Dois séculos atrás, atraídos pelos ventos da independência política do Brasil, chegaram ao Rio de Janeiro alguns europeus engajados em aventuras artísticas, pesquisas científicas e lutas políticas.
Eram Debret, Martius, Saint-Hilaire, Spix e outros, entre os quais até italianos fugitivos de monarcas raivosos. O mais famoso desses tipos extraviados nos trópicos foi Giuseppe Garibaldi, que guerreou no Rio Grande do Sul antes de se consagrar na terra natal, onde foi festejado como “o herói de dois mundos”.
Outro, muito amigo de Garibaldi, foi Luigi Rossetti, cuja trajetória como editor de O Povo, o bisemanário da
República Rio-Grandense do Sul, só recentemente veio à tona, graças sobretudo à pertinácia do jornalista-historiógrafo Elmar Bones, autor do livro “O Editor Sem Rosto” (JÁ Editores, 2024, 3ª ed), que está sendo
relançado neste sábado, 28, em Viamão, e deve ser vendido na Feira do Livro de Porto Alegre de 2024.
O título do livro se refere ao fato de que não há uma foto ou desenho de Rossetti.
Dele se perdeu até o túmulo. Morto em combate em Viamão em novembro de 1840, esse voluntário da revolução de 1835 toureou o conservadorismo dos chefes farroupilhas e saiu perdendo.
Entretanto, além de artigos no jornal oficial, deixou uma série de cartas reveladoras de seus ideais republicanos, motivo de suas diatribes com seu chefe direto, o charqueador Domingos José de Almeida, ministro que
cuidava das finanças da República Rio-Grandense.
Foi um editor sem rosto sim, mas com caráter, na luta inglória em defesa de princípios desprezados pelos detentores do poder.
Como tantos jornalistas ao longo da História, Rossetti engoliu sapos no esforço para colocar seu pensamento nos textos que escrevia no jornal que não lhe pertencia – pertencia, supostamente ao povo, que no frigir dos povos não vale um ovo.
Por aí se compreende como e porque Bones, editor do jornal Já há três décadas, se empenha na história do personagem esquecido nos mais de 500 livros escritos sobre a Grande Revolução do Sul.
É surpreendente como Rossetti foi encarregado de montar não só o jornal mas tocar a gráfica comprada em Montevideo.
Sua contratação mostra que os farrapos não tinham quadros para cargos importantes como o diretor do
seu jornal. Confiaram num aventureiro dedicado ao combate político.
Sem dúvida, ele tinha carisma e verve, tanto que trocava ideias com o coronel Corte Real e outros chefes. Depois de um tempo, no entanto, o escriba incômodo foi encarado como estrangeiro sem voz numa terra controlada por caudilhos prontos a negacear a promessa de
libertar os escravos.
Pouco se conhece da história pessoal de Rossetti. Nasceu em 1800 em Genova, onde frequentou a faculdade de Direito. Para não ser preso por fazer parte dos Carbonários antimonarquistas, fugiu da Itália, perambulou pela Europa e chegou ao Rio em 1827.
Não se sabe quais suas atividades antes de se associar a Garibaldi e outros italianos, em 1836, para explorar a navegação na costa fluminense.
Por boicotes e calotes, não lograram sucesso nessa empreitada mas tiveram a sorte de conhecer o
presidente Bento Gonçalves, a quem visitaram na cadeia da Fortaleza da Laje, no Rio – o general fora feito prisioneiro na batalha da ilha do Fanfa, no rio Jacuí, entre Porto Alegre e Triunfo, no primeiro ano da revolta.
Por incrível que possa parecer, em sua conversa no cárcere, os desventurados marinheiros italianos conseguiram do chefe farrapo uma carta de corso que os autorizava a pilhar embarcações no Atlântico em
benefício da República Rio-Grandense.
Deram-se bem nessa guerrilha naval até chegar ao Uruguai e à Argentina, onde Garibaldi foi encarcerado e
maltratado até conseguir ajuda da maçonaria para recuperar a liberdade e, daí em diante, engajar-se na revolução gaúcha (sua maior proeza foi
convencer Bento Gonçalves a organizar uma flotilha para embaraçar a marinha imperial na Lagoa dos Patos e chegar até o litoral catarinense, na louca manobra da tomada de Laguna em 1839).
Em Montevideo, onde tinha muitos correligionários italianos, especialmente o amigo Giovanni Cuneo, Rossetti trocou a vida de corsário pela de assessor do ministro Almeida.
Conseguiu o cargo por sua habilidade na articulação de negócios entre o governo farroupilha e os
amigos maçons de Montevideo. Carretas de couro e tropas de gado em pé eram os principais produtos exportados para o Uruguai pela república gaúcha, que recebia em troca armas, munições, uniformes para seus
soldados e sabe-se lá mais o quê.
Rossetti era portanto um agente duplo: trabalhava junto ao ministro farrapo como “procurador” dos amigos
contrabandistas sediados em Montevideo.
Nas horas vagas, cuidava do jornal farroupilha, que acabou se tornando seu xodó, depois de ficar
várias semanas na capital uruguaia para conseguir autorização oficial para tirar do país os equipamentos gráficos montados em Piratini, onde o jornal O Povo começou a ser feito.
Embora tivesse um perfil de jornalista combativo, panfletário até, a correspondência de Rossetti (sobretudo com o amigo Cuneo) não menciona nenhum jornalista ou intelectual com quem poderia ter tido contato no Brasil.
Até agora não se descobriu se teve algum interlocutor carioca com quem possa ter recebido noções sobre a língua portuguesa, que manejava satisfatoriamente. O que se sabe é que participou de um jornal dirigido à colônia italiana da capital, onde havia vários comerciantes
de origem peninsular.
Na época em que viveu no Rio (1827-36), Rossetti
foi qualificado como “vagabundo” num relatório diplomático preparado por um emissário do Vaticano. A expressão era naturalmente preconceituosa por ser Rossetti um agitador político que não respeitava o clero, embora fosse temente a Deus.
Também não se sabe se fez contatos com jornalistas ou políticos na capital brasileira. Na imprensa carioca era muito ativo e influente nos anos 30 do século XIX o político Evaristo da Veiga (1799-1837), que publicava a Aurora Fluminense, jornal contra a escravidão dos negros.
Terá Rossetti trabalhado nesse veículo politizado? Em São Paulo se destacou Libero Badaró, nascido em 1798 em Genova e chegado a São Paulo em 1828.
Médico e liberal, Badaró editava O Observador Constitucional, no qual costumava atacar o imperador Pedro I, autor da primeira Constituição do Brasil, de 1823. Foi morto em 1830 numa tocaia a mando de um desafeto do seu periódico.
Rossetti era um republicano sincero que provavelmente se criou lendo e ouvindo sobre as teses iluministas que levaram à Revolução Francesa (1789) depois de ajudar a levantar a bandeira da independência dos EUA em 1776. Veio depois de filósofos franceses como Rousseau e Voltaire, e precedeu o alemão Marx, que inspirou o russo Lenin – todos europeus revolucionários.
Foi contemporâneo dos americanos Lincoln e Simon
Bolívar, mas seu guru era Mazzini, o revolucionário italiano. Também não há notícia de que tenha se sensibilizado com o trabalho do maçom Hipólito José da Costa, que publicou em Londres de 1808 a 1822 o jornal
Correio Brasiliense.
O que mais impressiona na leitura de O Editor Sem Rosto é o fato de que, há quase 200 anos, trabalhou anonimamente em Piratini um escriba que incorporou as vissicitudes dos fazedores de jornal diante dos interesses dos mandantes da hora, no caso, o ministro Domingos de
Almeida, Bento Gonçalves e outros chefes farroupilhas. Nada de novo no front farroupilha: aparentemente sem noção de hierarquia, o editor genovês se revoltou quando o todo-poderoso Almeida deu razão a um cadete
que cortara um texto seu.
Um cadete com a metade de sua idade! Rossetti pediu para sair, mas teve a petulância de indicar o amigo italiano Cuneo para o cargo que acaba de largar.
O indicado chegou a viajar de Montevideo para a província rio-grandense, mas nem chegou a pegar na
pena porque o jornal estava parado e a tipografia, desmontada por contingências da guerra.
A partir de 1840, com o governo farroupilha
obrigado a deslocar-se em carretas pelo pampa, sob perseguição do exército imperial, o jornal não circulou mais.
Depois de deixar o jornal, Rossetti não foi pedir emprego em outra gráfica ou redação; partiu Camaquã, onde passou a trabalhar com Garibaldi no estaleiro em que se construíam os lanchões da marinha farroupilha.
E continuou escrevendo para o ministro Almeida, de quem se declarava amigo. Cheio de opiniões, era um tipo inquieto e se reconhecia “fogoso”, o que remete ao exaltado Tiradentes enforcado em 1792 em Ouro
Preto e outros revolucionários brasileiros como Domingos Martins, fuzilado aos 37 anos em Pernambuco por se envolver em conspirações contra o jugo português (1816).
Enfim, Rossetti foi um lutador que pouco deixou para ser lembrado, ao contrário do amigo Garibaldi que, além da
lagunense Anita, levou do Sul como paga por seus serviços uma boiada de 900 cabeças vendida no Uruguai.
Enquanto há centenas de livros e vários filmes sobre Garibaldi e sua lenda, Rossetti inspirou três teses acadêmicas sobre como a revolução farroupilha foi vista por outros países.
Lembra o editor Bones: “Os escritos de Rossetti — cartas, artigo, proclamações — são a fonte principal para se estudar as relações dos farrapos com o exterior e
também para as divergências entre os chefes farroupilhas”.
Recorde-se que, após dez anos de luta, os chefes farrapos estavam divididos e não obtiveram o reconhecimento de nenhum país — nem do amigo Uruguai.
Com exceção de uma irmã deixada na Itália, não há referências familiares na história de Rossetti. Cabe pesquisar em busca de novidades, mas ele parece ter negligenciado a vida afetiva para se dedicar integralmente à causa política e aos ideais democráticos.
Foi umautêntico republicano entre caudilhos ciosos do mando.