Lançado em agosto e repicado agora na 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, “O Sargento, o Marechal e o Faquir” (272 páginas, Libretos), de Rafael Guimaraens, recebeu uma carrada de comentários favoráveis em jornais, revistas e blogs, mas nenhuma resenha ousou dizer que se trata da mais completa e precisa reconstituição da história trágica do sargento nacionalista Manoel Raymundo Soares, protagonista central – como vítima — do “Caso das Mãos Amarradas”, que veio à tona em agosto de 1966 na margem esquerda do Rio Jacuí, em águas da capital gaúcha.
Seus algozes, identificados como integrantes do DOPS e do Exército, não foram punidos por um rol de crimes que começa com a prisão sem mandado judicial, segue com a tortura por uma semana em dependências militares e policiais, agrava-se com o encarceramento por cinco meses sem processo na Ilha do Presídio, no Lago Guaíba, e termina com a morte por afogamento durante uma sessão de “caldo” em que o preso foi obrigado a ingerir uma bebida alcoólica, fosse para aguentar o frio de agosto, fosse para “abrir o bico”.
Na sua última viagem, à noite, nas águas do lago-rio que banha Porto Alegre, Manoel tinha as mãos amarradas às costas com tiras de sua própria camisa, item que ajudaria na sua identificação, pois a “volta-ao-mundo”, fácil de lavar e que não precisava ser passada a ferro, era sua roupa de todo dia na prisão.
O “Caso das Mãos Amarradas” passou das páginas policiais para o noticiário político, pois gerou uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) na Assembleia Legislativa do Rio do Grande do Sul, afrontando as autoridades militares e o próprio governador Ildo Meneghetti, obrigado a lavar as mãos como o títere romano Pôncio Pilates no caso de Jesus Cristo, segundo o Novo Testamento.
Salvo descuido histórico, Manoel Raymundo Soares foi a primeira vítima da tortura política praticada à sombra da ditadura militar então comandada pelo marechal Castello Branco.
No livro, o sargento nacionalista, admirador de Leonel Brizola, desertor do Exército, brilha como herói por não entregar os companheiros dissidentes da ditadura, com quem andava a tecer planos revolucionários — findas as sessões de tortura, isolado em sua cela, ele punha-se a cantar o Hino Nacional Brasileiro, como recordaram alguns companheiros de cárcere ao repórter-historiador de Porto Alegre. No fundo, era um sonhador que foi se isolando no radicalismo político, como aconteceria com algumas centenas de dissidentes nos anos seguintes.
Já o marechal Castello Branco, pivô da prisão do sargento, consta no livro como o chefe fraco que não ousou enfrentar os militares adeptos do endurecimento do regime, sacrificando seus supostos sentimentos democráticos à disciplina da caserna.
Por fim, num achado digno dos melhores romances policiais, Rafael Guimaraens põe na história um “tertius” até agora esquecido por narradores e acadêmicos que se debruçaram sobre o Caso das Mãos Amarradas: o faquir fracassado Edu Rodrigues, pintor de letreiros e fazedor de bicos que entra em cena para “ajudar” o solitário sargento na colagem de panfletos antiditadura no centro de Porto Alegre e acaba se revelando um “cachorrinho” do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Narrada em takes que se sucedem como um pré-roteiro cinematográfico, a história não se limita às três personagens do título. Nela aparecem também investigadores policiais sem medo, advogados conscientes de seu papel profissional e parlamentares corajosos diante de autoridades civis e militares armadas de evasivas, mentiras e omissões. O próprio general-presidente Castello Branco não obtém resposta para um memorando em que pede informações sobre o “Caso das Mãos Amarradas”. Entre os estudantes que se movimentam na cena, aparece até Tarso Genro, então com 16 anos, disputando vaga na liderança da entidade nacional dos secundaristas.
Em seu relatório-denúncia, o promotor Paulo Tovo conclui que os principais responsáveis pela morte do ex-sargento são o delegado do DOPS José Morsch e o major do Exército Menna Barreto. Nada acontece, exceto que Tovo ficou marcando passo em sua carreira no Judiciário gaúcho. Uma injustiça profissional, sem dúvida.
Cinquenta anos depois, o crime de Porto Alegre permanece impune. Afora a leveza e precisão da narrativa, o maior mérito do livro de Rafael Guimaraens é provar que o “Caso das Mãos Amarradas” foi um “thriller” do que a ditadura militar faria nos anos seguintes, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, que se destacaram como centros de caça, aprisionamento e tortura de dissidentes políticos.
Porto Alegre não abdicou de seu papel como coadjuvante da repressão, como se viu no sequestro dos uruguaios Universindo Diaz e Lilian Celiberti, episódio de novembro de 1978 cujos autores não foram punidos, embora estivessem a serviço da Operação Condor, uma das maiores organizações criminosas da história da América Latina (ver a propósito o livro “Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios” (464 páginas, L&PM Editores, 2008), do repórter-historiador gaúcho Luiz Claudio Cunha.
Autor de vários livros-reportagem, entre os quais se destacam “A Enchente de 1941” e “A Dama da Lagoa”, Rafael Guimaraens construiu com “O Sargento, o Marechal e o Faquir” sua maior obra. Entretanto, trata-se de apenas um tijolo a mais na reconstrução da história brasileira que se enfileira ao lado de outros livros como “Os Vencedores” (Geração Editorial, 2013), do gaúcho Ayrton Centeno, que usam a ferramenta da investigação jornalística para fazer aflorar verdades e mentiras, das quais se valem os cidadãos conscientes para fazer a justiça possível no momento oportuno.
Foi assim no episódio de dois anos atrás, quando a Câmara dos Vereadores de Porto Alegre rebatizou como Avenida da Legalidade e da Democracia a principal via de acesso a Porto Alegre, até então denominada Marechal Castello Branco.