estado e do país.
Resumindo, o bioma Pampa acha-se ameaçado por vários empreendimentos promovidos pelos governos federal e estadual, com destaque à monocultura de árvores exóticas e à construção de barragens para irrigação de arroz. Ambos os empreendimentos geram expressivos impactos ambientais que alterarão fortemente um bioma que deveria ser protegido e preservado. Ao contrário da monocultura de árvores exóticas, porém, a implantação das barragens para irrigação de arroz sequer apresenta significância nos benefícios econômicos que serão gerados.
Portanto, a monocultura de árvores exóticas estabelece um conflito entre os objetivos de desenvolvimento econômico, que são positivos, e de impacto ambiental, que são negativos e expressivos, e de eqüidade social, que são discutíveis. Já a construção de barragens para irrigação de arroz não se justifica seja economicamente, seja socialmente e muito menos ambientalmente.
Só fica uma dúvida: a proposta de implantação dessas barragens decorre de um excesso de ignorância ou da falta de espírito republicano?