Por Márcia Turcato*
Quatro anos de governo Bolsonaro. 1.460 dias de desmonte do espaço democrático foram resumidos no relatório “Radiografia do Desmonte do Estado e das Políticas Públicas”, de 73 páginas, construído pela equipe
do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva em 34 dias de intenso trabalho e que envolveu mais de mil pessoas organizadas em cerca de 30 grupos temáticos. O documento foi tornado público na quinta-feira, 22 de dezembro, em evento realizado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em Brasília.
O relatório mostra que Lula recebe no dia primeiro de janeiro de 2023 uma herança socialmente perversa, pavimentada por meio de uma política antidemocrática, que promoveu a desconstrução institucional, o
desmonte do Estado e a desorganização das políticas públicas.
Ao apontar o desmonte do Estado, onde a diretriz de Bolsonaro foi oferecer menos direitos para a maioria e mais direitos para a minoria, o governo Lula identifica onde sua equipe terá de atuar com celeridade
para recuperar o país, resgatar a cidadania e recuperar a autoestima da Nação.
O desmonte promovido por Bolsonaro e sua equipe, onde o economista Paulo Guedes ocupou lugar de destaque do começo ao fim do pesadelo, atingiu o setor da saúde com um corte de R$ 10,47 bilhões.
Com isso, vários programas foram descontinuados ou extintos, como o Mais Médicos, não há recurso garantido para Aids/HIV, não há estoque de vacinas contra covid-19 e não há campanhas públicas de vacinação ou prevenção de agravos. A taxa de crianças vacinadas, em média, caiu
de 70% para menos de 50%.
As campanhas de utilidade pública eram construídas pelo Ministério da Saúde junto a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom/PR), que teve seu status extinto e passou a ser um apêndice do
Ministério das Comunicações. Esse ministério não tem relação alguma com estratégias de comunicação, é um órgão técnico cujas atribuições estão relacionadas, basicamente, à regulação dos serviços de radiodifusão e conectividade.
Num governo que se manteve à força da
desinformação -as chamadas fake news- não havia interesse algum em promover o acesso à informação. Aliás, Bolsonaro criou o sigilo de um século para várias de suas ações. Na área da Educação, em plena pandemia, com as crianças sem acesso à sala de aula e com muitos pais desempregados ou sem renda,
Bolsonaro congelou o valor da merenda escolar em 0,36 centavos por criança, apesar dos alunos terem direito à alimentação. No Esporte, que também contempla atividades voltadas para crianças, o orçamento caiu de R$ 3,4 bilhões para R$ 890 milhões.
O governo que finalmente chega ao fim, ampliou o discurso de criminalização das artes e da cultura e fez de tudo para amordaçar os artistas. A partir de 2016, com o golpe de Michel Temer, a Cultura perdeu 85% do seu orçamento e deixou de ser ministério.
A Cultura, junto com a Educação, sempre foi espaço de resistência e é assim em todo o mundo. Estrategicamente, Bolsonaro e seus cúmplices
começaram por aí o desmonte da articulação popular e o esfacelamento da organização social. As manifestações populares, ligadas às tradições e às comunidades tradicionais, não receberam nenhum apoio financeiro.
A área que atendia as demandas das mulheres e direitos humanos foi transformada em missão religiosa. Sob o comando de Damares Alves, agora eleita senadora, o serviço Disque 100, que atendia denúncias e orientava pessoas em situação de vulnerabilidade, foi utilizado para
fazer busca ativa em telefonemas de assédio para estabelecimentos de ensino que exigiam atestado de vacinação contra covid-19, aponta o relatório. Ao mesmo tempo, o Ministério da Justiça, por meio de seu titular, para nosso espanto, promovia ataques às instituições e à
democracia.
Nas Relações Exteriores, o Brasil de Bolsonaro se aproximou de ditaduras, criticou democracias, atacou organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), e apoiou a invasão da embaixada da Venezuela em Brasília. E, por fim, cortou relações com o
governo de Nicolas Maduro e estabeleceu relação com o golpista Juan Gaido, autoproclamado presidente da Venezuela.
O fim da era Bolsonaro deixa o Brasil com uma inflação de 26%, um aumento de 60% no desmatamento da Amazônia e do Cerrado, sem o programa Minha Casa Minha Vida, sem verba para programas de
mobilidade urbana, sem recurso para a Defesa Civil para o
enfrentamento às catástrofes, devolve ao mapa da fome 33,1 milhões de brasileiros e 125,2 milhões (mais da metade da população do país) em situação de insegurança alimentar.
Ao assumir no dia primeiro, Lula e sua equipe, formada por integrantes que participaram da ampla frente social e de partidos políticos que articulou sua eleição vitoriosa, terão de desmontar todas as armadilhas enterradas por Bolsonaro e reconstruir as políticas públicas e de proteção social que fazem do Brasil uma democracia que respeita a diversidade e promove a equidade ao mesmo tempo em que assegura o crescimento econômico e social.
*Jornalista, autora do livro “Reportagem: da ditadura à pandemia”