MIRIAM GUSMÃO / Porto Alegre mutilada

Os cartazes das imobiliárias junto às portas fechadas vão indicando mais e mais pontos comerciais para alugar, em diferentes bairros de Porto Alegre. Na maioria desses locais, funcionavam pequenos negócios e em muitas dessas portas, pouco antes dos anúncios de “aluga-se”, ainda havia recados esperançosos dos empreendedores para seus clientes. “Em breve nos veremos de novo; cuidem-se”, eram as despedidas provisórias e cuidadosas. Ninguém poderia imaginar o tamanho da incompetência e da irresponsabilidade dos governantes brasileiros – na União, nos estados e municípios – que não souberam implementar uma política integrada de Saúde Pública, conjugada com medidas econômicas eficientes para enfrentar a pandemia do coronavírus. A má gestão e as mazelas dos políticos de carreira, incluindo as posturas omissas de boa parte das oposições, sedentas apenas de futuras vitórias eleitorais, resultaram num cenário desolador que se prolongou demais e parece não ter fim. Já são cinco meses de desgastante isolamento social, para os que levam a sério essa essencial providência. No entanto, como há os que não levam a sério e como os governos atendem a todo momento pressões de setores empresariais mais poderosos, abrindo e fechando de forma descontrolada as atividades econômicas, o isolamento revela-se sempre insuficiente para conter a expansão do vírus. E um país que pouco se importa com a absurda perda de mais de cem mil cidadãos não se importa nem um pouco com a perda de pequenos negócios. Podemos observar em Porto Alegre uma situação de muitas cidades brasileiras. As cidades vão sendo desfiguradas, mutiladas, pois não são apenas pequenos negócios que se perdem, mas espaços de cultura, convívios, projetos, sabores cotidianos, fisionomia de bairros.

Entre o Centro Histórico e a Cidade Baixa encontramos exemplos de portas que se fecharam, encerrando resquícios de vizinhança e raras convivências, assim como de trocas de conhecimentos, dentro dos espaços urbanos desumanizados. O Tempero do Sul, na rua Sarmento Leite 929, era um restaurante simples, com ares familiares e preços convidativos. Era um “ambiente descomplicado”, como diziam os proprietários. Oferecia comida caseira e buffet de café. De início, havia buffet de café pela manhã e à noite, mas, ainda antes da pandemia, as dificuldades financeiras da clientela reduziram a demanda, e o restaurante manteve o almoço caseiro e o café da noite, que começava à tardinha. Esse café da noite era o típico “café e janta”, pois além da variedade de pães, cucas, bolos, frutas, frios, omeletes, iogurtes, sucos e café à vontade, incluía a possibilidade de uma sopa ou de uma carne. Idosos da vizinhança conheceram-se ali, tomando sopa ao entardecer, e ali se encontravam e conversavam todos os dias. Tinha virado hábito. Também encontravam-se ali motoristas de aplicativos e jovens estudantes moradores do bairro. Havia conversas entre as mesas e entre gerações. Os proprietários e funcionários conheciam os gostos dos clientes e havia uma atenção personalizada: Fulano, hoje tem aquele teu bolo preferido; dona Fulana, hoje tem a sua sopa de legumes.

Quase ao lado do Tempero do Sul, no número 921, havia uma pequena e graciosa loja de bolos. Chamava-se Amor com Fermento. Era um espaço minúsculo, mas muito elegante, com bom gosto na decoração e o irresistível cheiro de bolo caseiro recém-feito. Também tinha virado hábito para muitos moradores do bairro e arredores abastecer suas festas, suas visitas e suas famílias com itens das delícias vendidas ali, numa variedade sempre renovada. Havia inclusive uma linha da chamada “alimentação saudável” e opções de bolos para diferentes dietas restritivas, além dos bolos tradicionais e de criativas invenções. No final do mês de março, as proprietárias anunciaram, em rede social, que entrariam em quarentena: “Vamos todos fazer a nossa parte! Fique em casa! Estaremos com nossa loja fechada! #quarentena, #amor com fermento”. Tudo parecia provisório e era possível aguardar que a loja continuasse com encomendas e entregas a domicílio. No entanto, quem tem possibilidade de partir em busca de outras oportunidades, de escapar de ser refém dos dias adversos, acaba partindo. Foi assim que, no dia nove de maio, as proprietárias anunciaram a mudança para outro estado e a venda  do ponto. Tudo foi posto à venda: equipamentos, móveis e utensílios. E não foi o fim de uma das muitas lojas de bolos da cidade; foi o fim de um espaço de amor com fermento, que se engajava em campanhas como a da conscientização do autismo, e que compartilhava com os clientes alguns conceitos, algumas frases de bom humor e alguns aforismos. Até parecia verdade que “a felicidade mora em um pedaço de bolo”, ou que “o bolo feito com amor sacia a vida e conforta a alma”. Em tempos obscuros, uma das frases que essa lojinha fechada havia repassado fala de humanidade e celebração com todos: “Eu como bolo porque é aniversário de alguém em algum lugar do mundo”.

No Caminho dos Antiquários, que é a quadra da rua Marechal Floriano entre a Fernando Machado e a Demétrio Ribeiro, a Cachaçaria Brix 21 fechou no final de junho. Era um sofisticado espaço de cultura, com degustação e venda de cachaças de excelente qualidade, local de exposição de arte e, mais recentemente, boteco que procurava combinar com “o melhor destilado do mundo” alguns petiscos bem elaborados. Segundo o proprietário, Rafael Martins Lutgmeyer, a quarentena prolongada “desligou os aparelhos” da loja que já vinha lutando para sobreviver. Havia um inimigo anterior: o persistente preconceito dos brasileiros, e em especial dos gaúchos, para com a bebida que deveria ser um respeitável produto nacional. Durante os seis anos em que a cachaçaria esteve aberta, o proprietário repassava ensinamentos sobre o produto, conversando com os clientes durante as degustações. A Brix 21, numa verdadeira ação cultural, propagou o significado positivo da palavra “cachaceiro”, associado a quem produz, aprecia, degusta, estuda ou pesquisa assuntos relacionados com a cachaça. No senso comum, cachaceiro é uma palavra pejorativa, para desqualificar especialmente os pobres que bebem esse destilado, num evidente preconceito de classe. Rafael, que fez curso de Mestre Alambiqueiro e que, antes de abrir a cachaçaria, percorreu 39 municípios de sete estados brasileiros, pesquisando sobre a produção da cachaça e escolhendo os rótulos que iria vender, lamenta a pouca valorização de uma bebida peculiar do país. Lembra que a cachaça é fruto da diversidade e da qualidade da flora brasileira, desde os canaviais até as diversas madeiras nobres em que pode ser envelhecida. Quanto às dificuldades criadas aos pequenos e médios empreendedores pela má gestão da pandemia no Brasil, menciona os entraves para acesso a créditos bancários e o próprio empobrecimento da população, que reduz as demandas.

Outros incontáveis empreendedores também se prepararam para vender produtos e personalizar espaços de negócios. Fizeram cursos técnicos e gastaram na decoração de locais que agora fecham as portas. Foram cursos para servir coquetéis, para abrir pequenos cafés, docerias, pizzarias, bistrôs e lojinhas. Alguns desses estabelecimentos vemos fechados nas ruas José do Patrocínio, Duque de Caxias e travessas próximas. Foram alegrias fugazes de inaugurações festivas e malogradas apostas no futuro. Fosse a quarentena mais curta, talvez muitos tivessem aguentado, mas o isolamento infinito, as dívidas acumuladas e a falta de perspectivas não deixaram possibilidades. É uma realidade nacional, num país desgovernado, que não cuida de seus cidadãos. Uma pesquisa realizada, ainda em abril e maio, pelo Sebrae, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, detectou que 86% dos empreendedores que buscaram empréstimos não conseguiram. Dados do IBGE, divulgados em julho, atestam que 716, 4 mil empresas tinham fechado as portas em definitivo durante a pandemia, até a primeira quinzena de junho, sendo a maioria delas de pequeno porte. O empreendedorismo é o canto da sereia, sem oferecer condições para os que mais precisam. E empregos não são gerados. O IBGE constatou que o desemprego atingiu 12,8 milhões de brasileiros, sem contar os mais de cinco milhões de desalentados, aqueles que já desistiram de procurar trabalho. Os governantes não sabem pensar medidas econômicas e administrativas sem retomar a ladainha da suposta necessidade de flexibilizar cada vez mais os direitos trabalhistas, penalizar servidores públicos, cortar salários. A Constituição prevê, mas ninguém mexe nas grandes fortunas, assim como é postergada a devida taxação das heranças. É um país cruel, que perpetua imensas desigualdades e desampara a maior parte da população. Um país inconcebivelmente cruel, quase impassível diante de tantas mortes na pandemia e diante das chances negadas a quem precisa viver do seu trabalho. Inexoravelmente, pessoas se vão e portas são fechadas.

Miriam Gusmão é professora aposentada e jornalista.

4 comentários em “MIRIAM GUSMÃO / Porto Alegre mutilada”

  1. Muito necessária a abordagem.
    No nosso caso, Comitê Latinoamericano, alugamos uma casa há 10 anos. Na Vieira de Castto.
    Um espaço voltado para a cultura latino americana e tb um bar. Tudo junto.
    Ano passado fizemos uma reforma, o assoalho estava caindo. Estamos no 2 piso de um sobrado de 1924. Gastamos 26 mil na obra. Fizemos uma campanha de arrecadação e uma festa. Conseguimos.
    Agora, exatamente 1 ano depois da obra q o proprietário não quiz fazer. Não conseguimos negociar nada com o mesmo. Estamos fechados desde o iniciio da pandemia.
    Como não falir assim?
    Ademais disso, aluguei um ap no prédio ao lado, 5 meses antes da pan. Começada a pandemia, tentei devolver o imóvel (impecável) mas não houve jeito. O proprietario q é o mesmo, e tem mais 250 imóveis, não quiz abrir mão nem das multas.
    Resumo da história, fiz uma ocupação solitária em outro imóvel, tb ao lado do Comitê, do mesmo proprietário, na tentativa de obrigalo a negociar.
    Hj fazem 18 dias q estou nessa ocupação.
    Fico imaginando qts pessoas estão sendo despejadas. Qts mães solo estão em risco com seus filhos. Qt gt sofrendo silenciosamente?
    Roberto Oliveira

  2. Lindo texto!!!! Com sensibilidade, nos lembra que por trás de cada número, há uma história, há humanidades…. Não são apenas portas fechadas, não são apenas mortes “que acontecem”… São vidas e histórias interrompidas, são famílias mutiladas, são ruas, bairros, cidades murchando devido às péssimas escolhas feitas pelos governantes, pelos eleitores…

  3. Excelente reflexão!! Esse é o lado humano que os políticos não são capazes de levar em conta, só o que importa é o crescimento econômico, parece que esquecem que se a população não estiver viva e não for capaz de sobreviver à crise financeira, não haverá público consumidor para quaisquer que sejam os serviços e produtos que restarem. É uma tristeza ver a quantidade de lugares com tantos afetos que estão se extinguindo, tantos projetos que foram por água abaixo por terem sido pegos de surpresa pela pandemia. Cada vez mais somos “deixados na mão”, experienciando o descaso e sofrendo as consequências da falta de caráter da classe governante.

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