A chamada “Revolução Farroupilha” tornou-se um caso exemplar de apropriação da história por interesses do presente, com graves prejuízos para o entendimento dos fatos históricos.
Foram quase dez anos de guerra – do dia 20 de setembro de 1835, com a tomada de Porto Alegre, até fevereiro de 1845, quando a paz foi assinada em Ponche Verde, no acampamento das tropas rebeldes, reduzidas a algumas centenas de homens, mal armados, já sem roupas para aguentar o inverno que se avizinhava.
Houve feitos heroicos e eventos memoráveis, sem dúvida.
No conjunto, foi uma aventura política mal sucedida. Começou como uma rebelião, desandou numa sedição, proclamando uma república, que nunca se instituiu, e terminou de forma melancólica, com acusações, brigas entre os líderes, e até assassinatos.
Em todo caso, foi a primeira experiência republicana no Brasil e, meio século depois, quando a luta pela República tornou-se um movimento nacional, foi inevitável o resgate dos farroupilhas, “heróis que se levantaram contra a opressão do regime imperial”.
Construiu-se, então, a lenda do “decênio heroico” e uma corrente de historiadores se dedicou a desentranhar as ações e as ideias “dos homens de 1835”.
Essa apropriação da história farroupilha para fins políticos e ideológicos, com graves prejuízos para a verdade histórica, se estendeu por todo o século XX, embora várias tentativas de revisão tenham sido feitas.
Sérgio da Costa Franco, que muito pesquisou e escreveu sobre os farrapos, disse numa entrevista*: “Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense por mais revisões que se faça”.
Neste início de século 21, uma outra forma de apropriação se superpôs, no bojo de um modelo econômico que busca oportunidade de lucros no real e no imaginário. O apelo popular do “decênio heroico” despertou interesses comerciais e mercadológicos e o marketing identificou no gauchismo um “nicho de mercado”.
A apropriação da história para fins políticos já foi bem dissecada por Yeda Guttfreind e outros historiadores. A leitura dos principais autores desse período levou o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso a concluir que “o gaúcho tinha uma autoimagem deformada”.
Sobre essa atual apropriação da história pelo marketing, pouco ou nada se estudou, ainda. Mereceria porque, sem dúvida, é exemplar, embora não seja original.
De um lado tem-se o MTG, movimento tradicionalista com seus dois mil centros de tradições gaúchas no Estado, no Brasil e no exterior. O circuito de bailes e eventos se desenvolveu em torno dos CTGs, criando um mercado para músicos, produtores e outros profissionais, sustentado por um público urbano, nostálgico de suas raízes rurais, às vezes imaginárias.
O movimento tradicionalista nasceu em 1948, numa reação, de um lado, ao sufocamento das identidades regionais, promovido pela ditadura do Estado Novo e, de outro, à invasão cultural americana.
Paixão Cortes e Barbosa Lessa foram às fontes populares resgatar os cantos, as danças, a indumentária e as manifestações da cultura regional nas diversas comunidades do Rio Grande do Sul. Eles descobriram um rico e diversificado acervo, que por razões a serem buscadas, acabou reduzido ao “gaitaço galponeiro”, o “gritedo”, de que reclamava Luiz Carlos Borges, hoje elevado à expressão principal da dita “cultura gaúcha”.
Outro vetor desse processo é a televisão, especialmente o programa “Galpão Gaúcho”, da RBS TV, lançado em 1982, não por acaso um ano depois do primeiro Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre, a cidade que na história real sempre rechaçou os farrapos.
Mesmo oscilando ao sabor da grade de programação da Rede Globo, o Galpão Crioulo, pelo grande alcance da RBS através de suas retransmissoras no interior, deu tração ao movimento tradicionalista, dele se alimentou e se alimenta.
Com o novo viés da RBS, de potencializar negócios, esse tradicionalismo, que é “uma doença infantil do gauchismo”, se apresentou como um nicho perfeito: sela a aliança com o “público gaúcho” e mobiliza os grandes anunciantes nacionais que querem falar a esse “público gaúcho”.
O problema é que essa apropriação da história pelo marketing não se faz sem danos. O marketing tende a simplificar para produzir mensagens sucintas e convincentes, mesmo a custa dos fatos.
É o que está acontecendo, em dose cavalar (sem trocadilho).
Basta dizer que fizeram do 20 de setembro o “Dia do Gaúcho”, em reverência aos heróis de 1835, homens de uma época em que chamar alguém de “gaúcho” era uma ofensa. (Elmar Bones)
*República Riograndense”, Revista JÁ, 2016