O jornalista João Borges de Souza morreu no dia de junho de 2022, aos 87 anos. Não se escreverá uma história do jornalismo no Rio Grande do Sul sem passar pela biografia dele.
Jornalista de alto quilate numa geração de grandes talentos, João Souza ainda se sobressaia por uma qualidade rara entre os jornalistas, sempre suscetíveis de personalismos: a capacidade de aglutinar e alcançar consensos.
Um dos primeiros negros numa redação em Porto Alegre, integrou a lendária equipe da Última Hora, da rede de Samuel Wainer, que mudou a maneira de fazer jornalismo no Brasil dos anos 1960.
Foi o primeiro a acompanhar o movimento sindical como repórter de A Hora e, depois, da Última Hora, onde cobriu greves históricas, como a dos ferroviários em Santa Maria, em 1958 – época em que os, então, chamados “movimentos paredistas” não mereciam mais que tímidas notas nos jornais.
Quando a polícia empastelou a Última Hora, no golpe de 1964, e muitos tiveram que fugir, João se refugiou na Secretaria da Saúde, onde o amigo Tarso de Castro lhe havia arranjado um emprego na assessoria de imprensa.
Quando o jornal voltou a circular com outro nome (Zero Hora) e outra orientação política (a favor dos militares), aquele grupo da redação da UH, sempre sob a liderança de João Aveline, se reconstituiu na redação da ZH e ele voltou. Seria repórter e depois editor de política.
Foi nessa condição que o conheci na Folha da Manhã, em 1972. Tinha trinta e poucos anos, mas já era uma referência para jovens e veteranos. Não se tomava uma decisão importante na redação sem ouvir o “nego João”. Nêgo, no caso era uma espécie de título nobiliárquico, algo como um xamã ou príncipe, que seu porte, sua elegância natural e suas palavras precisas referendavam.
Apesar da filiação ao Partido Comunista, não fazia proselitismo e colocava acima de tudo a fidelidade aos fatos.
Quando os editores da Folha da Manhã , num embalo de manchetes bem-sucedidas, acreditaram que haveria uma revolução no Chile, depois do assassinato de Allende, ele foi o único a sugerir um ponto de interrogação no título afirmativo, com o que poupou a redação de um vexame.
Nessa época, elegeu-se presidente do Sindicato dos Jornalistas, rompendo uma longa tradição de peleguismo na representação dos profissionais de imprensa. Levantou a bandeira da dedicação exclusiva num tempo em que grande parte dos jornalistas eram ao mesmo tempo funcionários públicos ou assessores.
Vinculou o movimento dos jornalistas gaúchos à questão nacional das liberdades democráticas, em sintonia com o que acontecia em São Paulo sob a liderança de Audálio Dantas e resultou em importantes conquistas na constituição de 1988.
Depois de tudo isso, perdi-o de vista até uma tarde em que nos reencontramos na Lancheria do Parque, ele já aposentado, havia completado 70 anos. Estava entusiasmado, trabalhando numa biografia do dr. Breno, o lendário Breno Caldas, do Correio do Povo, com a colega Núbia Silveira. O projeto não foi adiante, mas ele seguia animado com a ideia de escrever biografias como se fossem reportagens. Fomos juntos levar ao presidente da Assembleia, Vieira da Cunha, o projeto para um perfil do ex-presidente João Goulart, uma lacuna inexplicávei na série de Perfis Parlamentares do legislativo gaúcho. Aceitamos o desafio de produzir em três meses o perfil político de Goulart. Teria que ser um trabalho em equipe. Ele se incumbiu de compilar e analisar discursos de Jango quando deputado. Kenny Braga fez a pesquisa bibliográfica e o repórter Cleber Dioni colheu testemunhos de familiares, amigos e auxiliares próximos do ex-presidente.
Resultado foi tal que fomos contratados para fazer o Perfil Parlamentar de Leonel Brizola, que havia morrido naquele ano, de 2004.
Com ânimo juvenil ele e o repórter Cleber Dioni foram a campo, atrás dos testemunhos de família e amigos na região de Carazinho onde nasceu e de onde saiu adolescente o Brizola. Depois de entrevistas na cidade, restava ir ao cemitério a 40 quilômetros sob um vento gelado, no fim da tarde. “Não vale a pena”, sugeriu Dioni, já exausto. Ele lembrou da velha lição da Última Hora: “Sempre vale a pena ir no local”.
Foram e encontraram um amigo de infância, colega da escola primária de Leonel Brizola, rezando e limpando o túmulo.
Com o mesmo entusiasmo, no ano seguinte se meteu pelo interior do Uruguai em buscas dos vestígios de Bento Gonçalves, para uma reportagem biográfica do herói farroupilha, que talvez tenha sido seu último trabalho e permanece inédita.